Um, dois, três, quatro... Os degraus iam se aproximando da borda da escada rolante e um a um sendo engolidos naquela mínima fresta final. Quando pequeno tinha medo de permanecer no degrau até o último instante e ser puxado para dentro da escada rolante. Por outro lado, tinha a curiosidade sobre o que aconteceria: eu seria esmagado e um chafariz de sangue espirraria nos passageiros que viessem atrás de mim? Seria prensado como nos desenhos animados e sairia achatado como uma panqueca pelo outro lado ? Ou haveria lá embaixo, do outro lado, um mundo inverso onde tudo seria o contrário do plano onde vivemos?
Nunca quis tirar a prova. Ficava na expectativa da chegada dos degraus à borda; um, dois, três, quatro degraus... e dois antes do meu, eu já pulava para a beirada na parte firme.
Só agora, depois de adulto, homem feito, é que consegui racionalizar o suficiente a situação para encarar o final de uma escada rolante.
Decidi superar meus medos e ir até o final. Permanecer no degrau até o último instante, até a borda segura, até que o degrau metálico se encolha e escorregue suavemente por baixo daquela abertura dentada desencontrada.
Preferi enfrentar algo tão traumático com o máximo de discrição possível. Fui à noite a um shopping center, desses com longas e lentas escadas rolantes. Permaneci até o horário de fechamento, esperei saírem os espectadores das últimas sessões de cinema, me escondi no banheiro de onde ouvi os avisos finais para que todos deixassem o estabelecimento, confundi a atenção dos vigias e, com o shopping deserto, me postei diante da borda fixa de um daqueles aterrorizantes monstros mecânicos. Não sei bem porquê, escolhi a descida. Talvez para poder visualizar meu destino final.
Respirei fundo, me concentrei. Hoje eu vou até o final, até o último degrau. Sem tirar o pé. Nada pode acontecer.
Minha determinação, no entanto, foi interrompida por uma voz vindo lá do fundo do shopping. Um dos seguranças da noite me vira. "Ô, aí. Que que você faz aqui dentro ainda? Não pode ficar ninguém!", gritou.
Era agora ou nunca. Tinha que aproveitar minha decisão, minha coragem. Não poderia deixar para outro dia. Do local onde ele estava, a alguns corredores de distância, mesmo que corresse, provavelmente, daria tempo para minha descida toda antes que chegasse até mim. Dei um passo à frente e botei o pé no degrau que surgia por baixo do chão firme. Comecei a ser levado pela escada para baixo, para baixo, para baixo... Lá no final os degraus iam sumindo um a um por baixo do chão. Faltam quatro, três, dois, um...
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Estalos repicavam pelo piso, do contato apressado da sola do sapato do vigia no reluzente granito cinza do shopping center. A esforçada corrida do obeso vigia não fora rápida o suficiente para impedir que o homem à beira da escada embarcasse nela. Era tarde. Estava a uns dez passos ainda e a cabeça do intruso já sumia no horizonte do segundo piso.
Sacou o rádio. "O Corrêa, tem um cara descendo pro primeiro de rolante. Pega ele aí embaixo que ele ficou aqui dentro depois de fechar. Copiou?". "
Quando finalmente chegou, ofegante, na beira da escada, no andar de cima, não encontrou nem rastro do último cliente. Nada.
Não demora nada e chega o Corrêa de braços abertos com cara de quem não entendeu nada. "Não passou ninguém por aqui", disse.
Deram de ombros e voltaram para suas respectivas rondas. "Fica de olho", disse o de cima. Se estivesse lá dentro, iriam encontrá-lo até o amanhecer.
Tudo estava quieto novamente. Apenas o rangido mecânico abafado das escadas rolantes quebrava o silêncio da madrugada. Algo parecido com um doloroso gemido.
Cly Reis

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