Os três mandando ver
na histórica Praça Tiradentes
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Sabe
aquelas lances da vida que te surpreendem porque tu não tinhas
prestado atenção na mensagem que o destino já tinha te dado? Pois
a cenográfica Ouro Preto foi-me cenário para uma ocasião dessas.
Afinal, só o destino explica porque Leocádia e eu cruzamos com
aquela figura horas antes de iniciar o show que nos inebriaria e não
o tenhamos reconhecido. Sim: topamos a centímetros com Winston
McAnuff na histórica Praça Tiradentes durante uma de nossas
caminhadas vespertinas pelas ruas da cidade. E mais: ele ficou nos
mirando debruçado sobre uma mureta, com seus óculos escuros azuis e
cabelos dread, como se nos convidasse para uma conversa, e...
não o identificamos. Nem sequer puxamos a máquina fotográfica, que
estava conosco!
Pois a
nossa falta de oportunidade – e de informação –, talvez, não
tenha sido à toa. Não sabíamos que aquela entidade negra que nos
olhara tão de perto no local onde a plateia fica – e que, horas
depois, seria por nós olhado daquele mesmo ângulo sobre o palco –,
tratava-se de uma das lendas do reggae jamaicano, com passagem pela
banda Inner Circle e de carreira solo consistente desde o final dos
anos 70. Soma-se a isso o fato de que o jazzista Chick Corea,
principal atração do Festival MIMO e motivo maior de termos ido até
lá naqueles dias, cancelara seu show por não ter conseguido sair da
Argentina em virtude da greve geral naquele país. Ou seja: não
havíamos nos preparado para nenhuma outra programação. Mas, em
contrapartida, se já soubéssemos o que presenciaríamos naquela
noite não seria uma gratíssima surpresa assistir ao “Electric
Dread”, como é apelidado, juntamente com outros dois (apenas
dois!) músicos: o multi-instrumentista francês Fixi e o
percussionista Marc Ruchmann.
Somando, apenas três no palco. Mas tinham muitos ali, com certeza.
Apoiado pelo espírito de Jah, a quem McAnuff invocou no começo da
apresentação, eles deram um show memorável.
Fixi comandando a banda
com seu acordeom
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O show
é baseado no álbum “A New Day”, projeto de McAnuff em
colaboração com Fixi, de 2013. Aí começa a operar a benfeitoria
do destino, pois tivemos a chance de ouvir as músicas do repertório
primeiramente ao vivo, visto que, no estúdio, se não chegam a ser
decepcionante, é bem menos impactante. Isso porque, ao vivo, o que
se viu foi um trio totalmente tomado pelos sons, cada um a seu
estilo, cada um com suas preciosidades.
Começando
por Ruchmann, que mais
parecia um monge tocador. Sentado ao fundo do palco de pernas
cruzadas, ele combinava beat-box vocal com dois aparatos de
bateria eletrônica e um prato em sua volta. Apenas. O suficiente
para dar a impressão de que tinha todo o Olodum ali. Sua precisão e
capacidade rítmica conseguiam imprimir com desenvoltura os mais
variados climas e ritmos, indo do reggae ao dub, do
punk rock ao trance. Já Fixi, arranjador e centro harmônico
da banda, alternava piano, teclado e acordeom. Mas que acordeom!
Parecia sair dali uns 20 instrumentos diferentes, de tão bem
explorados o fole, o teclado e o diapasão. Além disso, o cara
vibrava, dançava, girava alucinadamente a cabeça. Era contagiante
sua entrega. E melhor: mantinha a base e não saía do tom jamais.
E o
que falar de Winston McAnuff, então? Nossa: que cantor. Daqueles que
cantam com a alma negra, como um Ray Charles ou Ibrahim Ferrer, mas
que, acima de tudo, conhece a projeção da voz no ambiente ao vivo,
sabendo usar as reverberações e extensões da própria emissão
como poucos. Performático, lembrava, inevitavelmente, Bob Marley,
haja vista a força espiritual e a influência que o “pai do
reggae” tem na Jamaica. Mas não fica só nisso. Múltiplo e aberto
a todos os ritmos do mundo, fez, com Fixi, o skank de
Mandeville e o folk francês de Paris se aproximarem da tecno
de Londres, do blues de St. Louis, do jazz de Chicago, do soul de
Detroit, da polca Tcheca e até do baião nordestino!
McAnuff no palco do MIMO
sob a luz de Jah
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A cada
execução, íamos nos surpreendendo cada vez mais. Era uma melhor
atrás da outra! Em “Garden of Love”, música de trabalho do
disco, McAnuff remete ao fraseado de Bob e Tosh enquanto Fixi
imprime-lhe um ar de folclore escandinavo, o mesmo com “1, 2, 3”,
cujo riff de gaita é tão perfeitamente mantido que parece
eletrônico, tal como a batida da percussão. “You and I”, funk
com seu riff curto e repetitivo, é um James Brown afrobeat
com ares de Jamiroquai e PIL. “Wha Dem Say”, outra espetacular,
cadenciada e lírica, permitiu a McAnuff soltar o gogó sobre uma
performance quase jazzística da dupla de instrumentistas. Já
“Johnny” (personagem recorrente nas canções regueiras) é um
misto de reggae e blues que, mais uma vez, deu a McAnuff a
oportunidade de pôr o groove pelos pulmões, o que conquistou
de vez a parcela do público que ainda se intimidara com o frio da
noite de Ouro Preto.
A
partir dali, com o público definitivamente cativado, foi só manter
a mesma qualidade e alma. Exatamente o que aconteceu com “Heart of
Gold”, de construção esquisita mas altamente pop; “A New Day”,
linda, sustentada só no piano; e “Let Him Go”, com a qual o
vocalista chamou a plateia para acompanhar no canto e nas palmas.
Ainda “Things Happen”, drum’n’bass bem jazzy e
minimalista e, para cair ainda mais nosso queixo, “Don’t Give Up”
na qual Fixi simplesmente mandou no piano, na abertura, os acordes de
“O Guarani”, do compositor brasileiro erudito Carlos Gomes!
No
bis, mais surpresas. Depois de uma balada emocionante, tocaram, com
ciência do que estavam fazendo, “If You Look”, um lindo
baião-Gonzaga, que cresce no seu decorrer para se transformar em um
trance atmosférico e sideral. Que musicalidade, que energia, que
multiplicidade de ritmos. Se existe a world music, é aquilo
que vimos. Momento realmente especial ter vivido aquilo sob a neblina
cinematográfica da noite de Ouro Preto, atmosfera que nos impele,
inevitavelmente, a certa sensação de ilusão. Chegamos a nos
perguntar: “foi verdade?”. “O que o destino, Deus, Jah, quis
nos dizer com o cancelamento do show de Corea, com aquela
identificação de olhares que tivemos com McAnuff à tarde, e para
coroar, com o maravilhoso show que assistimos?” Talvez as respostas
nos faltem. Mas que foi verdade, foi. E foi demais.
por Daniel Rodrigues