“Refrigere minha alma e guia-me pelo caminho da justiça.”
– Salmo 23,
capítulo 3
“Ilumina minha alma, louvado seja o meu senhor/ Que não deixa o mano
aqui desandar/ E nem sentar o dedo em nenhum pilantra/ Mas que nenhum filha da
puta ignore a minha lei.”
– Da letra de “Capítulo 4, versículo 3”
Era Réveillon de 1997. Após
muitas cervejas, samba, risadas e conversas altas no volume típico da minha
família, pouco depois da virada do ano, nas primeiras horas de 1998, meu primo-irmão
Leandro “Lê” Reis Freitas me chama para dentro da casa ao lado da garagem onde
todos se reuniam. Fugíamos um pouco da algazarra, pois Lê queria me mostrar
algo para se ouvir com atenção. Olhando-me com convicção e euforia, ele me disse:
“Dã, tu tem que ouvir isso!”. Era um
disco. Um disco de rap chamado “Sobrevivendo
no Inferno”, dos Racionais MC’s,
que completa 20 anos em 2017.
Sabia que ele curtia
bastante rap, então não estranhava que quisesse me apresentar algum artista. Geralmente,
não me animava tanto, admito, haja vista que o rap nacional sempre me parecia ficar
bastante a dever ao dos Estados Unidos e principalmente ao Public Enemy, meus
preferidos do estilo até hoje. Mas aquilo que Lê me mostrava era, definitivamente,
diferente. O início salta com um “Ogunhê!”, a saudação ao orixá Ogum do
Candomblé. Imediatamente, começa um rap arrastado feito sobre a base de “Ike’s
Rap 2”, de Isaac Hayes – o mesmo sample
usado em “Glory Box”, do Portishead, e “Hell Is Round the Corner”, do Tricky.
Era uma versão originalíssima de “Jorge da Capadócia”, de Jorge Ben. Agradou-me
bastante, mas Lê me alertou: “Essa é
legal, mas o melhor vem a partir de agora”.
Sim, o melhor vinha em
seguida. Após um prólogo interessantíssimo, muito bem escrito e revelador (a
vinheta “Gênesis”), a faixa seguinte trazia em sua letra o mais pungente e
expressivo manifesto escrito no Brasil depois do Antropofágico, do Concretista
e do Tropicalista. E mais: sem ter a intenção de ser um manifesto propriamente
dito, o que aumenta ainda mais sua força. Ali, falava-se de algo que estava
grudado na garganta há muito tempo, bem dizer, desde que os escravos vieram
para o Brasil, séculos atrás. Desde que, alforriados, os negros permaneceram na
miséria por descaso do estado. Num trecho, a letra diz: “Minha intenção é ruim/ Esvazia o lugar/ Eu tô em cima, eu tô afim/ Um,
dois pra atirar/ Eu sou bem pior do que você tá vendo/ O preto aqui não tem dó/
É 100% veneno/ A primeira faz ‘bum’, a segunda faz ‘tá’/ Eu tenho uma missão e não
vou parar”. Era “Capítulo 4, Versículo 3”, a brilhante canção que mostrava,
com todas as letras, que os Racionais, formado pelos mc’s Mano Brown, Edi Rock
e Ice Blue e o DJ KL Jay, realmente tinham uma missão. E que não iriam parar.
Enquanto a noite seguia
animada lá fora, Lê e eu ouvíamos de cabo a rabo o longo 5º disco dos
Racionais, o ápice da maturidade dos rapazes da Zona Sul paulista e o melhor
disco de rap brasileiro de todos os tempos, 14º colocado na lista da revista
Rolling Stone dos 100 melhores álbuns da história da música brasileira.
Tínhamos a noção de que estávamos diante de algo diferenciado e revolucionário.
Além da qualidade técnica nunca antes atingida no rap no Brasil, com samples bem escolhidos e elaborados,
densidade sonora e produção impecável do próprio KL Jay, “Sobrevivendo...” era
um grito até então ensurdecido. O grito da periferia – em sua grande parte,
negra. Um grito de revolta e ressentimento pelo apartheid social brasileiro; um grito agressivo contra a
desigualdade de classes; um grito de protesto contra a repressão da polícia e
do estado. Mas tudo traduzido em poesia, musicalidade, criatividade. “Sobrevivendo...” propunha
uma revolução ideológica.
Os anos 90, primeira década da
democracia no Brasil, traziam nas rádios o samba “embranquecido” do pagode e o
conveniente “rap de classe média” de Gabriel O Pensador. Ou seja: os pretos
mesmo não estavam representados. Precisou que o rap levantasse a bandeira, e os
Racionais MC’s cumpriram essa função abrindo definitivamente um novo paradigma
para a música brasileira em temas como “Diário de um Detento”, “Mágico de Oz”,
“Fórmula Mágica da Paz” e a já mencionada “Capítulo 4...”. Nelas fala-se
abertamente sobre o racismo e a miséria na periferia de São Paulo, marcada pela
violência e pelo crime, numa representação muito maior do que somente aquilo: era um
retrato da sociedade brasileira.
Outra das melhores do disco
e da banda, "Tô Ouvindo Alguém me Chamar" disseca a vida de um
assaltante, homem pobre que, ao contrário do irmão advogado, escolheu o caminho
do crime. A narrativa de Brown é brilhantemente contada em fluxo de consciência
a partir do momento da morte do protagonista, engendrando uma sucessão de flashbacks que vão construindo a
história. A batida (tirada de “Charisma",
de Tom Browne) ganha sons de pulso cardíaco, que dialoga
metalinguisticamente com o tema. A dramaticidade da saga do marginal é uma
aula de escrita. Afundado nas drogas e na criminalidade, ele é morto com a mesma
arma que um dia havia presenteado seu parceiro de delinquência (o Guina, único personagem
que o nome mencionado). A recorrente referência ao irmão, cuja figura se
confunde com a do parceiro, com a do pai e do sobrinho, é tocante, como nesta
passagem, quando o criminoso, agonizando, percebe que já está na berlinda: “Meu irmão merece ser feliz/ Deve estar a
essa altura/ Bem perto de fazer a formatura/ Acho que é direito, advocacia/
Acho que era isso que ele queria/ Sinceramente eu me sinto feliz/ Graças a
Deus, não fez o que eu fiz/ Minha finada mãe, proteja o seu menino/ O diabo
agora guia o meu destino”.
De fato, muito dos Racionais
se deve à cabeça privilegiada de Mano Brown. Ele é o rapper que superou o discurso rebelado mas geralmente pouco
articulado do hip hop brasileiro, abrindo caminho para gente como Emicida e
Criolo. Brown é, sem medo de errar, um dos maiores escritores brasileiros da
atualidade – léguas à frente de nomes celebrados da literatura como Paulo
Coelho, Fabrício Carpinejar ou Martha Medeiros. Para se ter ideia, segundo pesquisa da revista
Billboard Brasil do ano passado, ele figura entre os 50 artistas mais completos
do país. Suas letras trazem uma improvável e incomparável mistura de consciência
social e racial e ativismo político com pitadas de religiosidade católica, evanvélica e
afro misturadas ao melhor português, seja o culto ou o vulgar. Tudo como muita
contundência e até agressividade. “Minha
palavra vale um tiro e eu tenho muita munição”, diz um de seus versos.
Essa força expressiva está no
maior clássico do disco, canção de muito sucesso à época: “Diário de um
Detento”. Quase uma versão musical do livro “Estação Carandiru”, de Dráuzio
Varella, a música de Brown, realista e crítica, amarra a narrativa de
depoimentos do ex-presidiário Jocenir. Sobre o sample de “Easin' In”, de Edwin Starr, é uma carta que perpassa o
dia anterior ao massacre do Carandiru (2 de outubro de 1992) até o dia seguinte
à tragédia, 3. A abertura é inesquecível: “São
Paulo, dia 1º de outubro de 1992, 8 horas da manhã/ Aqui estou, mais um dia/
Sob o olhar sanguinário do vigia/ Você não sabe como é caminhar/ Com a cabeça
na mira de uma HK/ Metralhadora alemã/ Ou de Israel/ Estraçalha ladrão que nem
papel”. Uma “rima preciosa” – tipo que uniformiza palavras de idiomas
distintos –, vem logo na sequência: “Na
muralha, em pé, mais um cidadão José/ Servindo o Estado, um PM bom/ Passa fome, metido a Charles Bronson”. Outros trechos, cujas sentenças são
verdadeiros petardos, impressionam igualmente: “Sua cara fica branca desse lado do muro” ou “Já ouviu falar de Lúcifer?/ Que veio do Inferno com moral um dia/ No
Carandiru, não, ele é só mais um/ Comendo rango azedo com pneumonia” ou
ainda “O ser humano é descartável no
Brasil/ Como Modess usado ou Bombril.”
A onomatopeia “Ratátátá”, repetida algumas vezes e que
vai se avolumando no decorrer da letra, ao mesmo tempo dá a ideia do trem que
passa em frente ao presídio, elemento que simboliza a tortuosa passagem do
tempo na prisão, quanto o som de tiros, como um prenúncio da chacina. Ali,
naquela realidade, o destino inevitável é a morte. Vendo nos noticiários as
rebeliões e acontecimentos violentos ocorridos em vários presídios brasileiros
nos últimos tempos, “Diário...” parece lamentavelmente atual.
Se Brown apavora com canções
como esta, Edi Rock, entretanto, não fica muito para trás. Mais fraco em termos
letrísticos, ele ganha na criatividade das melodias e na voz potente. “Periferia
é Periferia (Em Qualquer Lugar)” é um caso: baseada num tema de Curtis
Mayfield, sampleia uma série de outros rap’s brasileiros, como os pioneiros
Thaíde e DJ Hum, Sistema Negro e MRN. Já “Rapaz Comum” tem uma pegada mais gangsta ao samplear Dr. Dre e Snoop Dogg,
retrazendo o mote de “Tô Ouvindo...” ao relatar, na 1ª pessoa, os momentos de
agonia de “um preto a mais no cemitério”.
É dele também o ótimo instrumental e "Qual Mentira Vou Acreditar?",
parceria com Brown e a faixa mais light
do repertório. A letra conta as funções de festas e pegações, mas nem por isso
deixa de tocar no tema do racismo, como nesta engraçada passagem em que Ice
Blue relata a Edi um episódio em que levava uma “mina” no carro. “Eu ouvindo James Brown, pá.../ Cheio de
pose/ Ela perguntou se eu tenho, o quê? Guns N' Roses?/ Lógico que não!/ A mina
quase histérica/ Meteu a mão no rádio e pôs na Transamérica/ Como é que ela
falou?/ Só se liga nessa/ Que mina cabulosa/ Olha só que conversa/ Que tinha
bronca de neguinho de salão, (não)/ Que a maioria é maloqueiro e ladrão (aí
não)/ Aí não mano! Foi por pouco/ Eu já tava pensando em capotar no soco”.
“Mágico de Oz”, outra de Edi
(“Queria que Deus ouvisse a minha voz/ E
transformasse aqui no mundo Mágico de Oz”), é mais um sucesso de
“Sobrevivendo...”. Evidencia o mundo desamparado da mendicância infantil e a
falta de esperança e horizonte de quem nasce na pobreza. Por falar em “magia”,
Mano Brown manda a última joia do disco: “Fórmula Mágica da Paz”. Espécie de
autobiografia, canta a reflexão do próprio autor quando se deparou com a
fronteira entre o crime ou o “caminho do bem”. Com um fluxo narrativo
impressionante, Brown relembra: “Não tava
nem aí, nem levava nada a sério/ Admirava os ladrão e os malandro mais velho/
Mas se liga, olhe ao seu redor e me diga/ O que melhorou? Da função, quem
sobrou?/ Sei lá, muito velório rolou de lá pra cá/ Qual a próxima mãe que vai
chorar?”. Momentos trágicos, como o de um “rapaz comum” da comunidade que
morre baleado, o fazem pensar: “Na parede
o sinal da cruz/ Que porra é essa? Que mundo é esse?/ Onde tá Jesus?/ Mais uma
vez um emissário/ Não incluiu Capão Redondo em seu itinerário/ Porra, eu tô
confuso/ Preciso pensar/ Me dá um tempo pra eu raciocinar/ Eu já não sei
distinguir quem tá errado, sei lá/ Minha Ideologia enfraqueceu/ Preto, branco, polícia,
ladrão ou eu”. Os questionamentos, entretanto, logo dão lugar à consciência:
“Agradeço a Deus e aos Orixás/ Parei no
meio do caminho e olhei pra trás/ Meus outros manos todos foram longe de mais/ ‘Cemitério
São Luis, aqui jaz’.”
“Salve” repete a base de
“Jorge...”, finalizando o disco de rap mais vendido da história mesmo que por
um selo independente, Cosa Nostra, ou seja, sem a estrutura de uma grande
gravadora por trás. Oficialmente, foram 1,5 milhão de cópias comercializadas,
porém, não se contabilizam aí os outros milhões de cópias ilegais, uma vez que se
estava no auge da pirataria de CD’s no Brasil à época – nós mesmos, Lê e eu,
ouvíamos um pirateado naquela fatídica noite de 1º de janeiro.
Mesmo que criticável pelo
discurso de “vingança racial”, pela apologia ao ódio ou até da visão machista e
homofóbica por vezes, é inegável a importância do papel que cabe aos Racionais
MC’s na cultura pop brasileira nesses últimos 20 anos desde que
“Sobrevivendo...” foi lançado. Afinal, uma voz calada por tanto tempo e das
maneiras mais cruéis que o ser humano é capaz, caso do povo africano e seus
descendentes diretos, quando posta para fora, só pode vir carregada de coisas
boas e ruins. A causa dos direitos humanos é mais valiosa do que qualquer coisa
quando a mesma é subvertida. A única solução é a reação. Confesso que, naquela primeira
audição, o discurso maniqueísta me chocara. Mas quem sou eu, um “mano” cuja
história de vida sempre teve boas condições sociais (ou seja: protegido de uma
série de constrangimentos e humilhações), para julgar? Neste sentido, o rap brasileiro dos
anos 90, capitaneado pelos eles, alinhou-se ao que o samba do morro representou
ao longo do século XX: a resistência. Se o samba agoniza mas não morre, o rap
sobrevive e mata. E se hoje se fala tanto e com propriedade de “empoderamento”
das minorias e “orgulho negro”, a tal missão que os Racionais se impuseram,
violentamente pacífica, foi cumprida com êxito.
Racionais MC's - "Diário de um Detento"
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FAIXAS
1. Jorge da Capadócia (Jorge
Ben)
2. Gênesis (Mano Brown)
3. Capítulo 4, Versículo 3
(Brown)
4. Tô Ouvindo Alguém Me Chamar (Brown)
5. Rapaz Comum (Edi Rock)
6. Instrumental (Rock)
7. Diário de Um Detento
(Brown/ Jocenir)
8. Periferia é Periferia (Em
Qualquer Lugar) (Rock)
9. Qual Mentira Vou
Acreditar (Brown/Rock)
10. Mágico de Oz (Rock)
11. Formula Mágica da Paz
(Brown)
12. Salve (Brown)
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OUÇA O DISCO
Racionais MC's - Sobrevivendo no Inferno
Muito bom. Inegavelmente uma das obras mais necessárias da discografia nacional. Perfeitas as ressalvas à vingança social, até a algum estímulo à violência, mas ela é perdoável por toda uma vida, muitas vidas, muitas gerações de humilhação e sofrimento.
ResponderExcluirDá uma olhada no capítulo final daquele livro que te dei do Tábua de Esmeralda, "Zumbi". Lá, o autor estabelece um paralelo entre o tipo de defesa da negritude dos Racionais e o do Jorge Ben. Não só é interessantíssimo e muito bem analisado, como chega a ser emocionante.
Parabéns, mais um excelente A.F.