A grande A Cor do Som em plena atividade. |
Foi um acontecimento encantado que Porto Alegre presenciou na úmida
noite de domingo. Afinal, a lendária banda A Cor do Som, com a formação original, resolveu reunir-se 32 anos
depois da última vez e escolheu a capital gaúcha para estrear. A opção, aliás,
se justificou plenamente. Num Bourbon Country lotado de fãs empolgados e
emocionados, o grupo reviveu clássicos e sucessos, preenchendo uma ausência de
quase todo esse tempo, haja vista que a última vez que pisaram num palco da
cidade foi em 1981, no antigo Teatro Leopoldina. Aos que estavam lá àquela
época, valeu a pena esperar, assim como para fãs como eu, que os somente bem
depois os conheceu e passou a apreciar seu trabalho sui generis.
E eles já saíram pondo tudo abaixo com “Saudação a Paz”, faixa que abre
seu terceiro disco, de 1981. Em seguida, cantada com a voz suave do “leãozinho”
Dadi, um dos grandes sucessos: “Abrir a Porta”, daquele que é talvez sua
obra-prima, “Frutificar”, de 1979. Deste mesmo trabalho, mais uma maravilha
instrumental na sequência: “Pororocas”, jazz-baião em que todos se esmeram,
principalmente o virtuose Armandinho no bandolim, do qual ele extrai timbres de
guitarra elétrica. Das cantadas, que contagiaram a plateia, ainda veio o lindo
xote “Semente do Amor”, na voz de Mu (“Sim,
é como a flor/ De água e ar luz e calor/ O amor precisa para viver/ De emoção,
e de alegria/ E tem que regar todo dia...”), e “Beleza Pura”, do baiano e
padrinho Caetano Veloso (autor do nome da banda e que lhes presenteou a música,
um sucesso em 1979), que o conterrâneo Armandinho entoou.
De fato, a proximidade e o carinho que a música d’A Cor do Som tem para
como os gaúchos é muito grande. Outra do mano Caetano encomendada a eles é uma
que tem a cara de Porto Alegre. Aliás: é inspirada num dos bairros mais
queridos da cidade, “Menino Deus”. A letra, de uma beleza incrível, claro,
emocionou os que lá estavam a ouvindo na voz de Dadi: “Menino Deus, um corpo azul-dourado/ Um porto alegre é bem mais que um
seguro/ Na rota das nossas viagens no escuro/ Menino Deus, quando tua luz se
acenda/ A minha voz comporá tua lenda.”
Armandinho é ovacionado enquanto
sola no meio da plateia.
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Vinham também sempre as instrumentais, que deixavam a plateia mais
contemplativa e menos dançante, pois boquiaberta com tamanha destreza dos
músicos e beleza musical. Caso de “Ticaricuriquetô”, de Armandinho, um misto de
heavy-metal, frevo e rock progressivo
em que o guitarrista arrasa com a pequena guitarra baiana. Dadi, Mu, Ary e
Gustavo não ficam para trás nos solos, tanto quanto nas difíceis bases que as
melodias exigem, remetendo muitas vezes à complexidade harmônica do jazz fusion de uma Weather Report ou Pat
Matheny Group. Nessa linha, a talvez mais impressionante de toda a apresentação
foi a clássica “Frutificar”, faixa-título do álbum de 1979 e de autoria de Mu.
É ele quem a inicia com uma abertura quase erudita de alguns minutos conjugando
piano e teclado elétrico. O baixo e a bateria entram de leve. É quando Ary,
mais atrás no palco, ao lado da bateria, posiciona os bongôs à frente, pareando
com o teclado e com Armandinho, que está ao centro. Ao comando do teclado, que
intensifica o compasso, o percussionista deslancha uma intensa percussão típica
africana, e aí quem entra é Armandinho. Cruzes! Num clima de trilha sonora de
thriller de ação dos anos 70, os cinco se esbaldam nos improvisos e o tema vai
num crescendo de emotividade até ganhar formas épicas. Um tema gigante.
Seguiram-se outras das melodiosas e cantaroláveis, como o reggae “Zero”
e mais um hit: “Zanzibar”, em que Armandinho puxou a galera pra cantar e
dançar. Houve o momento em que, durante o solo, o guitarrista, lá pelo meio do
número, desce do palco e percorre os corredores da plateia. Solando! E solando
MUITO bem! Fazia com a maior naturalidade o que muito guitarrista, mesmo
totalmente parado e concentrado, não teria a mínima capacidade. Um monstro do
instrumento. Para fechar, “Swingue Menina” pós todo o teatro pra se embalar ao
som do reggae. O bis teve mais uma peça de pura habilidade e a gostosa “Dentro
de Minha Cabeça”, em que Ary largou a percussão para assumir o microfone e
cantar: “Dentro da minha cabeça/ Tenho um
pensamento só/ Sei que não tenho juízo/ Dentro da minha cabeça/ Eu só quero
amor/ Amor, amor...”. Detalhe: Ary dedicou-a a uma “amiga” das antigas que
estava na plateia, a qual congelou tamanha a surpresa.
Juntamente com a saudosa Black Rio, A Cor do Som é certamente a grande
banda de jazz brasileiro moderna. Porém, diferente dos autores de “Maria
Fumaça”, cujas atividades se encerraram após perderem seu cabeça, Obderdan, já
falecido, todos os seus integrantes estão ativos e em plena forma. Então, por
que não aproveitar isso em vida, né? Foi essa celebração à vida, à música, às
cores dos sons, que A Cor do Som compartilhou com todos nós esta noite. Lá fora
podia já estar escuro e chuvoso, mas lá dentro estava colorido e iluminado.
por Daniel Rodrigues
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