Se alguém me pedisse uma definição sobre o que foi a quinta
edição do POA Jazz Festival, sexta e sábado passados, no Centro de Eventos do
Barra Shopping, eu diria que os produtores e curadores Carlos Badia, Carlos
Branco e Rafael Rhoden estavam com um olho no passado e outro no futuro. E que
esta curadoria acabou, por questões financeiras, fazendo uma grande noite de
música na sexta e uma mediana no sábado.
A mirada no passado iniciou no primeiro dia com o excelente Tributo a Geraldo Flach, a cargo do
quinteto do pianista e tecladista osoriense Cristian Sperandir. Desde a morte de Geraldo, em janeiro de 2011,
suas composições estavam fora dos repertórios dos inúmeros grupos que fazem a
chamada MIG - Música Instrumental Gaúcha. Graças aos esforços da produtora e
viúva do pianista, Ângela Moreira Flach,
Sperandir ao lado de seu grupo (Antonio Flores na guitarra; Caio Maurente no
baixo; Sandro Bonato na bateria e Bruno Coelho na percussão) conseguiu não
somente resgatar a obra do mestre mas atualizá-la para a turma mais jovem que
não conhecia o trabalho de Geraldo. Para quem já conhecia, foi uma revelação
ver que a nova geração usa o passado para catapultar a música para os dias de
hoje. Destaque para o tema de abertura, “O Voo Da Águia”, uma das composições
mais conhecidas de Geraldo Flach.
Tributo a Geraldo Flach com o quinteto de Cristian Sperandir |
Por outro lado, os holandeses do Jasper Blom Quartet mostraram o que é este misterioso jazz europeu,
filho dileto da sonoridade engendrada pelo produtor Manfred Eicher em sua
gravadora ECM, desde o início dos anos 70. Liderados pelo saxofonista tenor, os
três músicos de sua banda (o incrível Jesse Van Ruller na guitarra; Frans Van
Der Hoeven no baixo e Jonas Burgwinkel na bateria) apresentaram uma música
densa e consistente sem deixar de se comunicar com o público. O baterista Burgwinkel
– que já havia estado em Porto Alegre uns anos atrás como integrante do Pablo Held Trio e participado ao vivo
do Sessão Jazz na FM Cultura – apresentou um estilo levíssimo em seu
instrumento, enquanto o guitarrista Van Ruller mostrou porque é um dos mais
aclamados instrumentistas da Europa nos últimos 15 anos.
Já o grupo Silibrina,
liderado pelo pernambucano Gabriel Nóbrega – filho do violinista Antonio
Nóbrega –, mesclou a intensidade da performance com a destreza de seus músicos
e a variedade dos ritmos brasileiros. Usando seus dois discos lançados como
base do repertório (“O Raio”, de 2017 e “Estandarte”, de 2019), Nóbrega e seus
asseclas encantaram a plateia com a energia indomável de suas composições,
mostrando que seu lugar é mesmo em frente ao público.
Grande presença de público na 5ª edição do festival |
O momento mais esperado desta quinta edição do POA Jazz
Festival aconteceu já na madrugada de sábado quando o grupo gaúcho Raiz De Pedra subiu ao palco.
Remanescente da época de ouro da MIG, nos anos 80, a banda trouxe quatro
integrantes da formação original (Márcio Tubino nos saxofones e flautas; Pedro
Tagliani nas guitarras e violões; Ciro Trindade nos baixo acústico e elétrico e
César Audi na bateria) mais os convidados Marcelo Nadruz e Luiz Mauro Filho no
piano e teclados e Fernando Do Ó na percussão.
O interessante é que mesmo a distância e o tempo não
engessaram a música do Raiz, que continua atual, intrincada e cheia de
dissonâncias e quebras de tempo. Meu amigo Juarez Fonseca achou que o show foi
longo demais, no que acabei concordando com ele, apesar de ficar fascinado com
tudo o que foi apresentado. Só posso desejar vida longa ao Raiz e seu retorno..
Depois desta noite memorável de sexta-feira, eu,
particularmente, tinha poucas expectativas em relação ao que iríamos presenciar
no sábado. A noite, porém, começou em alta com o choro moderno do Sexteto Gaúcho. Criado a partir das já
lendárias oficinas do gênero na cidade, os seis músicos (Elias Barbosa no
bandolim, Lucian Krolow na flauta; Matheus Kleber no acordeon; Guilherme
Sanches, o Feijão, no pandeiro; Alexandre Susin no cavaquinho e o excelente Mathias
Pinto no violão de 7) circularam pelo futuro nas composições próprias mas
sempre com um olho na tradição, destacando a linda versão de “Ternura”, de Kximbinho.
Como o choro sempre foi um gênero que exigiu de seus
instrumentistas, os músicos do Sexteto Gaúcho não deixaram dúvidas de que se
inscrevem entre os melhores do Brasil neste momento. Infelizmente, na minha modesta porém sincera opinião, houve
uma queda brusca de qualidade nas três atrações finais do festival. O grupo Rafuagi Jazz Combo prometia uma mistura
de jazz com a “modernidade” do hip-hop. Há de se convir que, mercadologicamente
– especialmente nos Estados Unidos –, o hip-hop é a bola da vez. Os artistas
mais festejados dos últimos 20 anos vem deste estilo (Jay Z, Kanye West,.
Eminem, entre outros). Aqui no Brasil, se faz cada vez mais rap e hip-hop mas
esta música fica circunscrita aos seus guetos, principalmente na periferia, com
a esmagadora maioria da massa, ouvindo “funk”, “sertanejo universitário” (!!!)
e pagode com teclado. O que se viu no palco do POA Jazz Festival foi uma
tentativa de unir estas duas linguagens, onde o “jazz” levou a pior. Ou seja,
ficou em casa, mesmo com os esforços do grupo Quarto Sensorial, que pra mim fez “indie rock” com muito noise.
Já Rafa e Ricky Rafuagi fizeram aquele discurso já conhecido mas acabaram
conquistando parte da plateia com sua adaptação do Hino Riograndense,
criticando os festejos do 20 de setembro.
Após dividir o público, se esperava uma certa calmaria com a
cantora meio francesa, meio dominicana Cyrille
Aimée e o violonista Diego
Figueiredo. Se valendo de um repertório irrepreensível, Cyrille, como boa
discípula de Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan e Betty Carter, mergulhou de cabeça
no scat singing (aquele shu-bi-du-ba vocal). O problema é que
tirando os excessos desta prática, pouco sobrou de personalidade na vocalista.
O exímio violonista Figueiredo se esforçou para arranjar “A Night In Tunisia”,
de Dizzy Gillespie, em bossa-nova, tentando se adequar ao estilo da cantora,
fascinada por MPB. Em outros momentos, ela conseguiu conquistar a plateia com
suas versões de “La Vie En Rose” e “Just The Two Of Us”, que foi o bis. Mas
ficou devendo um estilo e uma postura própria, o que se vê em cantoras jovens
como Cecile Mclorin Salvant e Jazzmeia Horn.
A cantora meio francesa/meio dominicana Cyrille Aimée: bom, mas nem tanto |
Pra fechar, tivemos a cantora e tecladista Davina Lozier e seus Vagabonds. Seguindo a trilha já
apresentada por aqui pelos canadenses do The Shuffle Demons e pelas argentinas
do Bourbon Sweethearts, Davina faz uma música retrô, buscando os sons e os
clichês do jazz, do R&B e do rock dos anos 50. Sua banda é competente com
destaque para o trombonista Andrew Rogness. Em minha opinião, com toda a
intensidade mostrada no palco do Barra Shopping, Davina & The Vagabonds ficaram
devendo em qualidade de composição. Tanto que os dois momentos mais
interessantes e intensos do show foram as recriações de músicas de Fats Domino
e de Etta James. A própria cantora admitiu que sua versão nem chegaria aos pés
da diva falecida em 2012. Foi um final alegrinho para o festival deste ano.
Homenagem do festival ao jornalista, escritor, pesquisador e crítico musical Juarez Fonseca |
Gostaria de elogiar a escolha de Juarez Fonseca como
homenageado desta edição e de Lucio Brancato como apresentador. Além de serem
meus amigos particulares, admiro o trabalho dos dois e fiquei muito feliz em
vê-los apoiando esta iniciativa bem-sucedida.
De qualquer maneira, louve-se a coragem e espírito de
coletividade que o trio Badia, Branco e Rhoden tiveram neste ano tão conturbado
para o país, de uma maneira geral, e para a cultura, especificamente, em
realizar o POA Jazz Festival. Obrigado, rapazes. Até a sexta edição!
Confira mais momentos do festival:
texto: Paulo Moreira
fotos: André Freitas - POA Jazz Festival
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