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terça-feira, 30 de agosto de 2022

cotidianas #767 - A Forma do Outro

 



O velho da portaria tirou os olhos do jornal assim que o homem que entrara com o sr. Marcelo passou pelo balcão. "Falou com ele?", perguntou o velhote. O homem não respondeu. Deu as costas, parou brevemente na soleira e sumiu na luz da tarde do centro da cidade.
Mal educado, pensou o velho. Contornou o balcão e se dirigiu ao quartinho nos fundos, o oito. Tinha que cobrar as diárias do morador.
"Seu Marcelo...", batendo à porta. "Seu Marcelo...". Não recebendo resposta e estranhando o silêncio do inquilino, normalmente nada discreto, resolveu verificar se tudo se achava em ordem. Enfiou a chave no ferrolho, girou. Abriu a porta o suficiente para enfiar a cabeça ali para dentro. Para sua surpresa, nenhum sinal do inquilino. Nada. Nem rastro. Devia ter fugido pela janela para não pagar as diárias atrasadas. Mas tudo parecia estar ali: o sapato ao lado da cama, a mala aberta com roupas no canto do quartinho, o casaco pendurado na poltrona...


***

Roberto chegou em casa, largou as chaves no aparador e já deu de cara com um envelope em cima do velho móvel. Abriu, tirou um pequeno bilhete: "Dr. Max Centro Médico".
Nem parou em casa. Deu meia volta, apanhou a chave, botou o recado novamente no envelope, o envelope no bolso e fechou a porta às suas costas.

***

Entrou na fila, como todo mundo, pra não despertar suspeitas. Sujeitou-se a ficar uma meia-hora no sol da unidade pública esperando para ser atendido pelo médico. "Sr. Roberto Pereira", o Dr. Max vai atendê-lo. Consultório 13... no fundo à esquerda". Finalmente!
"No que posso ajudá-lo?", indagou o médico. Roberto não respondeu. Apenas foi caminhando, de forma intimidadora, em direção ao homem com jaleco branco. Por trás dos óculos de armação grossa, olhos cada vez mais assustados do médico. Apavorado exatamente por não saber o que acontecia. Não teve tempo de gritar. Logo não existia mais e era assimilado, absorvido pelo outro.

Roberto saiu do consultório tranquilamente. A enfermeira, entendendo que a consulta terminara, chamava o próximo. O novo paciente se surpreendera ao entrar no consultório e não encontar ninguém ali. "Esse sistema público é uma vergonha. O médico sai e vai embora assim no meio do dia, sem dar satisfação pra ninguém. Que falta de respeito!", reclamava o paciente seguinte. Roberto já atravessara o pátio e deixara o centro médico.

***

A criançada fazia estrepolias típicas daquela idade. Tarde característica de subúrbio: bola, corda de pular, banho de mangueira... A pequena fazia malabarismos numa barra de ferro. Até que levava jeito. Não tinha mais que 8 anos. Dois homens bem vestidos observavam o grupo de crianças. "É aquela?", quis saber um deles.  O outro confirmou com um aceno de cabeça, sem tirar os olhos da menina. "Você tem certeza que ela tem o talento?", perguntou, novamente, o primeiro. "Mais", respondeu o outro, "Faz mais coisas que ele". "O Roberto tem cometido muitos erros. Está ficando velho, descuidado. Acho que ela serve. Tá na hora de renovar isso aí". O outro jogou no chão o cigarro, apagou com a sola e avançou decidido: "Vou tratar com a mãe dela".

***

Roberto esperava só de cuecas deitado na cama. Motelzinho barato, uma vagabunda pra dar uma desestressada... O Agenor da agência que tinha arranjado pra ele. Disse que conhecia a garota, que era das boas. Vamos ver. Finalmente ela saía do banheiro. Só de calcinha. Era muito gostosa! Aproximou-se da cama encarando fixamente o cliente. Muito fixamente... Havia algo de estranho naquele olhar. Contornou a cama, deixou um envelope no criado-mudo e, com a maior naturalidade, simplesmente, escalou a parede como uma aranha e, na quina do teto, colocou-se em posição de ataque, pronta para das um bote.


Cly Reis

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