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sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

COTIDIANAS nº702 - ESPECIAL DE ANO NOVO - Pílula Surrealista #43

 

Cronus chegou empolgado chamando por sua Réa ainda do outro lado da porta enquanto girava a chave para entrar em casa:

- Amor, amor! Olha só a minha nova invenção! E essa é show!

- Oi, ‘mor! Cumé? Não entendi... Tô aqui na cozinha. O que você falou mesmo?

- Falei que eu tenho uma nova invenção, das boas! – reiterou ele, aumentando o volume da voz para que esta chegasse à cozinha enquanto tirava o casaco e o soltava junto com a valise sobre a poltrona da sala apressado para mostrar à esposa a novidade.

- Vem logo! – chamou ele, já sentado sobre a ponta da poltrona mal segurando a própria ansiedade.

- Tô indo, tô indo! Peraí. – respondeu ela já se deslocando em direção à sala secando as mãos no pano de prato, o qual largou sobre o ombro direito enquanto dava um selinho no marido e puxava um banquinho para posicionar-se de frente para ele. Sabia que, como das outras incontáveis vezes, Cronus atribuía cerimônia mitológica a situações como aquela em que lhe apresentava em primeira mão suas ideias mirabolantes.

- Pronto, tô aqui. Que invenção é essa que você tem pra me mostrar dessa vez? – disse, soltando um leve sorriso de amoroso deboche. Réa admirava e amava o marido. Sabia de sua inteligência superior, mas também que seu QI elevado às vezes o levava a dispersar-se. A “viajar”, como se diz por aí. Devia ser por causa de sua configuração astrológica, pensava – ou pelo menos, sempre buscava nisso uma fugaz explicação. Por isso, não tinha como levar totalmente a sério as peripécias do seu Professor Pardal doméstico. Ainda mais considerando aquelas últimas “descobertas”...

- Excelentíssima senhora Réa: - iniciou ele - Fique registrado nos anais que, a 17 dias do mês de agosto deste corrente ano, o seu excelentíssimo senhor esposo, no caso eu, Cronus, descobriu uma forma de manipular o tempo! – entoou-lhe, erigindo o pescoço e impostando a voz num gesto de anúncio oficial.

- Sério, Cronus?! Não! Mentira sua. Você tá zoando comigo. 

- É sério! Juro por Deus! Pelos deuses todos, Urano, Gaia, nossos filhos e tudo mais. 

- Mas... como assim? Você construiu uma máquina do tempo por acaso? 

- Não, eu não precisei de máquina nenhuma. Não preciso de nada pra manipular o tempo. Quer ver como é? Tchan, tchan, tchan, tchan! Você está preparada? – indagou ele, esbugalhando os olhos e projetando o corpo para frente como que para criar suspense.

- Tô, ‘mor! Fala logo, que ainda tenho que terminar nossa comida. 

- Tá, bem, tá bem... – falou postando as mãos espalmadas uma de cada lado da cabeça e olhando para baixo de maneira a achar a concentração certa para a primeira exibição do seu feito. Ficou assim e em silêncio por alguns bons segundos. Já impaciente e preocupada com as panelas no fogo, a esposa apressou-lhe:

- Cumé que é, 'mor: vai mostrar ou não vai?! Tenho que voltar pra cozinha.

- Peraí! Você tá me apressando!

- Não me diz que vai ser que nem daquela vez que você me disse que era capaz de comer uma pedra? Ou que vomitaria seus filhos na minha frente?! Que nojo aquilo, Cromus! Nunca mais repita uma sandice dessas! Ou pior: quando você disse que ia virar cavalo! Acho que aquilo foi só pra impressionar aquela fulaninha do clube, aquela tal de Filira, né? Eu te conheço, seu Cronus! Tô de olho em ti...

- Não, Réa! Nada a ver. Não me desconcentra. E dessa vez é sério. É quente. Você quer saber ou não?! – mostrando-se já aflito.

- Quero, sim, ‘mor. Vai lá: me mostra. – falou Réa em tom paciencioso, reacomodando-se no banco em forma de mostrar-se uma espectadora atenciosa. 

- Tá bem... é assim.

...

- ... assim como? – perguntou ela.

- Assim: já estamos em 1º de janeiro.

- Ah, é?  - surpreende-se a esposa, que, convencida da veracidade, não escondeu seu orgulho pela capacidade do marido.

- Viu só? – disse ele, com um largo sorriso de satisfação por debaixo da espessa barba.

- Sim! Tô vendo! Que demais, hein?! Mas... o que tem de diferente de antes?

Ficaram olhando-se sem dizerem nada, tentando achar tal resposta. Réa virou a cabeça em direção à cozinha e depois para a janela da sala, a qual dedicou segundos de eternidade de reflexão silenciosa. Até que, como que desperta por um anjo, piscou várias vezes os cílios e sacudiu rapidamente a cabeça:

- Tenho que voltar pra cozinha, ‘mor. Terminar nossa comida. Estou com uma fome! E você deve estar também. Parabéns, viu, ‘mor? Vou lá - voltou para a cozinha, deixando-lhe antes um beijo na testa.

- Ah, tá... tudo bem... obrigado... sim, estou com fome, sim – assentiu com a esposa, num ar um tanto decepcionado. Não com ela, mas consigo mesmo.


Daniel Rodrigues

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