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segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

1º Festival de Cinema Negro em Ação - Curtas-Metragens

Lugar certo, hora muito errada


 
Estar no lugar certo e no momento certo nem sempre é um privilégio. A raridade desta pertinência em momentos históricos pode ser, por ação de força maior, marcada justamente pelo oposto daquilo que se representa. Foi isso que aconteceu com o 1º Festival de Cinema Negro em Ação: estar no lugar e no momento certos. Ou fatalmente errados. Justificadamente programado para iniciar no Dia da Consciência Negra, no 20 de novembro de 2020, o festival, promovido pela Secretaria de Estado da Cultura, por meio da Casa de Cultura Mario Quintana e do Instituto Estadual de Cinema, e encabeçado pela cineasta Camila de Moraes, jamais previa que a brutalidade do racismo se encarregaria de, horas antes de raiar o sol para esta data de celebração, ver João Alberto de Freitas ser assassinado diante de câmeras de celular e dos olhos coniventes da opressora estrutura social brasileira. E isso, no lugar certo e igualmente errado: a mesma Porto Alegre onde foi criada e relegada a data e onde o festival foi realizado.

Mal comparando, assim como aconteceu com Barack Obama em 2009, que acordou Nobel da Paz pelo simples (e grandioso!) fato de ser o primeiro negro presidente dos Estados Unidos, o Festival nem havia começado sua exibição e já entrava para a história da produção cultural do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre pelo triste, marcante e denunciador episódio. Fez, contudo, com aquilo que lhe é machado e lança: com arte. Melhor representatividade disso foram os curtas-metragens, uma das categorias do festival juntamente com a de Videoclipes e Videoarte e de Longas-Metragens. Os 33 títulos muito bem selecionados pela curadoria deram, cada um a seu modo e circunstância, um panorama não só da produção audiovisual negra nacional como, sintonizados com os temas urgentes e circundantes da questão preta, também da cultura afrobrasileira em suas mais diversas manifestações, da religiosidade à arte, do gênero à exclusão social, do racismo ao tema indígena.

"Entremarés": sensibilidade e arte reconhecidas no festival
A diversidade entre os curtas exibidos foi bastante celebrável, ainda mais para uma primeira edição. Drama, comédia, fantasia, documentário, animação, videoarte, cinebiografia. Teve de tudo um pouco. E mais importante: todos com o discurso afiado para as questões da negritude, seja denunciando as desigualdades, exaltando os valores ou resgatando elementos da herança afro. Os títulos selecionados pelo júri passam muito bem a ideia desta multiplicidade de propostas e fazeres condizentes com a causa. O filme escolhido como Melhor Curta-Metragem Nacional, o pernambucano “Entremarés”, de Anna Andrade, é exemplar. Documentário de estética riquíssima em elementos narrativos e de olhar sensível e humano, retrata a vida e o trabalho de mulheres que sobrevivem da atividade pesqueira na Ilha de Deus, comunidade da Zona Sul do Recife. Já o Melhor Curta-Metragem Gaúcho, “Flamingos”, é igualmente relevante. Num conteúdo transmídia, o documentário, dirigido por José Pedro Minho Mello, aborda de forma ousada e sensível um tema pouco discutido: o universo homossexual no futebol (ainda mais no patriarcal Rio Grande do Sul), ainda retratado como um meio da virilidade masculina e hetero.

O gaúcho "Flamingos" levanta um tabu na sociedade:
a homossexualidade no futebol

Outro fator observado entre os curtas concorrentes foi a diferença de realidades nos quais foram produzidos, o que conta bastante no caso de realizadores negros – muitos em seus primeiros projetos – e que transborda para a produção em si. A dificuldade e recentidade do acesso ao meio audiovisual por parte de realizadores negros, as diferenças sociais e produtivas das diversas regiões do País e a própria maturação do festival, ainda um projeto estreante, podem explicar tais distâncias. As diferenças técnicas entre os filmes, no entanto, não são o mais importante. Afora a compreensão dos contextos, o que resultou, em sua grande maioria, é suficientemente satisfatório e louvável. 

O belo "Inspirações" levou 
menção honrosa
Denotam bem estes polos de como ambos funcionam em suas realidades dois documentários exibidos. Um deles é “Mulheres Negras - Projetos de Mundo”, de Day Rodrigues e Lucas Ogasawara (SP). Tecnicamente perfeito, o filme conta com a participação de nomes como Djamila Ribeiro e Preta-Rara e transmite com contundência sua mensagem sobre o empoderamento e lugar de fala femininos, valendo-se do formato clássico de depoimentos conjugados com interferências gráficas e lances performáticos. Já outro doc, “Inspirações” (RJ), de Ariany de Souza e equipe, de produção bem mais enxuta, pode até incorrer em “falhas” técnicas em alguns momentos, como na operação da câmera ou no acabamento dos créditos de encerramento, mas cumpre o papel que muito filme milionário não tem tal capacidade artística, que é o de contar uma história e envolver emocionalmente o espectador nela. Num formato de “work in progress”, “Inspirações” traz um importante aspecto da produção audiovisual negra no Brasil, que é a Educomunicação, ou seja, produções realizadas dentro de instituições escolares e que muitas vezes são a porta de entrada para jovens realizadores ao mundo do cinema.

Ariany de Souza e equipe, aliás, estão entre as quatro menções honrosas as quais o júri considerou importante distribuir levando em conta o numeroso volume de ótimas produções de curtas-metragens concorrentes e a grande diversidade que estas obras apresentaram. Mereceram tal destaque ainda Manuela Miranda, como atriz pelo seu papel em “Quero ir para Los Angeles”, de Juliana Balhego (RS); Filme de Ficção para "Faixa de Gaza", de Lúcio César Fernandes Murilo (PB); e Filme Infanto-Juvenil para "4 bilhões de infinitos", de Marco Antonio Pereira (MG). Além destes, “Projeto Perigoso”, de Fabricio Zavareze (RS), foi vencedor do Júri Popular na mesma categoria.

Filme “Quero ir para Los Angeles”, de Juliana Balhego (RS)


Protestos, manifestações, indignações e notas de repúdio foram emitidas no último e tristemente emblemático 20 de novembro por causa da morte de João Alberto por um motivo aparentemente banal. Foi quando, também, se dava o pontapé inicial para o Festival, motivado por aquele que devia ser o principal e único motivo do Dia da Consciência Negra: celebração. Sabe-se, no entanto, que tanto não foi banal o motivo da morte de João Alberto, visto que denunciador do racismo estrutural da sociedade gaúcha e brasileira, quanto o festival foi ainda mais incisivo ao levantar outro ponto essencial desta questão, que é a discussão sobre o racismo. Quem sabe, não se estaria mais avançado nesta discussão se, no passado, tivesse sido instituída a data como feriado municipal, não apenas pela necessidade e urgência, como, inclusive por esta ter saído de um porto-alegrense, o poeta Oliveira Silveira? Quem sabe o desfecho de João Alberto não precisasse ser tão trágico e revoltante? Devaneios a que a brutal realidade impinge, sem dó, a necessidade de um aprofundamento real do preconceito enraizado. A depender da produção audiovisual de curtas-metragens negros, esta discussão se dará com muita propriedade. E o Festival Cinema Negro em Ação em si ainda mais. Mesmo que não tivesse trazido a qualidade que apresentou, ainda assim se configuraria como um símbolo da luta negra no percurso do audiovisual gaúcho, com de fato ocorreu. Pelo certo ou pelo errado, entrar para a história às vezes tem um gosto amargo.


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Confira a lista completa dos vencedores no festival:

Videoclipe e Videoarte
Videoclipe
RS:
“Cristal – Ashley Banks”, com direção de Cleverton Borges
Nacional:
“Você Bagunçou Comigo – Hyago Sebaz feat. Allvdin”, dirigido por Jessica Lauane (MA)
Menção honrosa:
“Killa – Enme”, com direção de Jessica Lauane (MA)

Videoarte:
RS:
“Rituais Virtuais”, de Valéria Barcellos
Nacional:
“Marvin.gif PART II”, de Marvin Pereira (BA)
Internacional:
“Travessia”, de Terra Assunção (Portugal)
Menção honrosa:
“Canudos em minha pele”, de Rosa Amorim (PE)

Jurados: Ellen Corrêa (Macumba Lab), Thiarles Batista (IEAVi-RS) e Domício Grillo (TVE - RS)


Curta-Metragem
RS:
“Flamingos”, de José Pedro Minho Mello
Nacional:
“Entremarés”, de Anna Andrade (PE)
Júri Popular:
"Projeto Perigoso”, de Fabrício Zavareze (RS)
Menções honrosas:
Atriz: Manuela Miranda em “Quero ir para Los Angeles”, de Juliana Balhego (RS)
Filme Revelação: “Inspirações”, de Ariany de Souza e equipe (RJ)
Filme de Ficção: “Faixa De Gaza”, de Lúcio César Fernandes Murilo (PB)
Filme Infanto-Juvenil: "4 Bilhões de Infinitos", de Marco Antonio Pereira (MG)

Judados: Daniel Rodrigues (Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Sul), Gautier Lee (Macumba Lab), Luiz Felipe de Oliveira Teixeira (Conselho de Ações Afirmativas do IECine) e Pedro Caribé (Cinema de Terreiro, Salvador - BA)


Longa-Metragem:
Nacional:
“Raízes”, de Simone Nascimento e Wellington Amorim (SP)
Menç]ão Honrosa:
“De Cabral a George Floyd. Onde arde o fogo sagrado da liberdade”, de Paulinho Sacramento (RJ)

Jurados: Jessé Oliveira (IEACen-RS), Mário Costa (Macumba Lab), Gisela Pérez Fonseca e Felipe Aljure (Festival Internacional de Cinema de Cartagena de Indias/Colômbia) 


Daniel Rodrigues


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