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terça-feira, 30 de janeiro de 2018

"Viva - A Vida é uma Festa", de Lee Unkrich e Adrian Molina (2017)



Uma das marcas mais confiáveis da indústria cinematográfica da atualidade não é necessariamente um cineasta ou uma escola, mas, sim a Disney/Pixar. Invariavelmente, suas produções, seja em curta ou longa metragens, agradam (quando não surpreendem) tanto quem busca por entretenimento quanto por arte. “Viva – A Vida é uma Festa”, de Lee Unkrich e Adrian Molina, é um bom exemplo. Para quem como eu e Leocádia, que nos sentimos desassistidos diante da grade dos cinemas comerciais, optar por ver uma animação da Pixar ao invés de qualquer blockbuster tão “real” quanto descartável é um acerto no alvo. Afora a qualidade técnica indiscutível, os filmes da produtora estabelecem alto poder de diálogo com o público adulto (às vezes, até priorizando-o, caso de “Wall-E”) e, ao mesmo tempo, divertem a criançada.
“Viva” tem, de fato, grandes méritos, tanto que é um dos concorrentes ao Oscar de Melhor Animação e Canção Original deste ano. Na história, Miguel Rivera é um menino de 12 anos que quer muito ser um músico famoso, mas ele precisa lidar com a desaprovação de sua família de tradicionais sapateiros traumatizada com um episódio do passado em que um músico os abandonou para nunca mais voltar. Determinado a seguir os passos do seu ídolo, o cantor Ernesto de La Cruz – espécie de Roberto Carlos mexicano, mas já falecido –, ele acaba desencadeando uma série de eventos e aventuras no feriado mexicano do Dia dos Mortos, celebrado com devoção no México. Estes, por sinal, envolvem tanto a sua família – sejam os entes vivos ou não – quanto o misticismo peculiar do povo mexicano, cuja linha entre vida e morte é estreita – pelo menos, quando os sentimentos estão aflorados para o feriado de finados.
O simpático Dante: mensageiro entre
os dois mundos
As cores vibrantes, a luz tropical, a musicalidade, as formas e as crenças do México são muito bem representados no roteiro, que engendra uma trama capaz de unir tudo isso sem deixar de ser um verdadeiro entretenimento. Afinal, não apenas de coisas agradáveis se compõem os fatos da trama. Se tem o colorido das roupas e da música ou a beleza onírica da mitologia, há também os tabus, como a presença permanente da morte e a passagem do tempo. Assim, a história equilibra com felicidade em seu ritmo narrativo a tríade aventura/humor/drama, sine qua non para uma produção da Pixar, com estes traços característicos da cultura mexicana, inserindo-o na narrativa tradicional do cinema norte-americano mas sem deturpá-los.
Um dos aspectos folclóricos a que me refiro é exatamente a morte e como esta se dá no imaginário do povo mexicano. A sensibilidade de artista e de criança do pequeno Miguel é usada para mostrar como a antiga cultura mexicana mistifica a morte e, ao mesmo passo, a elabora melhor do que o convencionado no Ocidente. Seja no mundo dos vivos ou dos mortos, o que mantém as relações é o afeto e a energia que este emana. Sem a energia vital, capaz de manter acesa a memória afetiva, as pessoas são esquecidas e desaparecem. Este lado espiritualista do ser mexicano, advindo dos povos indígenas originários, é abordado com delicadeza e reverência. Um exemplo são os bichos, como o simpático cão Dante, naturalmente conectado com os diferentes planos de existência por sua condição de pureza animal.
O nível de profundidade que o filme atinge é realmente louvável. Além da questão da morte e dos laços familiares e suas implicações na forma de ser e ver o mundo, a história toca, num âmbito mais apurado, na questão da identidade. A busca do menino Miguel por aquilo que lhe faz sentido, a música (mesmo que, para isso, tenha preciso mover, literalmente, “céus e terras”), bem como a ligação que isso tinha com seu laço sanguíneo, vai ao cerne dessa premissa. Seja na fase infantil ou adulta, é sempre tocante a um espectador ver numa obra de cinema o encontro emocional com as origens – mesmo que o personagem seja um desenho animado inventado e não necessariamente uma pessoa interpretando um papel.
O pequeno Miguel em sua aventura no mundo dos mortos
Outro aspecto interessante de “Viva” é a evidente valorização da música. Esta ganha nuança de arte transformadora tanto no sentido biográfico de Miguel quanto biológico, uma vez que ele guarda geneticamente o talento de seu antepassado. Porém, também pode ser vista como uma força capaz de unir as almas deste plano ou do além. Ou melhor: de provar que não existem fronteiras para quem ama. Momento muito bonito do filme é quando Miguel tenta de todas as maneiras reavivar a memória de sua “mamá”, a bisavó velhinha e praticamente sem reação sobre uma cadeira. Ele só o consegue quando toca ao violão uma música do pai dela, seu tataravô. É o reconhecimento de si mesmo na forma da vibração energética motivada pela música, bem como da apreensão, mesmo que somente naqueles instantes mágicos em que os sons ressoam, do tempo: o novo que segue, agora a seu modo, aquilo que é da essência dos Rivera. Além disso, a cena é o próprio cinema em sua acepção: o registro da memória.
Toda criança – ou adulto – tem a sua animação da Pixar preferida. Há os que adoram “Toy Story”, “Os Incríveis”, “Up – Altas Aventuras”, “Monstros S.A.” ou outro título. A variedade e a qualidade é grande. “Viva”, com certeza, passa a figurar nessa lista. Ao se valer como tema o México com suas tradições, folclores e história, o filme presta uma bela homenagem à cultura do país vizinho de Estados Unidos numa época em que este vem sofrendo com a política protecionista do governo Trump, principalmente no que diz respeito aos imigrantes. Resta ver se, na premiação do dia 4 de março, essa valorização vai realmente se concretizar. Qualidade para isso, “Viva” tem sem nenhuma dúvida.





Daniel Rodrigues

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