A Velha Guarda no palco da Redenção (foto; Tita Strapazzon) |
“Corri
pra ver, pra ver quem era/
Chegando
lá era a Portela”.
Como
são essas coisas da vida, né? Leocádia e eu não pudemos
comparecer ao show do guitarrista Stanley Jordan, no Canoas Jazz
Festival, o qual eu mesmo havia anunciado aqui no Clyblog como me
sendo imperdível. Porém, um dia antes, tivemos a oportunidade de
assistir a outro show de total arrebatamento. Pois mesmo sabendo em
cima do laço, fomos. Coincidentemente antecipando a semana em que se
comemora o Dia Nacional do Samba (2/12), o mais autêntico dos ritmos
brasileiros pôs os dois pés em Porto Alegre. Em celebração aos 80
anos de Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Velha
Guarda da Portela foi convidada para uma apresentação gratuita
no Parque da Redenção. Um verdadeiro espetáculo, histórico na
cidade, que me fez lembrar outro memorável ocorrido de 1996, quando
o nobre portelense Paulinho da Viola tocou no mesmo local.
Mestre Monarco, aos 80 anos,
comandando o samba
(foto: Tita Strapazzon)
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Mas
foram muito mais que estas. Muito mais. Empolgados com a
receptividade do público gaúcho, mandaram ver um show de quase 2
horas e meia, quando executaram não apenas sambas da escola que
pertencem, mas de vários outros autores e agremiações, como o
Império Serrano Silas de Oliveira, homenageado com “Senhora
Tentação” e seu grande sucesso, o samba-enredo “Aquarela
Brasileira” (considerada por Monarco como o mais bonito samba já
escrito). Todo o público cantou junto de ponta a ponta a canção,
que começa com os inconfundíveis versos: “Vejam essa maravilha
de cenário/ É um episódio relicário...” Igualmente, a
empolgante “É Hoje”, de Didi e Mestrinho, samba-enredo da União
da Ilha de 1982, um dos mais célebres da história dos carnavais.
Pra arrebatar os amantes do samba, Monarco, com sua voz de barítono
e modos elegantes típicos de um monarca do morro, presenteou-nos com
“O Sol Nascerá” (“A sorrir eu pretendo levar a vida/ Pois
chorando eu via mocidade perdida...”), emblemático samba do
gênio mangueirense Cartola. As emoções, no entanto, ainda não
terminariam por aí.
Obras
da Portela mesmo foi o que não faltou. Paulo da Portela, Chatim,
Ventura, Antonio Caetano, Alvaíde, Mijinha, Chico Santana. Os nomes
dos poetas e músicos desconhecidos do morro vêm à tona quando a
Velha Guarda toca. A começar pelo “abre-alas” “Esta Melodia”,
de Jamelão e Babu da Portela, composição híbrida das duas mais
tradicionais escolas de samba do Rio, que ficou conhecida na voz de
Marisa Monte. Paulo da Portela, fundador, principal compositor e
exemplo para toda a geração de sambistas portelenses, foi,
obviamente, lembrado mais de uma vez. “Hino Da Velha Guarda Da
Portela” dele, foi executada, mas seu nome é mencionado
seguidamente, como nas letras de “Corri pra ver” (“Foi
mestre Paulo seu fundador/ Nosso poeta e professor”), “Passado
de Glória” (“Em Oswaldo Cruz, bem perto de Madureira/ Todos
só falavam Paulo Benjamin de Oliveira”) e “De Paulo a
Paulinho”, que Monarco (autor também das duas anteriores) fez para
homenagear o mestre e seu discípulo, unindo passado e presente:
“Antigamente era Paulo da Portela/ Agora é Paulinho da
Viola...”
As pastoras Áurea, Neide e Tia Surica, divinas. (foto: Tita Strapazzon) |
Paulinho,
aliás, foi igualmente lembrado. “Foi um Rio que Passou em Minha
Vida” foi entoada com gosto pela plateia. Candeia, outro dos
grandes, também não faltou à festa, num samba cantado por Sérgio
Procópio, que comandava o cavaquinho. Ele – atual presidente da
Portela e parecido com Candeia, inclusive – relembrou “Dia de
Graça”, dos clássicos do compositor, muito bem selecionada no
set-list, pois soou extremamente adequada àquele público
ligado à universidade e pela ocasião comemorativa à UFRGS.
Contando a história de um filho de sambista do morro que consegue
chegar à faculdade, a poética letra desfecha assim: “E cante o
samba na universidade/ E verás que seu filho será príncipe de
verdade/ Aí então jamais tu voltarás ao barracão”. Dele,
também teve a parceria com Casquinha “Falsas Juras”, com aquela
impressionante escalada vocal das pastoras no refrão: “Não
adianta aos meus pés se ajoelhar/ Pode chorar, pode chorar”.
Em
meio a tanta beleza, ainda tiveram a filosófica “O Mundo é Assim”
(“O mundo passa por mim todos os dias/ Enquanto eu passo pelo
mundo uma vez...”), de Alvaíde; “Tudo azul”, de Ventura; a
linda “Lenço”, de Chico Santana e Monarco; e “Você me
abandonou”, de letra extremamente feminista (“Você me
abandonou/ Ô ô, eu não vou chorar/... O castigo que eu vou te dar
é o desprezo/ Eu te mato devagar”), mas composta por um homem,
Alberto Lonato. De Monarco, simpático e feliz pela ocasião, não
faltaram igualmente suas numerosas composições importantes para o
repertório do grupo. Além das já citadas, teve dele também
“Portela desde que eu nasci” – seu primeiro sucesso, na voz de
Martinho da Vila, quando ele, Monarco, ainda era um mero guardador de
carros, nos anos 70 –, sua primeira composição, escrita quando
tinha 13 anos, e os hits na boca de Zeca Pagodinho: a gostosa “Vai
Vadiar” e a iluminada “Coração em Desalinho”, dos mais lindos
sambas jê escritos: “Agora uma enorme paixão me devora/
Alegria partiu, foi embora/ Não sei viver sem teu amor/ Sozinho
curto a minha dor”.
A
comoção não parou por aí. Vieram outros clássicos como “O
Amanhã” (“Como será o amanhã/ Responda quem puder...”),
clássico samba-enredo, e “Portela na Avenida” (Mauro Duarte e
Paulo Cesar Pinheiro), imortalizada por Clara Nunes, que pôs tudo
mundo pra sambar e cantar, acendendo a galera, num verdadeiro êxtase:
“Salve o samba, salve a santa, salve ela/ Salve o manto azul e
branco da Portela/ Desfilando triunfal sobre o altar do carnaval”.
Simplistamente um espetáculo.
A
delicadeza, a simplicidade, a pureza da poesia destes sambas, unida
às engenhosas e límpidas melodias que se situam entre o
partido-alto, o sambe-enredo, o samba-de-roda, o batuque, o maxixe.
Assim são os sambas que a Velha Guarda da Portela, com o perdão do
trocadilho, guarda. Já escrevi sobre isso no meu blog: a
Velha Guarda abre um real espaço documental de registro de obras
que, não fosse a valorização de apreciadores ilustres – como
Paulinho e Marisa, que, em épocas diferentes, motivaram sua
existência e manutenção –, perder-se-iam no terreiro de
Madureira num pagode qualquer e, talvez, caíssem no esquecimento dos
tempos. Ainda bem que não, para o bem de amantes desses sambas como
nós que podem, ainda hoje, ser arrebatados como fomos naquela
histórica noite na (ou “de”) Redenção.
por Daniel Rodrigues