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quarta-feira, 1 de novembro de 2023

cotidianas #812 - Pílula Surrealista #55

 

- Cara, você nunca sentiu que precisava extrair mais do mundo, da vida? Uma sensação de que, sei lá, não consegue aproveitar o bastante, que faltam sentidos a nós humanos pra absorver as coisas com mais vigor, mais verdade.

- Como assim?

- Olha isso aqui à nossa volta: dá uma vontade de captar mais o que é bom, o que é vivo, de sentir mais o gosto das coisas, porque parece que o que a gente tem nesse mundo real não dá conta.

- Pra isso serve a arte. "A arte existe porque a vida não basta". Não é assim que o poeta diz?

- Não, não é só de arte que eu tô falando. Isso que eu digo é mais do que arte ou qualquer coisa palpável. É um desejo de vida mesmo, entende? Não é só respirar, é... 

- Explica melhor.

- Humm, sei lá... não sei nem se eu sei dizer, mais é o que eu sinto, sabe? É como se necessitasse sentir com mais inteireza esse milagre da vida. O sol que ilumina as árvores, o azul ou o preto do céu, o vento que bate na pele, a beleza feroz dos relâmpagos, o verde da relva, o colorido das flores... Tudo isso não cabe na compreensão, não acha?

- É, acho que sim.

- Pois é, tudo isso não cabe, não tem como pegar, como conter, como comprimir. Escapa. Chega a me dar vontade de comer!

- Comer o quê?

- O mundo.

- Humm...

- Sim, comer o mundo! Uma garfada, uma mordida na polpa. Como um pão, uma comida. Uma carne.

- Olha, gostei dessa: carne do mundo.

- É, isso mesmo: sentir o gosto da vida como quem saboreia a carne do mundo... Impossível, né?

- É... quem sabe um dia.

- Pois é: quem sabe.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 10 de outubro de 2023

cotidianas #809 - Pílula Surrealista #54

 

O poeta, anacrônico, perde-se na fisiologia do mundo digital, transformador de tudo. O papel, a pena, a tinta, a traça. Nada mais. Nunca mais. Na nuvem de palavras - soltas, acotovelando-se, daninhas - o poeta se dispersa em si próprio. Dilui-se entre letras. Até sumir.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

cotidianas #789 - Pílula Surrealista #53

 

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

Confraternizavam os amigos alegremente na mesa do bar regados a cerveja, a qual era substituída regularmente pelo atencioso garçom. Quase maquinalmente, ele trocava a garrafa vazia e servia os copos...

... Até que um deles se deu conta de que a mesa onde estavam sentados ficava entre dois espelhos, um em cada parede, uma de frente para a outra, gerando, naturalmente, reflexos repetidos infinitamente de ambos os lados. Percebeu, então, que seria inevitável que se embriagassem até não aguentarem mais, e que suas sinas estavam fatalmente condicionadas a nunca mais levantarem-se dali e arriscarem outro movimento que não o de beberem e resistirem em cair. A luz um dia se apagaria para salvá-los do reflexo?

Confraternizavam os amigos alegremente...


Daniel Rodrigues


quinta-feira, 22 de dezembro de 2022

cotidianas #784 - Pílula Surrealista #52

 

Caroline era muito querida pelos colegas de firma. Tanto que foi um choque para o grupo quando souberam que ela havia sido demitida. A notícia, dada pela gerente de RH, caiu como uma bomba silenciosa no meio do escritório. Incrédulos, os colegas se entreolhavam, uns com lágrimas nos olhos, outros tentando conter a indignação ou cabisbaixos ou abismados ou recorrendo à reza de um terço. Como ficariam sem Caroline? E as visitas dela aos setores... e o "bom dia" que não mais receberiam... e o sorriso largo, a risada encantadora... os gestos educados...? Passou pela cabeça de um deles deflagrar uma greve. Não seria estranho que quisesse também, em represália, implantar uma bomba bem debaixo da mesa da gerente. Mas não poderiam, sabiam. 

O jeito foi sequestrar Caroline antes que ela pusesse o pé na rua e escondê-la amarrada no porão. Ali, davam-lhe água e a alimentavam com os restos da refeição de todos os colegas arrecadada dos pratos no restaurante da esquina onde iam religiosamente todos os dias da semana. 

Acontece que custava muito alimentar alguém, assim, em tempos de crise. Afinal, o vale-refeição de Caroline havia sido desativado fazia mais de um ano, desde que a direção fizera aquela barbaridade de despedi-la. 

Soltaram-na, então. A primeira coisa que Caroline fez foi voltar à sua casa para rever marido e filhos. Ingênua, não previu que encontraria o companheiro casado novamente. Até a barba, a qual nunca havia aberto mão, estava feita, rosto limpo.

- A senhora quer alguma coisa? Não tenho trocados, me perdoe. Verônica, você tem uns 2 pilas aí contigo?

A maltrapilha e fedorenta Caroline nem deixou que a nova esposa respondesse e escapuliu, como um rato ágil e conhecedor dos atalhos subterrâneos.

A tranca de acesso ao porão estava destravada, tal como havia deixado. Então, pode retornar à nova casa, que agora lhe parecia tão acolhedora e familiar. Mesmo com a crise econômica, alguém haveria de seguir alimentando-a com o que desperdiçava da refeição diária. Sentia-se cidadã e cumpridora de seu papel social ao reaproveitar comida. Esta dignidade não iriam negar-lhe.


Daniel Rodrigues

terça-feira, 11 de outubro de 2022

cotidianas #773 - Pílula Surrealista #51

 

Ele chegou cansado do trabalho. Desgastado para usar o termo correto. Entrou pela porta e viu a esposa sentada na sala assistindo tevê. Tentou puxar uma conversa amistosa:

- Oi, amor, tudo bem? O dia foi puxado hoje na firma, sabe? Chefe cobrando resultado, cliente reclamando, colega puxando o tapete... até uma multa levei do guarda de volta pra casa.

- Arrã... - consentia ela, vidrada na tela, sem dizer mais nada além desta preguiçoso interjeição.

- Então... vou tomar um banho, sabe? Preciso. Estou exausto, acabado. Mas o banho vai me dar uma nova vida, você vai ver. - disse a ela, como se a esposa, absorvida em seu próprio mundo, tivesse algum interesse. - Vou sair um homem novo do banheiro.

A promessa foi cumprida:

- Tcharaaaaaammm! Viu só, eu não disse que sairia outro?

Ela tirou o olhar da tevê por um instante - mas somente o olhar, sem levar a cabeça junto, apenas conferindo - e constatou que, realmente, o marido mudara. Era outro homem. 

Homem, não: primata. Um mamífero antropoide de hábitos diurnos, vegetariano, muito corpulento, com ombros largos, braços compridos, dentes caninos salientes, focinho curto e orelhas pequenas. Um gorila.

Desconfiada, mas nada surpresa, a esposa moveu pela primeira vez a cabeça da direção da tela e voltou-a para o marido repaginado. Franziu a testa pensando em algo que somente a mente de mulher pensaria, e terminou formando um sorriso discreto mas genuíno no rosto. Voltou a assistir a tevê, mas agora nada entediada e não mais desfez o auspicioso sorriso.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 25 de agosto de 2022

cotidianas #766 - Pílula Surrealista #50

 

Vesti meu terno cinza nada novo, porém suficiente para apresentar-me. Fui até aquele lugar, acho que para procurar emprego, para uma reunião de trabalho, algo assim, pois jamais trajaria aquela roupa desconfortável não fosse por um motivo semelhante. Aliás, fui não é bem o termo mais preciso. Então, refaço a frase: cheguei àquele lugar de alguma maneira a qual não sei como. Voei, transpus-me, materialize-me, sabe-se lá (gostaria de saber). Só sei que, quando dei por mim, estava. Simplesmente. O importante é que lá cheguei, isso é certo. Certo também é que estava quente, muito quente. Era pouco mais do meio dia, acredito, pois o sol postava-se sobre as cabeças fazendo projetar no chão uma sombra de começo de tarde. A impressão era que, a partir dali, o sol estacionaria, como se a Terra, enfeitiçada, tivesse parado de girar por um tempo indeterminado (essa é a única possível explicação). Não seria errado dizer que aquele dia foi inteiro assim: com um sol implacável dia e noite. A lua da noite daquele dia não apareceria: o sol tomar-lhe-ia o lugar. E nem sei se era a sensação de calor que fazia embaralhar o senso de tempo. Havia, antes de mais nada, uma atmosfera suspensa, etérea, enigmática, alterada. (E não pensem que era por causa dos meus óculos escuros! Não sou desses que perdem a noção sensorial por tapar os olhos). Era como se ali eu estivesse, sim, sei que estava, mas meus pés, por dentro dos sapatos de couro, mal sentiam o chão. Nem sentiam, aliás. Os prédios industriais ao redor, perfilados dos dois lados da rua castigada pelo sol escaldante e insistente, calavam-se solenemente. Não se ouviam murmúrios de gentes, não se ouviam tintilares de ferramentas e nem rugidos de motores ou latarias, engrenagens ou buzinas. Silêncio. Só. Tudo era tão estranho quanto familiar. Silenciosamente também, presumo, ou por uma ação mágica ou imaterial, surgiu à minha frente um homem. Vestia, como eu, um terno cuja cor era até mais escura do que a do meu, o que certamente fazia concentrar-lhe ainda mais o calor, o qual subiam como labaredas invisíveis do concreto cinzento abaixo de nós. Mais do que uma simples suposição, percebi que ele devia estar mesmo sentindo mais calor do que eu - embora isso parecesse ser impossível. De forma prática, contudo, não era, pois o homem à minha frente ardia em chamas, as quais se desprendiam de sua roupa como serpentinas infernais na direção contrária a mim, mas suficientemente fortes para eu também sentir à distância seu sopro quente comendo as últimas moléculas de oxigênio do ar que rodeavam minha face. E tudo sob aquele mesmo estranho silêncio, que permanecia. Era um fogo quieto, que nem o crepitar se ouvia. Mas calor fazia, cada vez mais. O fogo ia consumir aquele homem estranho, era sabido, não demoraria muito. Porém, nem isso fez com que ele deixasse de ser educado comigo, visto que me estendeu a mão direita em cumprimento. Ao apertarmos as mãos, o homem, tal um mensageiro, disse-me, e este foi o único som que ali houve: "Lembra-se de quando você era jovem e brilhava como o sol?" Toda aquela epifania fez sentido imediatamente, então.



Daniel Rodrigues

segunda-feira, 25 de julho de 2022

cotidianas #762 - Pílula Surrealista #49


 

“Não, eu não acredito no que estou vendo! Isso só pode ser uma história surrealista! Como isso pode estar acontecendo, assim, inadvertidamente, transgredindo tudo que deveria ser lei?! Saio à rua e vejo esses disparates. Indignação é o que sinto, indignação! Afinal, como pessoas podem estar andando, caminhando, movendo as próprias pernas pelas ruas? Ou ainda respirando! Sim: res-pi-ran-do! Com ar, oxigênio e tudo. Vou um pouco mais adiante e observei sol, árvores verdes, céu azul e... água! H2O, aquela mesma! Uma criança (como ainda se permite que mulheres concebam ou, anterior a isso, que se permita casais fazerem sexo e engravidarem, é outra questão inexplicável, mas deixa-se para ver isso depois...), acompanhada de sua mãe, que parecia, ainda por cima, estar feliz, bebeu água de um bebedouro em uma praça. Desta forma que descrevo: assim, ao ar livre, sem a repressão de ninguém... Muito estranho, é só o que posso entender. O que realmente não entendo é como essas coisas todas ainda podem acontecer mesmo com todas as minhas forças para que nunca mais existissem. Uma delas que fosse. Mas não! Algo de muito errado está se sucedendo com a humanidade...”


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 25 de abril de 2022

cotidianas #752 - Pílula Surrealista #48

 

A cotação das LCIs havia despencado, deixando todos os membros do Comitê de Relações com Investidores preocupados. A reunião, que havia iniciado às 4 da manhã, foi chamada às pressas logo após, na Ásia, o anúncio da quebra de uma gigante do setor imobiliário. Eram mais de 9 da noite. O leve almoço, servido sobre aquela mesma mesa a qual rodeavam há horas, sorvera-se em intensos desgastes mentais. Gravatas afrouxadas e desabotoadas as camisas na casa da altura do pescoço: restavam todos exaustos. E sem solução para aquela situação, que fugia ao controle de quem costuma, através de estatutos, protocolos e governanças, controlar tudo que lhes rodeia. Naquele caso, não havia o que fazer, e isso podia comprometer seriamente o erário da empresa. Mesmo que não houvesse solução, no entanto, assim como era esperado, o CEO, tal como lhe é exigido pela posição e expectativas, retomou a questão que haviam discutido o dia inteiro sem encontrar uma saída. 

Ele sabia que não existia essa saída – todos sabiam –, mas cabia-lhe, pelo poder e responsabilidade, atiçar os seus comandados para promover uma encenação corporativa eficiente. Como combatentes de uma guerra, caras amassadas e feridas, estonteados pelas horas de fogo cruzado, os soldados engravatados foram pouco a pouco levantando-se de trás da mesa como de trincheiras escavadas empunhando as armas em forma de tablets digitais ao comando do esfuziante e ilógico líder. Ruiz, Diretor Jurídico, foi convocado a encabeçar a coluna, que iria retomar a investida sobre o território inimigo. Porém, ele não ouviu a voz de comando – mesmo que esta tenha sido proferida em alto e bom som. O comandante da tropa repetiu, colérico como todo militar contrariado, mas não adiantou novamente. Ruiz, olhando sorridente e vidrado para cima, na direção do ar condicionado, parecia enxergar algo excelso, alguma imagem divina, talvez uma solução, mas não aquela a que o grupo não havia tido competência de encontrar. Os graves impropérios que lhe foram ditos aos berros pelo superior, suficientes para justificarem sua baixa, nem assimilou. O pensamento já tinha voado definitivamente e nunca mais desceu de volta. Perdera-se Ruiz.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 3 de março de 2022

cotidianas #745 - Pílula Surrealista #47

 

Ele era um gênio da publicidade, mas intratável. Um bicho, na melhor acepção, arredio, bravo, colérico, selvagem. O caixa da agência, no entanto, dependia praticamente dele. Não fosse sua produção, sempre encantadora e jamais contrariada pelo cliente – algo inédito desde que o negócio começou –, a empresa não se sustentaria.

Os colegas mais novos estranhavam assim que começavam na agência. Afinal, era mesmo assustador e incomum aquele modus operandi com ares de tortura e trabalho escravo. Mas à medida que o tempo passava, entre peças e campanhas, cafezinhos e conversas nos corredores, iam acostumando-se com aquela porta de aço maciço permanentemente fechada na parte externa do prédio, ao fundo da garagem, onde normalmente residiria um zelador ou caseiro. Ali era reservado para mantê-lo trancafiado, em segurança, tanto para ele quanto, principalmente, para a sociedade, consumidora muitas vezes, ironicamente, de produtos que ele próprio as convencera de comprar com suas criações admiráveis. Por debaixo da porta, cadeada com ferrolhos de reforço, uma fresta de altura suficiente para deslizar-se um prato, servido invariavelmente com restos de carne e osso crus e em quantidade generosa. 

Pela mesma abertura em que lhe passavam a comida, os colegas o alimentavam com as demandas de trabalho da agência. Juntavam tudo que era necessário para a elaboração das peças, depositavam sobre o chão, empurravam para dentro da jaula e saíam de perto. Não demorava muito para que começassem a se ouvir incompreensíveis grunhidos e urros ferozes, bestiais, que se espalhavam por todo o prédio. Era o momento de deglutição das informações, já sabiam, por isso não mais se espantavam. Ao contrário, era prenúncio de que dali a uma meia-hora, mais ou menos, poderiam contar com aquilo que ninguém mais tinha capacidade de realizar com tamanha perfeição. E assim ocorria: alguém ficava já à espera em frente à porta aguardando que o trabalho finalizado voltasse pelo mesmo lugar em que foi largado. Estava pronta mais uma obra-prima da sociedade de consumo.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 8 de abril de 2021

cotidianas #713 - Pílula Surrealista #46

 

Logo que lhe ficou clara a necessidade de isolamento social, e que não poderia (deveria) sair de casa com o mesmo direito de “ir e vir” comum em tempos normais, Samantha deu um jeito de adotar um bichinho. Uma gata. Exótica a chamou em homenagem à personagem de Cats, que Samantha assistira anos atrás em Nova York quando gozava ainda do tal direito de “ir e vir”. Pelagem escura, amendoado dos olhos e olhar penetrante como os da personagem tinha a gata para merecer-lhe ainda mais o nome. Samantha adotou-a ainda filhote, recém desmamada. Assim, estabeleceram desde o primeiro dia uma relação muito próxima, quase simbiótica. Dividiam a mesma cama, acomodavam-se com deleite sobre o mesmo travesseiro (quando não o disputavam), comiam ambas nos mesmos horários e acompanhavam o movimento da rua pela janela em longos banhos de sol. Nem TV mais Samantha assistia, para a qual, mesmo ligada, como um aquário mudo, dava as costas com desinteresse igual Exótica. Os hábitos notívagos também eram iguais: dormiam boa parte da tarde e, de madrugada, caminhavam pela casa silenciosamente. Tudo faziam juntas. A ponto de, como acontece seguidamente com donos e seus pets, passarem a ficar cada vez mais parecidas: na expressão penetrante, nos fios escuros, na cor de olhos esverdeados, até no jeito cauteloso de andar, como que pisando em pantufas.

O isolamento e as personalidades as aproximavam cada vez mais, o que, claro, se intensificou com o prosseguimento da pandemia do lado de fora do apartamento. E intensificou-se em todos os aspectos. A ponto de, a determinado momento, diferenciarem-se apenas pela estatura. Samantha, por total desestímulo, não via necessidade mais de depilar-se. Nunca mais saíra de casa. Pra que, então, rasparia os pelos? Pelo contrário, agora a embelezavam e protegiam. Os de Exótica, por exemplo, que nunca os tirava, eram tão bonitos daquele jeito natural, e tão macios... A lâmina de depilar, inclusive, há muito já havia perdido sentido e recebido a função de brinquedo desde que foi cutucada propositadamente de cima da pia do banheiro em direção ao chão.

Banheiro, aliás, que perdera sua utilidade corriqueira. Lamber uma à outra era o banho que lhes bastava. Não dependiam de fúteis vaidades para viverem em paz. Gostavam, inclusive, do cheiro que emanavam, um odor ancestral, fêmeo, felino. Além da inutilidade do chuveiro, o vaso sanitário também perdera serventia, visto que era bem mais fácil agachar-se sobre a caixa de areia, sempre destampada e disponível, para aliviarem-se.

O maior problema era a comida. Primeiro, esvaziarem os pacotes de ração. Depois, consumiram o que havia mais à vista empoleirando-se sobre a mesa e as prateleiras. O instinto perscrutador felino fez com que descobrissem a dispensa e, após muita insistência, outra qualidade dos gatos, acessassem o refrigerador. Tudo, menos ter que sair pela porta da rua! Tinham trauma do que havia lá fora, do estresse que lhes causava. Só ouvir os vizinhos ao longe já lhes era suficiente para ficarem apavoradas. Punham-se de ouvidos e olhos atentos a cada movimento externo. Ali dentro, pois, era sua ilha. Se a comida havia se acabado, não era nada tão preocupante para quem sabia amigavelmente dividir a caça aos invasores que entravam voando pelas janelas. Além disso, os restos de comida e fezes fazia com que se atraíssem bichos de toda ordem, como baratas, moscas, larvas e até suculentas ratazanas. A providência se encarregava de lhes garantir sustento.

Viveram, assim, nesta harmonia e descomplicada consciência entre cios e afagos, entre lanhadas e sonos profundos, entre lambidas e aconchegos. De inesperado, apenas encrespavam-se a cada vez que passavam pela frente do espelho, como que esquecidas de todas as outras vezes anteriores em que estranhavam a si próprias, como que fosse impossível reconhecer aquele ser refletido. Mas assim como mobilizavam-se, também se distraíam com outra coisa no segundo seguinte, fosse com uma nova caça, com a borda do sofá rasgado para afiarem as unhas ou com qualquer bobagem que a outra estivesse dando atenção. Palavras nunca mais precisaram ser ditas.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021

cotidianas #706 - Pílula Surrealista #45

 

Não me lembro ao certo o que aconteceu antes de eu entrar ao quarto e me deparar com um rato cinzento-amarronzado sobre a mesa roendo alguma coisa. Nem sei se comida era. Pensei: “Como minha gata não farejou que havia um rato dentro de casa?” Era minha casa... Sim, a lembrança de que tinha uma gata comprovava que era minha casa. Imediatamente, pensei no pavor que minha esposa sentiria quando soubesse que um rato havia entrado em nossa casa – isso: era nossa casa –, subido sobre a mesa e, mais que isso, se por acaso ela chegasse de repente e encontrasse o seboso animal chafurdando nossas coisas. Não sei onde minha esposa estava àquela hora, afinal, nem eu mesmo sei onde eu próprio estava antes de abrir a porta (sim, lembro-me que abri uma porta...) e me dar de cara com um roedor fazendo o que ele melhor sabe em sua insistente e determinada existência murídea. Sabia, e aí, agora com certeza, que tinha uma gata, uma esposa e que um rato entrara em nossa casa.

Não fiquei sem ação, por óbvio. Peguei, como qualquer um procederia, uma vassoura para atacar o invasor. Lembro-me disso. Presa fácil (estranhei), daquelas que não fogem nem à evidência de um ataque, imprimi-lhe o que me havia de força nos braços para acertá-lo. Meu golpe, no entanto, não surtiu efeito. Ou melhor: atingiu-o, mas era quase como se não tivesse sido desferido. Estranhamente, meus membros superiores, por mais vigor que tentara em meu impulso, nem de longe conseguiam atingir o objetivo. Parecia que meus braços, fracos, não acompanhavam a intenção do cérebro. Mas podia ser que tivesse errado o bote. Então, nova pancada. E nova frustração. 

Foi então que, antes de teimosamente buscar o terceiro ataque, percebi que não se tratava de um rato, mas sim de uma mulher. Uma senhora de idade e cabelos grisalhos (mais para brancos), estatura baixa, bem apessoada e com vestes bastante distintas, quase anos 30. Talvez essa sensação temporal me impressionara pelo chapéu clochê que usava com um leve declínio no coco da cabeça, até charmosamente para uma mulher de sua idade, algo entre os 60 e 70. Mas isso é só suspeita, haja vista que foi muito rápida a transformação de rato para a forma humana. Aliás, essa é outra suspeita, pois, de fato, não assisti a tal transformação: quando me dei conta, travei a por certo anêmica batida seguinte ao notar não ser mais um bicho. Ou foi muito rápido ou eu estava atento demais à minha intenção assassina para não ver.

Pensei: “Talvez isso explique porque minha gata não correu atrás e, sim, escondeu-se. Deve estar debaixo da cama ou por algum canto”. De imediato, contudo, veio-me outro pensamento em decorrência: “É fácil justificar a ausência da gata, mas muito difícil à minha esposa do porquê de uma senhora ter entrado aqui em casa sem que eu visse”. Ou pior: “Ficará ainda mais inexplicável se tentar justificar-lhe que a senhora usou a tática de entrar como um rato para, depois, sabe-se lá com que finalidade, virar humana”. Certamente, é mais fácil invadir a casa dos outros, independentemente do motivo, sendo rato do que humano. Só sei que, ao que a vaga lembrança onírica me conserva, não agi mais. Deixei-a, a senhora-rato. Não mostrou ela interesse em me morder e nem eu de machucá-la. O que, convim comigo mesmo, acho, não era motivo para que lhe aplicasse a mesma pancada que impiedosamente se dedica aos que não são da nossa espécie. Deve ter sido assim...

(Ao meu sonho)
Daniel Rodrigues

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

cotidianas #704 - Pílula Surrealista #44

 

Não fazia muito que havia chegado ao trabalho. Mal engatara o ritmo dos afazeres e recebeu uma ligação. Do vizinho:

- Seu Nestor, sua casa foi embora.

- Como assim, “foi embora”?!

- Sim, seu Nestor, foi embora. Saiu voando.

- Mas como isso?

- Sim, saiu voando. Como diz naquela música, "Bateu asas e voou" - tentou soltar uma brincadeira, mas logo recompôs-se, pois percebeu nenhuma receptividade do outro lado. Então, continuou com o relato:

- Tem acontecido bastante. O senhor não tem visto no noticiário? Já teve uma porção de casa que aconteceu isso aqui na cidade, aí pelo interior, por tudo. Não vou lhe mentir, mas a casa da minha cunhada em...

- É, ouvi falar que tem acontecido, sim... Poxa, mas a minha casa? O que eu fiz pra merecer?

O silêncio do outro lado da linha por parte do Sr. Ivo, aposentado boa-praça, mas sempre pronto para fuxicar a vida dos vizinhos, dava a entender que a ligação se prestava somente para aquele aviso específico. O que Nestor deveria fazer ou o que não fez com sua própria casa era, definitivamente, problema deste. Entendendo, Nestor agradeceu e desligou o telefone.

Ficou pensativo em sua cadeira enquanto os colegas seguiam em seus ritmos de afazeres o qual ele havia se obrigado a parar por alguns instantes. Sinal dos tempos, talvez uma evolução em mil devoluções isso das casas voarem. Não mais a cansativa lógica de pessoas que cansam de um lugar e o abandonam. Agora, são os lugares que deixam para trás quem os dominava em busca de outros donos.


Daniel Rodrigues

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

COTIDIANAS nº702 - ESPECIAL DE ANO NOVO - Pílula Surrealista #43

 

Cronus chegou empolgado chamando por sua Réa ainda do outro lado da porta enquanto girava a chave para entrar em casa:

- Amor, amor! Olha só a minha nova invenção! E essa é show!

- Oi, ‘mor! Cumé? Não entendi... Tô aqui na cozinha. O que você falou mesmo?

- Falei que eu tenho uma nova invenção, das boas! – reiterou ele, aumentando o volume da voz para que esta chegasse à cozinha enquanto tirava o casaco e o soltava junto com a valise sobre a poltrona da sala apressado para mostrar à esposa a novidade.

- Vem logo! – chamou ele, já sentado sobre a ponta da poltrona mal segurando a própria ansiedade.

- Tô indo, tô indo! Peraí. – respondeu ela já se deslocando em direção à sala secando as mãos no pano de prato, o qual largou sobre o ombro direito enquanto dava um selinho no marido e puxava um banquinho para posicionar-se de frente para ele. Sabia que, como das outras incontáveis vezes, Cronus atribuía cerimônia mitológica a situações como aquela em que lhe apresentava em primeira mão suas ideias mirabolantes.

- Pronto, tô aqui. Que invenção é essa que você tem pra me mostrar dessa vez? – disse, soltando um leve sorriso de amoroso deboche. Réa admirava e amava o marido. Sabia de sua inteligência superior, mas também que seu QI elevado às vezes o levava a dispersar-se. A “viajar”, como se diz por aí. Devia ser por causa de sua configuração astrológica, pensava – ou pelo menos, sempre buscava nisso uma fugaz explicação. Por isso, não tinha como levar totalmente a sério as peripécias do seu Professor Pardal doméstico. Ainda mais considerando aquelas últimas “descobertas”...

- Excelentíssima senhora Réa: - iniciou ele - Fique registrado nos anais que, a 17 dias do mês de agosto deste corrente ano, o seu excelentíssimo senhor esposo, no caso eu, Cronus, descobriu uma forma de manipular o tempo! – entoou-lhe, erigindo o pescoço e impostando a voz num gesto de anúncio oficial.

- Sério, Cronus?! Não! Mentira sua. Você tá zoando comigo. 

- É sério! Juro por Deus! Pelos deuses todos, Urano, Gaia, nossos filhos e tudo mais. 

- Mas... como assim? Você construiu uma máquina do tempo por acaso? 

- Não, eu não precisei de máquina nenhuma. Não preciso de nada pra manipular o tempo. Quer ver como é? Tchan, tchan, tchan, tchan! Você está preparada? – indagou ele, esbugalhando os olhos e projetando o corpo para frente como que para criar suspense.

- Tô, ‘mor! Fala logo, que ainda tenho que terminar nossa comida. 

- Tá, bem, tá bem... – falou postando as mãos espalmadas uma de cada lado da cabeça e olhando para baixo de maneira a achar a concentração certa para a primeira exibição do seu feito. Ficou assim e em silêncio por alguns bons segundos. Já impaciente e preocupada com as panelas no fogo, a esposa apressou-lhe:

- Cumé que é, 'mor: vai mostrar ou não vai?! Tenho que voltar pra cozinha.

- Peraí! Você tá me apressando!

- Não me diz que vai ser que nem daquela vez que você me disse que era capaz de comer uma pedra? Ou que vomitaria seus filhos na minha frente?! Que nojo aquilo, Cromus! Nunca mais repita uma sandice dessas! Ou pior: quando você disse que ia virar cavalo! Acho que aquilo foi só pra impressionar aquela fulaninha do clube, aquela tal de Filira, né? Eu te conheço, seu Cronus! Tô de olho em ti...

- Não, Réa! Nada a ver. Não me desconcentra. E dessa vez é sério. É quente. Você quer saber ou não?! – mostrando-se já aflito.

- Quero, sim, ‘mor. Vai lá: me mostra. – falou Réa em tom paciencioso, reacomodando-se no banco em forma de mostrar-se uma espectadora atenciosa. 

- Tá bem... é assim.

...

- ... assim como? – perguntou ela.

- Assim: já estamos em 1º de janeiro.

- Ah, é?  - surpreende-se a esposa, que, convencida da veracidade, não escondeu seu orgulho pela capacidade do marido.

- Viu só? – disse ele, com um largo sorriso de satisfação por debaixo da espessa barba.

- Sim! Tô vendo! Que demais, hein?! Mas... o que tem de diferente de antes?

Ficaram olhando-se sem dizerem nada, tentando achar tal resposta. Réa virou a cabeça em direção à cozinha e depois para a janela da sala, a qual dedicou segundos de eternidade de reflexão silenciosa. Até que, como que desperta por um anjo, piscou várias vezes os cílios e sacudiu rapidamente a cabeça:

- Tenho que voltar pra cozinha, ‘mor. Terminar nossa comida. Estou com uma fome! E você deve estar também. Parabéns, viu, ‘mor? Vou lá - voltou para a cozinha, deixando-lhe antes um beijo na testa.

- Ah, tá... tudo bem... obrigado... sim, estou com fome, sim – assentiu com a esposa, num ar um tanto decepcionado. Não com ela, mas consigo mesmo.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

cotidianas #688 - Pílula Surrealista #42


Ouviram-se várias batidas de portas de entrada fechando-se, todas praticamente ao mesmo momento, ecoando pelos corredores permanente gélidos do condomínio. Reuniram-se pontualmente na hora marcada no hall de entrada, exatamente 16 vizinhos. Todos de máscara no rosto. Dividiram-se em seus vários carros em direção ao local onde se encontrariam, exatamente 28 minutos e 31 segundos depois de partirem do bairro nobre da Zona Norte. Chegaram naquele casebre na região Sul, pobre e desfavorecida. Mas não se importavam com a desvalia do lugar e nem muito menos com quem procuravam. Queriam, aliás, isso mesmo: seu desfavorecimento. Saídos de seus apartamentos devidamente alimentados para poderem executar a tarefa conjunta a qual haviam se proposto, um linchamento seguido de incêndio à propriedade (se é que dá para chamar aquela maloca velha e irregular de “propriedade”), não levaram muito tempo para, tomados de uma raiva supervalorizada e de uma razão a qual nem sabiam que suportavam, darem por realizado o serviço. Ainda com as mãos sujas e um tanto transpirados, um deles teve a preocupação de alcançar álcool em gel aos outros, que, muito agradecidos por aquele cuidado, se desinfetassem. Emocionaram-se, na verdade, com o gesto. Afinal, os riscos são muitos nessa vida. Notou-se, entretanto, que aquele ato de compartilhamento era o primeiro gesto social que acontecia entre eles, que, embora exitosos coletivamente na demanda a qual haviam se proposto, entre eles mesmos, nada haviam trocado além de um sentimento de vingança consensualmente justificado. Foi quando um deles, sob a iluminação intermitente do fogo incendiário que os aquecia mesmo que a certa distância, propôs amigavelmente que se conhecessem melhor. O primeiro e instintivo movimento foi de tirarem as máscaras. Viram, ou melhor, constataram que todos tinham o mesmo rosto. Idênticos. Menos por surpresa e mais por constrangimento, um a um repuseram suas máscaras faciais e retornaram sem pronunciar uma palavra a seus veículos blindados e insufilmados de modo que ninguém, nem mesmo eles entre si, os vissem tornarem a seus seguros, réplicos, espaçosos e gélidos apartamentos.

Daniel Rodrigues

segunda-feira, 16 de março de 2020

cotidianas #672 - Pílula Surrealista #41


Sem apreciar o sabor de nada, Fábio almoçava no restaurante da esquina a mascadas lentas e sem vontade quando seus dentes morderam algo pedregoso. De má fama perante os colegas de firma, o restaurante era para os padrões não muito exigentes de Fábio aceitável. Mas pedra na comida?! Isso ele não esperava. Teria vindo misturado ao arroz de má qualidade? Ou uma pedra escura disfarçada entre os feijões, que também foi para a panela junto com os grãos mas, diferentemente destes, não amoleceu? Teria de admitir aos colegas que, sim, eles estavam certos com relação àquele estabelecimento “morte lenta”, aquele “pé-sujo” desqualificado.

Mas não demorou para perceber que estava enganado: o pedaço duro e um tanto esfarelento que mordera era, na verdade, um dente. Seu próprio dente, mais especificamente um segundo pré-molar inferior. Recolheu-o entre os lábios discretamente com a ponta dos dedos para que ninguém à sua volta percebesse, mas
não conseguira esconder o espanto quando enxergou aquele pedaço de osso bucal, que se desprendera inteiro de sua boca como que arrancado com instrumento de extração. Ficou a admirá-lo por alguns segundos escondido à altura da mesa, assombrado com algo de seu próprio corpo que lhe parecia um desconhecido. Um pedaço de si usado todos os dias mas que, estranhamente, nunca tinha visto por aquele ângulo, por aquela perspectiva em três dimensões. “Será que é assim que minha dentista enxerga meus dentes?”, refletiu Fábio.

Enrolou o novo conhecido num guardanapo de papel, guardou-o no bolso e foi embora dali. Nem sequer terminou o almoço, o qual recém havia dados as primeiras garfadas. Foi direto para o banheiro da dispensa da firma. Mirou-se no pequeno espelho e refletiu sobre a oportunidade que se abria diante de si... Nunca conseguira enxergar-se por dentro, conhecer-se, ir àquilo que é no íntimo. Terapia, remédios, livros de autoajuda, palestras motivacionais, tudo pra quê? Sempre se mostraram totalmente inúteis. Aquilo, sim, era um autorreconhecimento.

Desembrulhou o dente e o acomodou sobre a pia, cujo branco da cerâmica quase fazia confundirem-se um e outro. Na caixa de ferramentas logo abaixo, sacou o alicate e, um a um, arrancou os outros 31 dentes da boca. À medida que os ia tirando, passava na água corrente para tirar o excesso de sangue e os enfileirava junto ao abençoado pioneiro até, por fim, formar uma nova boca fora de si próprio. Enfim, sonho realizado: podia conversar consigo mesmo pela primeira vez em infelizes e malvividos 38 anos. O papo rendeu horas, tarde e noite adentro, sem perceber o tempo passar, de dois amigos há muito esperando por aquele encontro.

Daniel Rodrigues

terça-feira, 12 de novembro de 2019

cotidianas #655 - Pílula Surrealista #40


Ao contrário de todo mundo, ela andava pela rua pisando sobre as poças d'água. Nem com melancolia, romantismo e nem por arroubo de extrema felicidade. Simplesmente andava sem desviar-lhes.
Também, na infância, ao contrário da maioria, nunca fora ensinada de que chuva fosse algo que devesse evitar. Não seria agora, adulta, que assimilaria diferente. A mesma chuva que molhava a sua cabeça pela inutilidade de um guarda-chuva era a que molhava seus pés minimamente protegidas pelo calçado. A poça, os pingos, os respingos, os cabelos, a pele, o corpo: tudo era água, e a água era ela.


Daniel Rodrigues

quinta-feira, 24 de outubro de 2019

cotidianas #653 - Pílulas Surrealistas #39


Todos diziam que Norman tinha mania de limpeza. Também: ele limpava a casa todo santo dia! Não havia manhã em que não varresse, aspirasse, passasse um rodo, um pano. Atentava a cada cantinho, cada vinco, cada centímetro. Nada ficava sem ser limpo.

Ao contrário do que diziam dele, no entanto, não era TOC que lhe movia, mas, sim, uma constante e ininterrupta sujeira na casa. Não havia o que fizesse: aumentava a frequência da faxina, trocava o alvejante, usava óculos para enxergar melhor durante a limpeza. Chegou até o ponto de assear a casa ajoelhado, esfregando com minúcia o piso.

Mas nada resolvia. A sujeira, que por horas dava uma trégua (quiçá, minutos), reaparecia como que por mágica. Minúsculos grãos acinzentados, como um pó fino.

Porém, Norman não dava-se por vencido, e impunha novamente seus instrumentos de guerra contra o inimigo. Punha-se a esfregar de novo, e de novo, e de novo. Até suar, até cansar-se, como se perdesse a energia vital à medida que se desgastava. Sentiu, como sempre, uma coceira à altura do tornozelo esquerdo, certamente alergia daquele pó horroroso.

Mas não. Vendo com atenção, percebeu que não era o pó que causava a coceira no pé, mas o pé que causava o pó. Quanto mais esfregava as unhas, mais esfarelava. Norman viu então que estava se desintegrando e, consequentemente, varrendo a si próprio. Naquela manhã, inclusive, quando havia jogado na lixeira pelo menos duas pazinhas dele mesmo.

Dias depois, a senhora da faxina, alertada pela família da tarefa que precisaria cumprir, entrou toda amedrontada no apartamento. Um calafrio percorreu-lhe a espinha. Como encontraria o rapaz? Mas estava tudo em ordem, nada a temer, nenhum defunto, nenhuma alma penada. Apenas um certo volume de pó cinza pelo chão, que não precisou de muito tempo para consegui varrer. Juntou suas cinzas, que não deu nem um quarto da lixeira, e as carregou num saco plástico preto para o contêiner na rua, que rumou para o aterro sanitário logo em seguida.

Daniel Rodrigues

quinta-feira, 5 de setembro de 2019

cotidianas #646 - Pílulas Surrealistas #38



Cib gostava de ir contra as regras. E conseguia. 

Para ela era fácil trocar o dia pela noite: bastava arrastar o sol para o lugar da lua ou vice-versa conforme lhe desse na veneta.

É possível estar acordado de olhos fechados, mas não dormir com eles abertos. Não para Cib, no entanto, que conseguia isso sem que precisasse morrer.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 22 de julho de 2019

cotidianas #641 - Pílula Surrealista #37




- Já notou que não se faz mais nada do que se fazia no passado? Meus gestos, alimentação, cabelos, voz, paladar, resistência ao frio, caminhar, batimentos cardíacos, paixões, tudo, tudo mudou de quando eu era criança, de quando eu era adolescente para cá. Não vamos longe: não consigo me ver na pessoa que fui há pouco mais de 2 anos, quiçá, 5. Nem sequer o eu de ontem, a quem já não identifico com facilidade. O que foi mesmo que eu comi ontem no almoço? Eu, de fato, almocei? Não sei nem se comi, seja no meio-dia, no café da tarde ou na janta. Olha, não sei vocês, mas isso tudo me leva a concluir que, definitivamente, eu sou cada vez mais eu mesmo.


Daniel Rodrigues

segunda-feira, 17 de junho de 2019

cotidianas #636 - Pílula Surrealista #36


Marca de nascença é o tipo de coisa comum de uma pessoa ter. Em diferentes lugares do corpo, em diferentes tamanhos, texturas, pigmentação e constituições morfológicas. Panturrilha, cóccix, cotovelo, globo ocular, bacia, grande lábio. Mais visíveis ou menos: na bochecha ou na virilha, entre os dedos ou entre as nádegas, próxima da pálpebra ou do assoalho pélvico. Theo, entretanto, tinha uma marca de nascença digamos “proeminente”. Proeminente, aliás, talvez nem seja o termo mais
apropriado, visto que a marca de nascença de Theo cobria-lhe por completo. Era mais do que uma marca de nascença, melhor colocando. Theo ERA uma marca de nascença. Está certo que não sustentava uma estatura avantajada em seus 1 metro e 57 centímetros de altura. Porém, impossível negar que se trata, além de uma estatura aceitável, de um tamanho suficiente para excluí-lo do nanismo e que apenas uma única marca de nascença dominante em toda a extensão do corpo tivesse mais destaque do que uma simples marca de nascença comum de apenas alguns centímetros. Isso fazia com que a marca de nascença do rapaz pudesse ser considerada grande demais para ser somente uma marca de nascença. Desproporcional como uma tatuagem de um tatuador desenfreado que desenhasse com a mesma tinta marrom-escuro horas a fio o corpo de um cliente em coma. Como um chamuscado que lhe pintasse regularmente de queima toda a epiderme. Theo era para ser um branco de nascença, mas a marca, tão mais preponderante neste acontecimento originário, tornava-o um mulato. Minto: um negro. Por força daquilo que o compõe e lhe cobre desde que veio ao mundo, é possível, sem erro, dizer que Theo é um negro. Forçada e ironicamente, mas um negro, sem dúvida.


Daniel Rodrigues