"Ela é muito mais velha do
que eu
em termos de sabedoria da vida.
Às vezes, ela parece tão antiga
como a
sujeira das ruas,
e ainda outras vezes
ela é tão nova como uma garotinha."
Tom Waits,
sobre Rickie Lee Jones
Era 1979 e uma voz diferente surgiu no rádio. O clima era mezzo jazzístico, mezzo pop, beirando as coisas que Joni Mitchell havia feito cinco
anos antes. Mas tinha uma pegada irresistível, uma produção impecável, era uma
daquelas canções que a gente ouve no rádio, fica esperando o locutor dizer quem
é e sai correndo para uma loja de discos (é, se fazia isso, naquela época) pra
comprar a bolacha (isso é 1979 “A.CD”. Ou seja: antes do CD). O mistério foi
desvendado pelo locutor da Gaúcha FM (não lembro quem era): Rickie Lee Jones com “Chuck E’s in
Love”.
Aos poucos, o mistério daquela voz quase infantil, cantando jazz, foi
sendo desvendado. A cantora tinha sido namorada de Tom Waits, companheira de
estrada e de loucuras do cantor e compositor e, nestas andanças, foi
apresentada aos produtores Russ Titelman e Lenny Waronker da Warner Bros. Como
uma história de Cinderela, Rickie Lee Jones, a fugitiva, a garota beat dos anos 70, acabou sendo
contratada por uma das maiores gravadoras do mundo e, num passe de mágica,
estava no topo das paradas dos Estados Unidos. Em breve, de quase todo mundo.
Mas o que tinha esta cantora e este disco de tão importante, diferente? E o que
levou este escriba a traçar algumas linhas, chamando este disco de estreia de
um dos ÁLBUNS FUNDAMENTAIS? Vamos (procurar) desvendar na sequência.
“Rickie Lee Jones” inicia
exatamente com esta música do rádio, “Chuck E’s in Love”. Uma canção com um
toque jazzístico, levado pela bateria do mestre Steve Gadd e pelos violões de
Rickie, Buzz Feiten e Fred Tackett. Na letra, ela simplesmente conta a história
do seu amigo Chuck E. Weiss se apaixonando. O que brilha mesmo nesta canção é a
produção de Titelman & Waronker, que conseguiram dar um tom beirando ao pop
para uma música composta no violão e de melodia simples. O resultado é que
“Chuck E’s in Love” chegou ao quarto lugar da parada como single, levando o LP ao terceiro lugar da Billboard.
Em “On Saturdays Afternoons in 1963”, ela relembra seus tempos de
criança em Chicago e diz: “O máximo que
você jamais irá/ é voltar ao lugar que você já conheci/ Se os adultos conseguem
rir tão devagar/ Enquanto você vê a neve cair lentamente/ Os anos devem
passar”. O arranjo de orquestra é de Nick DeCaro, muito eficiente.
“Night Train” é uma das minhas preferidas do disco. Nela, a mãe está
fugindo do marido agressivo, levando seu bebê e conta para a criança como
aconteceu esta fuga, usando inclusive metáforas do jogo de bilhar. “Aqui estou indo/ caminhando com meu bebê
nos braços/ porque estou no lado errado da bola oito preta/ E o diabo, veja,
ele está bem atrás de nós/ E esta trabalhadora disse que vai levar meu
bebezinho/ meu pequeno anjo de volta/ Mas eles não vão conseguir/ porque estou
aqui com você no trem noturno”. Na criação deste clima de fuga, temos a
percussão exata de Victor Feldman, o baixo de Willie Weeks, os teclados de Neil
Larsen, os violões de Jones e Feiten e o arranjo orquestral de Mandel. Rickie
se supera no vocal desta canção, susurrando no início e fazendo uma verdadeira
prece no meio da canção. Emocionante.
“Youngblood” é outra canção em que Rickie relembra seus tempos de
juventude. “Dê uma caminhada à meia-noite
na cidade/ Young Blood vai te encontrar em algum lugar/ Se você está procurando
por alguma coisa pra fazer/ Sempre tem algo acontecendo/ Como eu e Bragger
pedimos emprestado um coupê hoje/ Lá vem Pepe e ela tem um amigo com o Chevrolet/
mas ela não está correndo/ Está caminhando devagar/ e ela não está chorando... apenas
está cantando baixinho”. Tudo isso embalado pelos timbales e pela bateria
de Mark Stevens e os backing vocals
inconfundíveis de Michael McDonald. Esta canção foi o segundo single tirado do disco, chegando ao 40º
lugar da parada da Billboard.
“Easy Money” tem participações de peso. A música começa com o baixo
acústico do mestre Red Callender, o solo de piano é de Dr. John e o vibrafone
que percorre a canção é de Victor Feldman. O clima deste blues é de dois
escroques que querem fazer um “dinheiro fácil”. A mulher quer usar seus poderes
de sedução para arrancar uma grana dos trouxas. Daquelas de estalar os dedos
junto com o disco.
Quando Rickie Lee tinha 21 anos, ela morou no Arizona. Sua vida naquele
estado cheio de paisagens desoladoras e céu aberto rendeu algumas canções no
repertório da cantora. Uma delas é “The Last Chance Texaco”, onde ela usa os
nomes de empresas petrolíferas (cujos postos de gasolina ela devia ver nas
estradas desertas do Arizona) como metáforas para amores desfeitos. A
composição tem como base o violão de Rickie Lee, mas os sintetizadores de
Micahel Boddicker e Randy Newman, que recriam o ruído dos carros que passam
pela estrada. Na letra, ela recomenda que se faça uma checagem dos componentes
do carro, antes que ele pare na estrada. Como se checar o estado do
relacionamento vá impedir que ele termine. “É
sua última chance/ de checar embaixo da capota/ última chance/ Ela não está
soando muito bem/ Sua última chance/ de confiar no homem com a estrela/ Você
encontrou sua última chance Texaco/ Bem ele tentou ser comum (Standard)/ Tentou
ser móvel (Móbile)/ Tentou viver num mundo (World)/ e numa concha (Shell)”.
Todo o tempo a metáfora percorrendo a canção.
“Danny’s All-Star Joint” volta o clima memorialista de RLJ, lembrando
de uma lanchonete de sua adolescência onde tinha uma máquina de música que
fazia “doyt-doyt”. O Rhythm and Blues da canção é propelido
pela bateria de Steve Gadd, pelo baixo de Chuck Rainey e pelos sopros de Tom
Scott, Chuck Findley e Ernie Watts. Lá pelas tantas, a jovem RLJ fala para seu
acompanhante masculino: “Você não pode
quebrar as regras até que saiba como jogar o jogo/ Mas se você quiser se
divertir/ pode mencionar o meu nome/ Mantenha seus pés nas rua/ seus
calcanhares na grama/ Mas mantenha seu negócio no bolso/ é aí que ele
pertence”. Irresistível com os sopros fazendo aqueles riffs estilo James Brown.
Uma canção diferente no disco é “Coolsville”, mais uma faixa em que ela
relembra os tempos de teenager
rebelde que vivia nas ruas de Venice. Com a guitarra de Buzz Feiten dando um
clima fantasmagórico e a bateria de Jeff Porcaro rebombando como tímpanos de
orquestra, Rickie Lee conta sua história e de dois amigos, Bragger e Junior
Lee, que viviam em Coolsville, a cidade dos descolados. Depois de algumas
aventuras, os três se reencontram: “Então
agora é J e B e eu/ soa parecido/ mas não é a mesma coisa/ mas tá tudo bem/ A cidade
não nos machuca tanto/ quando tudo parece o mesmo”. Viver em Coolsville já
não significa tanto para estes três desajustados.
“Weasel and the White Boys Cool” é uma parceria com Alfred Johnson, com
quem RLJ começou a cantar em Los Angeles, quando tinha 21 anos. Foi uma das
músicas compostas na época que sobreviveu e foi parar no disco. Aqui, Rickie
Lee é a observadora das aventuras e desventuras de Sal (Bernardi), seu amigo e
ex-namorado e que viria a ter papel importante no segundo disco da cantora e
compostora, chamado “Pirates”, lançado dois anos depois. “Sal estava trabalhando no esconderijo de Nyro no centro da cidade/
Vendendo artigos do congresso para estas pessoas do Centro/ Ele era bem sórdido
que o conheci/ uma fuinha num casaco de lá de menino pobre/ Sal vivia num
curral de vinil preto em Nova Jersey/ comprava sua carne da puta na porta ao
lado/ Ele queria malpassado mas ganhava bem passado”. Durante a canção, Sal
se muda de bairro, dando adeus aos seus pais e amigos, passa dificuldades mas
acaba na fila da previdência social. Rickie Lee o salva, logo depois.
Mais uma parceria com Alfred Johnson, “Company” é uma balada jazzística
daquelas lancinantes com arranjo maravilhoso de cordas de Johnny Mandel.
Brilham também o piano de Neil Larsen e os teclados de Randy Kerber. Uma canção
de amor desfeito. A letra diz tudo: “Eu
lembro de você muito bem/ Mas sobreviverei outro dia/ Conversas para partilhar/
Quanto não tem ninguém/ Eu imagino o que você diria/ Te verei em outra vida,
baby/ Te libertarei em meus sonhos/ Mas quando eu chegar do outro lado da
galáxia/ Vou sentir falta de sua companhia”. A narradora está consciente de
que o amor acabou, mas continua sentindo a falta: “E agora que você se mandou pra viver sua vida/ Você diz que nos
encontraremos de vez em quando/ Mas nunca seremos os mesmos/ E eu sei que nunca
terei esta chance de novo/ Não como você/ Companhia/ Estou procurando por companhia/
Veja e ouça através dos anos/ Algum dia você poderá me ouvir/ Ainda chorando
por companhia”. Nervos dilacerados por esta paixão que se terminou mas não
acabou.
A última faixa do disco também é melancólica. “After Hours (Twelve Bars
Past Midnight)”, com o piano de Rickie Lee e as cordas de Nick DeCaro. A
juventude de RLJ é novamente evocada na letra: “Toda a gangue já foi pra casa/ Parada na esquina/ bem sozinha/ Eu e
você, poste de luz/ Pintamos a cidade de cinza/ Oh, somos tantas lâmpadas/ que
perderam nosso caminho/ Diga boa noite, América/ O mundo ainda ama um sonhador/
E toda a gangue já foi pra casa/ e eu estou parada na esquina/ bem sozinha”.
Depois deste inesperado sucesso do disco de estreia, muitas fichas
foram colocadas no futuro comercial do trabalho de Rickie Lee Jones. Rebelde
como sempre foi, ela levou dois anos divulgando este primeiro disco,
excursionando pelos Estados Unidos e Europa e, quando chegou a hora de fazer um
novo disco, subverteu todas as possíveis expectativas lançando “Pirates”, um
disco incrível, porém de difícil audição para ouvidos acostumados ao Top 40.
Mas essa é outra história.
FAIXAS:
1. "Chuck E.'s In
Love" – 3:28
2. "On Saturday
Afternoons in 1963" – 2:31
3. "Night
Train" – 3:14
4. "Young
Blood" – 4:04
5. "Easy
Money" – 3:16
6. "The Last
Chance Texaco" – 4:05
7. "Danny's
All-Star Joint" – 4:01
8. "Coolsville"
– 3:49
9. "Weasel and
the White Boys Cool" (Rickie Lee Jones/Alfred Johnson) – 6:00
10.
"Company" (Lee Jones/Johnson) – 4:40
11. "After Hours
(Twelve Bars Past Goodnight)" – 2:13
todas composições de autoria de
Rickie Lee Jones, exceto indicadas.
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OUÇA O DISCO:
por Paulo Moreira
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