Assim como para com os saxofonistas, existe uma mítica no jazz em torno de outros instrumentistas do sopro: os trompetistas. Certamente a tradição de grandes solistas e band leaders desde que o gênero se formou no início do século XX colabora para essa percepção. Buddy Bolden, Louis Armstrong, Dizzy Gillespie, Chet Baker, Miles Davis e Lee Morgan dão dimensão da responsabilidade que é ser um trompetista no mundo jazzístico. Pode-se até dizer que exige uma certa dose de milagre tal aparição, haja vista a raridade de tamanhas habilidade e inspiração que exige.
Mas, igualmente ao que acontece com o sax, quando parece que essa ação divina vai falhar, surge, como que por milagre, um novo talento do trompete totalmente absorvido pelo mistério que envolve o instrumento. Caso de Wynton Marsalis, que, no final dos anos 70, apareceu para a cena musical como promessa de continuidade dessa linhagem de músicos do sopro, a qual ele não apenas confirmou como acabou por se tornar ele uma nova lenda, o primeiro artista de jazz a vencer um Prémio Pulitzer, em 1997.
Da extensa discografia de Wynton, um profundo conhecedor de música, além de um homem de posicionamentos fortes em defesa das questões raciais e da cultura afro-americana, “J Mood”, de 1986, é um exemplar modelo. Cores perfeitamente pinceladas do hard bop, no melhor estilo daqueles a quem ele reverencia, Thelonious Monk, Lester Young, Herbie Hancock, Charles Mingus, Charlie Parker, Miles, Morgan e toda uma história galgada em técnica e alma. Numa época em que o jazz em essência perdia força ou para a música pop ou para a vanguarda, Wynton apresentava um deleite para os ouvidos já mal acostumados com a tradição.
A história de Wynton com a música e o ativismo vem de berço e de sangue. Nascido na terra-mão da música negra norte-americana, New Orleans, é o segundo de seis filhos do pianista Ellis Marsalis Jr., influente professor de música que, nos anos 50/60, trabalhara com gente como Ed Blackwell, Cannonball Adderley e Nat Adderley. Mal havia chegado ao mundo e Ellis e a esposa deram um jeito de lhe eternizar a ligação com a música lhe registrando com o primeiro nome do pianista de jazz Wynton Kelly. Ellis, aliás, que por sua vez era filho de Ellis Marsalis Sr., um dos primeiros empresários negros dos Estados Unidos e atuante ativista pelos Direitos Civis em seu país. A casa dos Marsalis respirava música e orgulho racial, tanto que, dos irmãos, também seguiram por este caminho Delfeayo, trompetista como Wynton, Jason, que virou baterista, e o igualmente famoso saxofonista Brandford.
Não é de se estranhar que, desde muito cedo, Wynton tenha mostrado aptidão com a arte musical, com domínio de melodia e harmonia tanto no jazz quanto na música clássica. Estudante da Jillard School, em Nova York, seus primeiros discos trazem, por isso, acordes não dos deuses do gênero mais norte-americano de todos, mas versões de Heydn, Handel, Purcel e música barroca. Porém, com tamanha proximidade e genética não havia como Wynton fugir de suas raízes. Não tinha como fugir do jazz. Primeiramente recrutado para integrar a banda do já sexagenário Gillespie, um privilégio de poucos, foi outro velho band leader do jazz que o fez enveredar de vez para aquilo que mais lhe pertencia. Em 1980, o baterista Art Blakey, convicto de que convenceria aquele jovem trompetista de apenas 20 anos a abandonar a carreira de recitais pomposos, convida-o para excursionar com sua clássica e formativa The Jazz Massangers pela Europa. A partir dali, Wynton foi definitivamente fisgado pelo jazz.
O primeiro disco solo somente jazzístico veio dois anos depois deste batismo de Art. Quando chega em “J Mood”, seu quinto neste estilo, o herdeiro das lendas do trompete já estava totalmente confortável e pronto para ocupar seu lugar no olimpo. Foi o início de uma segunda e definitiva fase na carreira de Wynton, com a formação de uma nova banda, o quarteto J Master, formado por Marcus Roberts, ao piano; Robert Hurst III, do duplo baixo; e Jeff "Tain" Watts, na bateria. Ali, Wynton passava a internalizar o entendimento de algo que lhe seria um grande diferencial: o de que não precisava abandonar a veia erudita para realizar jazz.
Como disse o crítico musical Robert Christgau para a Playboy, em 1986, “J Mood” é puro “comando técnico” e “respeito pela história”. Habilidade, sim, mas nada de excessos: expressão certa na medida certa. Miles e Monk não legaram justamente isso? Assim é a faixa-título, que abre o álbum: um blues cadenciado em que o norte é totalmente dado pelo trompete de Wynton. Os praticamente 5 primeiros minutos dos pouco mais de 8 da faixa são desenhados por suas frases inspiradas, “claras” e “concisas” como bem observou o produtor de jazz e escritor Michael Cuscuna ao ouvi-lo pela primeira vez no início dos anos 80. Roberts, outro talento daquela geração de jovens jazzistas, aproveita a deixa e finaliza o número com um magistral solo.
A dobradinha entre Wynton e Roberts se repete na romântica “Presence That Lament Brings”, de autoria deste último. Lamentosa como o título sugere, mas profundamente sentimental, tem solfejos longos e elegantes de Wynton e a pontuação lírica dada pelo pianista. Isso, adensado pela bateria conduzida nas escovinhas sobre a caixa da bateria e o duplo baixo de Hurst III cumprindo com excelência o escalamento.
Os ânimos se reacendem no bop intenso “Insane Asylum”, em que a improvisação de Wynton é quase que puramente melódica, beneficiando-se da sensibilidade dele e do grupo em contrastes de volumes e ataques. Mais dissonante é "Skain's Domain", que começa com Watts chamando nas variações de caixa, bumbo e pratos para, em seguida, a banda inteira entrar e formar um blues suingado, mas sem perder sua personalidade harmônica. Hora de baixar a rotação novamente, e nisso Wynton é, como todos os grandes trompetistas que o antecederam, um “ás”. Em “Melodique”, na qual se ouve um baixo cristalino e um piano mais ainda, o trompetista puxa uma surdina para diferenciar sua pronúncia e desfilar uma melodia elegante, que faz jus à referência francesa. Quão apaixonadas soam suas notas!
Acordes eruditos das teclas de Roberts abrem “After”. Claro, visto que de autoria de outro pianista. Mas não qualquer um, pois quem a escreveu é, justamente, o pai de Wynton, Ellis. Um verdadeiro resgate da ancestralidade dos Marsalis. Balada sensível, vaporosa, quase adormecendo. Como disse o próprio Wynton ao referir-se à ideia do disco, temas como este são como o repouso que se segue ao diálogo íntimo do romance real, o doce silêncio e a respiração suave após o ato de amor. Para terminar essa joia temporã do jazz que é “J Mood”, o baixo dobrado de Hurst III e a agilidade mental do front man conduzem "Much Later", cujo ritmo acelerado e o título (“muito tarde”) mostram a urgência do resgate do jazz tal como os mestres o conceberam. Wynton e seu quarteto provam que sempre há tempo, contudo.
“J Mood”, juntamente com outro importante disco – não coincidentemente, de autoria do seu irmão Brandford, “Scenes In The City”, de dois anos antes –, salvou o jazz nos anos 80 de dois extremos: o fascínio palatável da música pop, como ocorrera com Hancock e Miles, por exemplo, ou o cerebralismo do pós-bop, que desviava perigosamente o jazz de novo para fora de suas raízes negras. Wynton, ao encontrar a si próprio, encontrou também o caminho do jazz que jamais deve ser perdido. O feito ganhou reconhecimento: Grammy de Melhor Performance Instrumental de Jazz e menção entre as gravações essenciais do gênero do Penguin Guide to Jazz Recordings. Afinal, Wynton Marsalis entendeu que quando ele sopra uma nota em seu trompete, não é somente seus pulmões que agem, mas os de Bolden, Armstrong, Dizzy, Chet, Miles, Morgan. A mística se manifesta e, pelo menos durante os 42 min 35 seg entre a primeira e a última faixas do disco, o jazz está eternamente salvo.
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1. "J Mood" - 8:35
2. "Presence That Lament Brings" (Marcus Roberts) - 5:53
3. "Insane Asylum" (Donald Brown) - 6:34
4. "Skain's Domain"- 6:30
5. "Melodique" - 4:32
6. "After" (Ellis Marsalis Jr.) - 6:10
7. "Much Later" - 4:36
Todas as músicas de autoria de Wynton Marsalis, exceto indicadas
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