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sábado, 2 de outubro de 2021

cotidianas #730 - A Maldição





"É... campeããão! É... campeããão!..."
Não tinha como segurar a empolgação. O Helmo era campeão de novo. Não tinha rival pr'a gente nos últimos anos. A gente ganhava tudo! Eu e a pequena multidão que acabara de testemunhar aquela vitória, exibíamos nossa felicidade comemorando ruidosamente com gritos de guerra e cantos de torcida pelas ruas próximas ao estádio.
A cerveja, companheira tradicional nos jogos, consumida desde a chegada ao estádio até aquela comemoração final, produzia seu inevitável efeito e se fazia necessário que fosse colocada para fora. Como vários outros na mesma situação que eu, simplesmente me aproximei de um muro, botei o amigão pra fora e despejei aquela cachoeira ali mesmo. De uma janela, de um apartamento de segundo andar, no prédio que se elevava acima daquele canto de calçada onde me encontrava fazendo meu xixizinho, uma senhora, bastante transtornada, não só com o mictório improvisado como com todo aquele alvoroço, reclamava. "Isso não é lugar de mijar, moço. Depois essa calçada fica fedendo que a gente não aguenta".
Eu, indiferente a qualquer coisa que pudesse me incomodar naquela noite, simplesmente retruquei praticamente ignorando a velha.
"Ah, velha, vai dormir, não incomoda..."
"Mas como é que alguém pode dormir com essa barulheira, essa gritaria que vocês estão fazendo? Misericórdia!!! Vocês não respeitam ninguém, as pessoas querem um pouco de sossego, um pouco de paz. Nem todo mundo gosta desses futebol, desses time de vocês. Respeitem os mais velhos..."
Finalmente terminando de me aliviar, enquanto guardava as coisas dentro da calça, retrucava ainda mais uma vez contra a velhota. "Tá, véia, não enche o saco! É campeão, véia, é campeão e eu não quero saber de mais nada."
"É... Tomara que esse teu time nunca mais ganhe nada. Pra vocês nunca mais fazerem isso com as pessoas. Tomara que só perca, perca, perca... Isso é uma falta de respeito. Vocês...", e enquanto fechava a janela dava pra ouvir que continuava resmungando lá dentro.
Dei risada da velha, virei as costas e saí gritando, "Helmoooo, Helmooooo".
Mas, incrivelmente, coincidência ou não, a partir daquele dia tudo mudou para o Helmo. 
Fomos mal no Estadual da temporada seguinte mas, em princípio, ninguém deu muita bola. Mirávamos mesmo era o Campeonato Nacional, o Continental... Na competição internacional fomos eliminados cedo por um time inexpressivo de um país sem tradição nenhuma e no certame nacional, passamos de favoritos a... rebaixados. O que estava acontecendo? E só piorava. Dívidas apareciam, jogadores indo embora, punições administrativas... 
Caímos para a segunda divisão no estadual (NO ESTADUAL!) Estávamos a caminho da terceira divisão do país. O que estava acontecendo??? Tinha um leve palpite mas não podia dar crédito àquela desconfiança. Era irracional. Ou não?  E se aquela velha, do dia do título tivesse sido tivesse causado tudo isso. Se tivesse amaldiçoado seu time? Não, não era possível. (Mas e se fosse?). Pelo Helmo valia pena tentar essa hipótese. Eu pediria desculpas para ela, levaria umas flores, uma lembrancinha e tudo voltaria ao normal. Eu não tinha nada a perder. Nada poderia ficar pior do que estava.
Ainda lembrava do prédio onde havia mijado naquele dia. Era no caminho pro estádio. Iria lá.
Fui.
Falei com o porteiro, descrevi a senhora, disse que morava no segundo andar. Ele sabia de quem eu estava falando.
Infelizmente tinha se mudado. Não sabia para onde. E, de mais a mais, segundo ele, a velha estava muito doente, "no finzinho", como ele definiu. A filha a levara exatamente para cuidar dela em seus últimos momentos. Se fosse encontrá-la, teria que ser logo, se não...
Fui embora desanimado. Provavelmente nunca mais a encontraria. Teria jogo no domingo e eu já sabia o que iria acontecer. Aliás, eu já sabia o que iria acontecer dali para frente, sempre e sempre, até o final.



Cly Reis


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