O documentário “O
Último Poema” (2015), dirigido por Mirela Kruel, encontra na contenção sua
beleza e sua força poética. O filme aborda a longa relação epistolar entre a
professora gaúcha Helena Maria Balbinot Vicari e o grande poeta mineiro Carlos
Drummond de Andrade. Ambos se corresponderam por mais de vinte anos, sem nunca
terem se conhecido pessoalmente. As cartas trocadas registram esta amizade
cordial, este feliz encontro. As próprias histórias de vida vão ali se
entrelaçando, em meio aos comentários sobre poesia, votos de felicidade e
outras generalidades afetivas.
Hoje, é impressionante pensar na natureza desta relação,
destacando-se aí, principalmente, sua extensão e sua gratuidade. Como poucos, o
filme joga luz sobre a qualidade e o cultivo dos vínculos, sobre solidão e real
intimidade. O que se mostra, na tela, é o avesso completo daquilo que
encontramos à exaustão em nossas redes sociais, em nosso cotidiano
hipermediado, aceleradíssimo e hiperexposto. Uma pergunta, neste cenário, fica
no ar: entre as décadas de 1950 e 1960, eram comuns e frequentes tais práticas
(tais práticas de interação entre escritor e leitor, entre público e artista)?
Drummond, particularmente, era um missivista destacado? Ou surgiu, de fato,
ali, um exercício singularíssimo, uma prática espantosa, na sua regularidade,
na sua motivação espontânea?
Helena Maria Balbinot Vicari não era a fã chata ou a groupie inconveniente, forçando
intimidade, não era o jornalista cultural, catando pauta e confidências
publicáveis, não era o aprendiz de poeta, atrás de dicas e lições informais de
poesia, também não era o pseudo-poeta pretensamente concorrente, não era a
professora primária deslumbrada ou o crítico acadêmico, o resenhista
profissional. Não cabia, exatamente, em nenhum destes papéis. Excedia cada um
destes perfis. Talvez tivesse mesmo se tornado, para Drummond, o leitor ideal,
motivado unicamente pelo produto e pela vivência da poesia, as emoções que
guarda e encobre.
O filme de Mirela Kruel dialoga com outras produções
recentes: “Sobre Sete Ondas Verdes Espumantes” (2013), de Bruno Polidoro e Cacá
Nazário, dedicado à vida e à obra de Caio Fernando Abreu; “Só Dez por Cento é
Mentira” (2009), “desbiografia” do poeta Manoel de Barros, dirigida por Pedro
Cezar; e “Pan-Cinema Permanente” (2008), retrato visceral do poeta baiano Waly
Salomão, assinado por Carlos Nader. Todos são ótimos documentários poéticos
sobre poesia brasileira, moderna e contemporânea.
Mas observá-los em conjunto, reconhecer as afinidades que
têm, as características que compartilham, nos permite formular uma suspeita:
se, na década de 1960, a música popular se tornou um canal para a poesia
brasileira, uma espécie de câmara de amplificação de nossa sensibilidade
poética, dando-lhe maior trânsito e visibilidade, como tem argumentado o
professor Luiz Augusto Fischer, citando o exemplo muito emblemático de Chico
Buarque de Holanda, talvez hoje, por hipótese, o cinema documentário esteja
assumindo este legado, esteja cumprindo não só a função de divulgar o trabalho
literário de nossos poetas e de produzir os registros históricos que eles
merecem, mas, acima de tudo, a função de dar vazão à inquietação poética,
tornar-se poesia, num momento em que a canção popular e a vida cultural, de modo
geral, no Brasil, definham.
trailer de "O Último Poema"
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