"Uma vez que você sentiu o poder da música, e viu pela primeira vez suas mãos serem capazes de tocar os corações e almas de pessoas em todo o mundo, esta magia é algo que você jamais esquece."
Eric Burdon,
da biografia "Don't let me be Misunderstood"
Um
dos meus discos favoritos deve ser uma surpresa para muitos dos que
me conhecem. Fui apresentado a ele em 1980 pelo meu amigo e colega
Luiz Paulo Santos. Chama-se “Before We Were So Rudely Interrupted”,
da banda inglesa The Animals e foi gravado em 1977. O grupo surgiu na
década de 60 quando o Alan Price Combo ganhou a adesão do vocalista
Eric Burdon. Mais um daqueles brancos de alma negra,
Burdon deu à banda a voz que faltava naquela mélange de blues, jazz
e soul no meio da beatlemania.
Os
Animals fizeram muito sucesso com “The House of the Rising Sun”,
“We've Got to Get Out of This Place”, “Don't Let Me Be
Misunterstood”, entre muitas outras. A primeira ruptura aconteceu
quando o baixista Chas Chandler resolveu deixar seu instrumento e ser
manager de um artista emergente na Swinging London e que daria muito
o que falar: Jimmi Hendrix. Logo depois, os Animals encerraram a
primeira parte de sua carreira com Alan Price fazendo trilhas para os
filmes de Lindsey Anderson (em especial o maravilhoso “O Lucky
Man”) e Burdon indo para a América, onde foi ser vocalista do
grupo War. Em 76, os integrantes do grupo resolveram dar uma segunda
chance ao azar. Reuniram-se e gravaram este disco com o estúdio
móvel dos Stones numa fazenda. O nome já é um achado: “Antes de
seremos tão rudemente interrompidos”. O velho humor inglês.
A
festa começa com o piano de Alan Price num clima boogie-woogie num
clássico de Leiber & Stoller mais Otis chamado “Brother Bill”
(The Last Clean Shirt). Um R & B das antigas, a canção permite
a Burdon dar seu primeiro de muitos shows durante o disco. O
guitarrista Hilton Valentine também faz seu primeiro solo, carregado
pelo piano de Price. Uma das melhores versões de “It's All Over
Now, Baby Blue” vem em seguida. O clima é soturno com a bateria de
John Steel fazendo uma batida seca e as harmonias de Alan Price se
juntando às da guitarra de Valentine, enquanto um sintetizador faz a
cama. Eric Burdon modula sua voz para encarar os altos e baixos da
canção. Nem Dylan teria pensado num arranjo ecumênico como este.
Depois
de duas canções dessas, chega a hora de descontrair com “Fire on
the Sun”, um rock libidinoso no estilo Little Richard, mas gravado
na década de 70 (“Your
love is like fire, baby / Fire on the Sun”). Mais
uma vez o cérebro musical da banda, Alan Price, comanda as ações.
“As The Crow Flies”, composta por Jimmy Reed, volta ao blues com
o piano elétrico. O resto da banda faz aquela velha batida blues de
Chicago. Pra fechar o lado 1 do LP, uma das melhores músicas de todo
o disco: “Please Send Me Someone to Love”. Nela, Eric Burdon
mostra toda a sua qualidade como cantor. Talvez nunca em sua carreira
ele tenha cantado uma música como essa, cheia de modulações e
subidas e descidas de tom numa mesma frase. Alguém poderia dizer que
é pirotecnia. Eu diria que ele é um excelente cantor. O narrador
pede paz e tranquilidade no mundo, mas se não for pedir muito, mande
um amor. “Heaven please
send / To allmankind /understanding and peace of mind / but if its
not asking too much / please send me someone to love”.
Numa cama de órgão, guitarra jazzística, baixo e bateria, o Fender
Rhodes de Price brinca, permitindo a Burdon uma performance
incrível.
O
antigo Lado 2 começa com uma música de Jimmy Cliff, “Many Rivers
to Cross”, que os Animals transformam de um reggae num lamento
gospel (o deles, não o nosso). A mensagem é de superação:
“Many rivers to cross / But I can't seem to find /my way over”.
Mais adiante, o narrador reclama da solidão: “And
this loneliness just won't leave me alone / It's such a drag to be on
your own”. No final,
Burdon rasga seus lamentos como um cantor negro de igreja batista no
Sul dos Estados Unidos. “Just Want a Little Bit” inicia
enigmática com o piano e passa para um R & B dançante de Little
Mama Thornton. Nesta canção, Alan Price relembra seus velhos tempos
de pré-beatlemania, quando o som da juventude inglesa era o blues e
o Rhythm'n'Blues de grupos com órgão, como o de seu colega Georgie
Fame. A única composição de integrantes dos Animals vem na
sequência: “Riverside County”, outro blues com escala
descendente. O grande compositor Doc Pomus aparece com a clássica
“Lonely Avenue”. Os arranjos deste disco brincam todo o tempo com
esta “simplicidade” do blues e vão colocando camadas e camadas
de pequenos detalhes com vocais, guitarras e teclados, enquanto a
batida é constante. O final é engraçado com “The Fool” que
diz: “Juntem-se a mim,
amigos / ergam suas taças/ e bebam ao bobão /o louco bobão / que
mandou seu amor embora”.
Durante
todo o disco, Burdon reclamou que a mulher tinha ido embora, que
estava numa avenida solitária e tal. Nesta última canção, este
arco dos relacionamentos vira do avesso. “Ela
encontrou um novo amor / eu digo que ele é o cara de sorte/ Bebam ao
bobão / eu mandei meu amor embora”.
Um disco de blues e Rhythm'n'blues em plena era disco e de Boston,
Eagles e Peter Frampton. Não poderia ter dado certo mesmo. Os
Animals saíram em turnê e cinco anos depois tentaram mais uma vez
com o disco “Ark” de 1983. Mas os melhores tempos já tinham
passado. Eric Burdon continua na ativa e acabou de lançar um
trabalho muito festejado pela crítica, “'Til Your River Runs Dry”.
Mas essa história vai ser contada daqui há pouco.
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FAIXAS:
1.
"Brother Bill (The Last Clean Shirt)" (Jerry Leiber, Mike
Stoller, Clyde Otis) - 3:18
2.
"It's All Over Now, Baby Blue" (Bob Dylan) - 4:39
3.
"Fire on the Sun" (Shaky Jake) - 2:23
4.
"As the Crow Flies" (Jimmy Reed) - 3:37
5.
"Please Send Me Someone to Love" (Percy Mayfield) - 4:44
6.
"Many Rivers to Cross" (Jimmy Cliff) - 4:06
7.
"Just a Little Bit" (John Thornton, Ralph Bass, Earl
Washington, Piney Brown) - 2:04
8.
"Riverside County" (Eric Burdon, Alan Price, Hilton
Valentine, Chas Chandler, John Steel) - 3:46
9.
"Lonely Avenue" (Doc Pomus) - 5:16
10.
"The Fool" (Sanford Clark) - 3:24
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OUÇA
AQUI:
por Paulo Moreira
Paulo
Moreira é jornalista e radialista há 32 (!!) anos, apresentador do
cultuado Sessão Jazz, da rádio FM Cultura, de Porto Alegre. Adora
música e cinema ou cinema e música, a ordem não altera o fator dos
produtos. Teve duas filhas (e uma neta) e plantou árvores. Falta
escrever um livro. Adora dois locais em extinção no mundo moderno:
livrarias e lojas de discos. É um jurássico assumido, pois usa mas
não é escravo das novas tecnologias. E nada substitui um bom livro
ou um encarte de discos com ficha técnica completa. Adora Porto
Alegre, mas, se pudesse, morava no Rio de Janeiro.