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quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

cotidianas #851 - "Dia 1"



Diferentemente de outras capitais maiores ou turísticas, Horto Feliz era uma metrópole de passagem que se esvaziava no final de ano. Bastava que chegasse pela metade de dezembro, que o fluxo migratório passava a se direcionar a outros estados (turísticos, em geral) ou, principalmente, para o litoral do próprio estado, a menos de 120 quilômetros, onde boa parte da população local mantinha casas de praia ou as locava para que outros gozassem as festas. No Natal, ainda se viam pessoas, pois o hábito bastante católico de passar esta data em casa com a família se mantinha em muitas delas, como a de Nei, cuja virada do 24 para o 25 foi com as filhas, a esposa e o filhão peludo Guilherme, um golden idoso.

E ficava ótimo curtir a cidade assim no Natal. Ruas desbloqueadas, trânsito civilizado, pouco movimento no supermercado, restaurantes frequentáveis. Um alívio a todos aqueles estímulos sensoriais constantes. A grosseria, o barulho, a histeria, a violência, até a mendicância haviam todos se mudado – mesmo que temporariamente. Nei não lembrava que a cidade ficava tão boa nessa época.

Porém, como é de praxe também, após a festividade natalícia, aí sim é que a cidade esvazia de verdade.

E esvaziou.

Havia ainda uma pessoa que outra a pé nas ruas. Carros, muito de vez em quando. O comércio, a maioria fechado: em recesso ou em férias coletivas. Todos merecem descanso, pois trabalharam o ano todo, pensava. Nas descidas do apartamento para as necessidades do Guilherme, foi raro encontrar algum vizinho fazendo o mesmo. Uma, duas, três, quatro vezes - e fosse pela manhã, tarde ou noite, independia. Tudo muito vazio, inóspito, silencioso, até inseguro. Nei arrepiou-se.

No fundo, ele entendia tamanho deslocamento. Havia um sentimento no ar de aproveitar o melhor possível os feriadões do final de ano, pois aquele tinha sido especialmente difícil para todo o Estado. Uma grave tragédia climática se abatera sobre o lugar meses antes, matando gente, desalojando milhares, provocando perdas irreparáveis. Recuperar-se disso demandou muita força de vontade e resiliência da população. Concluir o ano, então, tornou-se o primeiro e imediato alívio para mentes e corações ainda abalados com a calamidade. Era compreensível que a maioria quisesse passar os bons momentos da virada longe de onde sofreram tanto, já que, inevitavelmente, haveriam de voltar depois para as próprias casas (os que não as perderam na tragédia, claro).

Nei e sua família só não acompanharam o fluxo da massa porque, justo por conta do aquecimento imobiliário no litoral, amigos haviam alugado sua confortável casa de praia para a temporada. Então, resolveram de comum acordo ficarem na evacuada Horto Feliz. Mas conforme se aproximava do dia 31, mais ermo ficava. Menos gente se via. Aliás, mais ninguém. Casas mudas, janelas fechadas, trânsito zero. Estranho... Todo ano, o povo se mudava para outros lugares no Ano Novo, isso era comum. Mas desta vez, estava diferente. Algo radical e misterioso parecia estar acontecendo. Nei e os seus não quiseram pagar pra ver: valeram-se do que tinham na dispensa, passaram a tranca na porta e se enclausuraram dentro de casa. Temerosos.

Não bastasse todo este clima, horas antes de escurecer a luz falta. Pouco depois, a água que é cortada. Aflita, a esposa buscava falar com amigas e parentes, mas em todos os casos aparecia apenas um risquinho cinza da mensagem do whats. Nem leram. A melhor amiga, em viagem à Europa, fora o fuso-horário, tinha mais com o que se ocupar, e os parentes, naquele frenesi de filas e engarrafamento da praia, deviam estar muito mais ocupados com a própria irritação. Largou o celular. A filha mais velha, no entanto, realmente estranhou a incomunicabilidade quando tentou acessar as redes sociais e percebeu que estavam sem sinal. Nei, da velha geração, achou que conseguiria resolver a falta de notícias através do radinho de pilha guardado na dispensa. O aparelho, aliás, funcionou, mas a sintonia das rádios emitia apenas um angustiante zunido.

Nem precisa dizer que aquela foi a mais desagradável virada de ano de suas vidas. No escuro, socados em casa, com medo e no silêncio. Nem os fogos de artifício espocaram no céu, para sorte de Guilherme, que desta vez se livrou dos desesperadores barulhos de bomba. Não houve contagem regressiva, espumante, cumprimento, Feliz Ano Novo, selfie e nem abraços. O negócio era dormirem algumas horas para, quando o sol raiasse, tomarem juntos alguma providência.

Já de manhãzinha, desceram as escadas cuidadosos em direção à porta de saída, mas sem qualquer ameaça (ou esperança) ao redor, tendo em vista que nenhum vizinho se encontrava no bloco. Nem em todo o condomínio. Sob o olhar julgador dos filhos e da esposa, Nei avisou que não seria possível pegarem o carro, porque não havia abastecido o suficiente para uma viagem maior na crença de que, em alguma saída boba ao mercado, passaria num posto e reporia o tanque. Teriam que ir a pé.

Em grupo, quase colados, mas ligeiros, andaram pelo bairro o qual raramente acessavam a pé, olhando para os lados, tão admirados pelo o que não conheciam do que pela inação a qual presenciavam. Um silêncio assustador abrandado apenas pelo barulho do vento na vegetação e pelo canto dos pássaros, que podiam cantar livremente sem competirem com o ruído da urbe.

A esposa mandava os filhos não se distanciarem. A marcha era forte, principalmente para as pernas mais curtas do menor. Precisavam chegar em algum lugar. Cruzaram com uma árvore em frente a um prédio em que as luzinhas de Natal tocavam um antes inaudível Jingle Bells já desafinando em razão das pilhas gastas. Foi quando ouviram, de repente, o som de um veículo se aproximando. Uma caminhonete de vidros insulfilmados, que dobrou a rua cantando pneu e saiu em alta velocidade até sumir no horizonte em segundos. Eles, que acharam por alguns instantes terem retornado à civilização, se entreolharam desiludidos e sem se dirigirem palavras. Depois disso, mais nenhum sinal de vida por qualquer lado que olhassem. Tudo havia parado de fato. Nenhuma viva-alma sequer vista em quarteirões. Deserto.

Horto Feliz tinha se tornado uma cidade-fantasma.

Como Nei desconfiou, todos os postos de gasolinas que avistaram no caminho restavam abandonados: nem frentista, nem carros e nem energia. A cena calamitosa, ao menos, lhe amenizou um pouco a culpa por não poder pegar o carro e evitar aquela situação para todos, que caminhavam assustados e apressados para chegar sabe-se lá onde.

Carregando no colo Guilherme – cujas articulações gastas não o permitiam mais andar tanta distância – Nei, embora ofegante, indagava-se mentalmente: “Será que lá no litoral as pessoas estão felizes?” “Será que, realmente, estão TODOS lá?” “Terão gostado tanto de lá, que não pensem mais em voltar?” “Será que os encontraremos quando chegarmos, se chegarmos?” Outras inquietações, inclusive, lhe ocorriam: "Como ficará nosso apartamento, nossas coisas, o trabalho, a escola das crianças?!" "Teremos chance de... recomeçar?..."

Nei apressava o passo e cobrava com a voz trêmula de pavor que os outros o fizessem também. A noite começava a cair, e na estrada não era nada recomendável que andassem no escuro. A madrugada os esperava, contudo. Era inevitável. Quem sabe, após resistirem à noite, o dia 2 guardasse uma boa novidade.

 

Daniel Rodrigues


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