Dizem que o cachorro é o melhor amigo do homem. Mas afirmo a
vocês: é o do cachorro também. Digo pelo que já presenciei, tendo em vista que
já passaram muitos bichinhos lá por casa. A residência 30 da Pereira da Cunha,
aliás, é um manancial de histórias de bichinhos, principalmente deles, os
cachorros – embora também, em menos volume, de gatos, como o Gatinho, o Hermes
e o bichano que nela reina atualmente, o Bowie. Já teve caturrita e até
peixinhos de aquário. Mas, principalmente, cachorros. De fato, estes têm uma
longa trajetória na minha família, desde antes de eu nascer, na minha infância
e por aí em diante. Afora um período de 2 anos em que o vírus da cinomose
pairou nefastamente sobre o pátio depois de vitimar dois de nossos pets, nunca
deixou de haver cães em nossa casa.
As origens deles: das mais diversas. Alguns, dados; outros,
recolhidos ou aparecidos por lá; também filhotes de nossas próprias cachorras; e,
não raro, “oferecidos”, como a Buba, que um falecido amigo de meu pai – muito ironicamente
apelidado de Zé Cadela – levou para nós dizendo: “Ou pegam a cachorra ou vou
jogar no Dilúvio”. Como não adotar a “guria”, né? Viveu mais de 12 anos
conosco. Pois um dos vários que por lá pintaram um dia foi o tal de Cumbica. Este
pode se considerar dos “aparecidos”.
A alcunha foi dada pelo meu pai com requintes de
criatividade. Orelhudo, lembrava o cabelo em formato de aeroplano de Galeão
Cumbica, personagem do programa humorístico A Escolhinha do Professor Raimundo.
Pra ajudar, o cachorro, pelo branco ralo por quase todo o corpo desmilinguido e
apenas uma rodela bege sobre o lombo, sempre que ficava contente ou atento
esticava para os lados da cabeça as orelhas, fazendo parecer-se ainda mais com
o personagem do ator Rony Cócegas. Ademais, era simpático, mas não dava pra
dizer que era um animal bonito, formoso – assim como o humorista. Ou seja: caía-lhe
como uma luva o nome Cumbica. Alegre, parceiro e bastante esganado. Quer dizer:
um cusco típico.
Acontece que, além de contar com essas características,
Cumbica era o um verdadeiro “cidadão do mundo”. Ele chegou lá em casa já
adulto, levando consigo todos os “vícios” trazidos da rua: não parava em casa, corria
com o carteiro e sumia por tempos para depois voltar. Isso quando não aparecia
com alguma marca de briga arranjada nas andanças da vida. Provavelmente tinha
outra casa, a qual mantinha uma constância de visitas devidamente equilibrada a
ponto de não desagradar a esta e nem a nós. Pois um dos hábitos de Cumbica era
o de passar em casa na hora do rango e filar uma boia para depois voltar para a
rua, às vezes acompanhado. Afinal, é de se imaginar que um bon vivant como ele
tivesse muitos amigos, os companheiros de paqueras com as cadelinhas, de
corrida atrás de roda de carro e de brigas por osso.
Pois um desses camaradas de quatro patas passou a, junto com
ele, frequentar nossa casa – sempre na hora do almoço, claro. Não dormia lá,
apenas comia. Chegavam os dois juntos por volta do meio-dia, como quem não
queria nada, admirando a arquitetura, naquele passo de fingida desimportância.
Mas era evidente o que queriam. Enchiam a pança, davam aquela baixada na comida
e lá se iam de novo os dois para as aventuras da rua. Amigos, companheiros de
verdade.
Assim foi por um bom tempo a ponto de o outro cão, que não
era nosso, passar a fazer parte de nossa rotina. Batia meio-dia, estava lá ele
e o amigo Cumbica, que, cortês como todo malandro sabe ser, o convidara para
mais uma refeição em seus aposentos. Tanto nos acostumamos com o frequente
convidado que passamos a, forçada e inevitavelmente, chamá-lo de... Amigo. Assim
mesmo, pondo maiúscula na primeira letra. E como mais seria, né? Inseparáveis,
aqueles parceiros de pote e vadiagem eram o símbolo da amizade.
Quis Deus que o andarilho Cumbica, justamente por essa
exposição que sua vida loka lhe conferia, fosse atropelado na movimentada e
impiedosa Av. Bento Gonçalves. A pancada do automóvel não foi forte o
suficiente para matá-lo imediatamente, mas para feri-lo por dentro. Cumbica
voltou para o porto-seguro do pátio de nossa casa, onde tanto se alimentou,
latiu, brincou, dormiu e dividiu sua
ração. Não resistiu. Voltou para morrer.
A solução de uma família de classe média de então (estamos
falando de anos 90), tal como sempre se procedeu com os bichos de estimação que
tivemos, era enterrá-lo nós mesmos. De preferência, longe do nosso pátio.
Então, foram minha mãe e um vizinho levar o corpo a um terreno baldio na
própria avenida. Eles e o Amigo. Do nada, o Amigo apareceu, decerto pelo
cheiro, decerto pela ligação espiritual que tinha para com o companheiro.
Apareceu para acompanhar o cortejo até o local do enterro. Atravessou a avenida
com determinação e solenidade. Enquanto cavavam o buraco, ficou parado ao lado,
contrito, como que orando (será que não estava mesmo?...).
Ao fim, depois de coberto o corpo do parceiro, focinhou a
terra que lhe cobria e certificando-se se o etéreo já não mais se fazia
presente. Não mais. Então, foi-se. Sob o olhar admirado de minha mãe, que me
relatou esse episódio, o Amigo foi-se embora e sumiu no horizonte para nunca
mais aparecer lá em casa. Nenhum almoço mais. Nenhuma boia mais filada. Não lhe
fazia sentido, ao certo, aproveitar um momento tão sagrado como o da ceia sem a
presença do amigo e anfitrião. Conhecedor dos atalhos da rua, certamente achou
outro (ou outros) lugar para se alimentar.
O vazio que Cumbica deixou logo foi minimamente preenchido
pela chegada de novos bichinhos. Coisas da vida. Porém seu exemplo de caridade,
desprendimento e companheirismo, típicos dos nossos irmãos peludos, ficaram
para nossa família. Tanto que até hoje, Dia de São Francisco, protetor de todos
eles, nos lembramos. A oração deste santo diz: “É dando que se recebe”. Cumbica
e seu Amigo fizeram isso com a invejável naturalidade que só os animais conseguem
ter.
Daniel Rodrigues
O quanto de significado os Amigos Bichos nos dão com tamanha espontaneidade. Só temos a agradecer todo esse convívio, o amor e a amizade. A história que narras emociona, faz sorrir e também refletir o tamanho inimaginável desse aprendizado com os cães e gatos. Afinal, estamos todos de passagem por aqui na Terra. Parabéns por mais essa vívida vivência, Daniel. Beijo da hermana Carol <3 (Amo muito o Bowie, meu afilhado!)
ResponderExcluirCom certeza, Carol, eles são um referencial sempre que os pensamentos mesquinhos e confusos do ser humano vêm á tono, pois lhes é tudo tão amorosamente natural. Temos muito o que aprender com eles mesmo. Obrigado pelas palavras e pela leitura, hermana. (PS: amo muito o (ainda) pequeno Shiva também)
Excluir- É, querido Daniel, sua narração- descritiva não permite 'stops':rouba- nos até o fôlego ao lê- la. Mesmo não tendo -e nunca tive- animais de estimação, confesso ter sentido o cheiro de Cumbica aqui debaixo da minha mesa, pode?!... Como você vê no meu face, compartilho diariamente fotos/ mensagens em favor dos animais indefesos. Isso porque tenho amigas (Conceição/ SP e Liane/ RS) que, literalmente, lutam em defesa dos abandonados e/ou sofridos irracionais!?? O espírito do 'seu' Cumbica, ontem, olhou e sorriu pra você, creia. Recebam você e Cly, minha dupla infalível, mais um Parabéns!!!...
ResponderExcluirQue lindo, profª. És uma leitora que respeito muito, e não é à toa, tendo em vista este retorno que me dá tão sensível e entendedor. Incrível que até sentiste o Cumbica aí perto de ti! Igual comigo, ele, ao lermos e nos identificarmos de alguma forma com sua história, certamente aparece de onde estiver para nos abanar o rabo e fazer uma festinha. Bjs, Berê.
ExcluirLi o relato, como se dele não tivesse feito parte, porque desses um encanto todo especial a história, de maneira que sem afetar sua veracidade, mostra o seu lado terno e singelo. Que emociona e nos ensina o quanto temos que aprender com os ani
ResponderExcluirmais. Bjo. Iara.