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segunda-feira, 14 de agosto de 2023

Exposições “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”, de Pierre Verger - Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) - Porto Alegre/RS


 

"Verger era um africano nascido na França”. 
Nondichao Bacalou, assistente de Pierre Verger

"Verger é a pessoa que historicamente vem se dedicando mais a essas relações com a África”.
Gilberto Gil

Quando estivemos em Salvador, em 2015, uma das certezas as quais saímos levamos na mala era a de que queríamos ver a obra de Pierre Verger. Tanto quanto a casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, o Pelourinho, o Elevador Lacerda, a Sorveteria da Ribeira, o Mercado Modelo, a praia de Itapuã e outros elementos turísticos e culturais da capital baiana, ter contato com o estrangeiro que melhor entendeu e melhor se hibridizou àquela cidade era um desejo alentado por Leocádia e por mim. Conseguimos visitar uma loja da Fundação Pierre Verger com um pequeno acervo próxima ao Pelourinho, onde ficamos hospedados. Saímos com alguns souvenires e roupas temáticas, que até hoje nos fazem lembrar de lá. Porém, considerando os menos de cinco dias que pudemos ficar, e que naquela época qualquer movimento maior numa cidade que não se conhece podia ser realizada apenas de táxi, pois não existiam ainda os aplicativos de transporte, a matriz da fundação, no longínquo bairro Engenho Velho de Brotas, infelizmente, não deu para irmos.

A frustração de não conseguirmos nos estender na obra de Verger, acalentada por um remoto retorno a Salvador, foi parcialmente superada com uma dupla exposição do icônico trabalho do fotográfico do etnólogo, antropólogo e escritor francês em Porto Alegre. “Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás” trazem o olhar de Pierre Fatumbi Verger sobre a diversidade cultural e a influência recíproca da religiosidade nas culturas africanas e afro-brasileiras. Fez-nos sentir ainda mais em Salvador o fato de que mostra é uma parceria com a Fundação Pierre Verger e as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação.

“Todos iguais, todos diferentes?” traz um recorte dos retratos feitos por Verger a partir de seus encontros nas viagens que realizou pelo mundo durante mais de 40 anos. São imagens que, a partir de seu olhar, ressaltam os aspectos da diversidade cultural e do respeito ao outro. Vietnã, Espanha, Congo, Oceano Índico, Senegal, Bolívia, México, Togo, Peru, Mauritânia e, claro, Brasil, são alguns dos países e feições literalmente retratados no trabalho de Verger, que explora imagens em primeiro plano de indivíduos, que se tornam, mais do que apenas retratos de pessoas, mas uma intenção sociopolítica democrática e libertária típica da Antropologia Social da geração a qual ele pertenceu. Não errado dizer “de esquerda”.

Visão geral do primeiro salão de “Todos iguais, todos diferentes?”

Já “Orixás”... Nossa, “Orixás”! Este traz nada mais, nada menos do que uma seleção de fotografias ampliadas em grande formato que constam no livro homônimo de Pierre Verger, lançado pela primeira vez em 1981 e considerado como um dos 200 livros mais importantes para se entender o Brasil A exposição compila, de forma plástica e poética, as pesquisas de Verger sobre a história e mitologia dos orixás nas religiões afro-brasileiras, sobretudo em Salvador e Bahia, além de destacar a origem desses rituais na cultura e nos mitos iorubás africanos em países como Nigéria, Daomé (atual Benin) e Togo. Ao realizar esses estudos em suas viagens desde a Bahia e Recife e até a região do Golfo de Benin, entre os anos 1948 e 1978, Verger se tornou pioneiro na pesquisa quanto às influências culturais e religiosas recíprocas entre África e América, tal como passaram a se dar a partir do século XVI, com a diáspora africana ocorrida em função do tráfico de negros escravizados. As fotos são algo simplesmente arrebatador.

A sensação de penetrar no mundo de Verger ganha força a cada fotografia que se passa, a cada olhar de outra pessoa captada por ele, a cada detalhe enquadrado, a cada realidade dita em apenas um click de segundos. Ainda mais na exposição “Orixás”, que nos fez voltar àquela atmosfera da Bahia da qual nos despedimos com sentimento de incompletude. Adensa ainda mais esta percepção o fato de que a mostra é, justamente, resultado de uma parceria do Margs com a Fundação Pierre Verger e que as obras selecionadas pelo curador de Alex Baradel, especialista responsável pelo acervo fotográfico da Fundação. Só podíamos mesmo voltar à mágica Bahia de Todos os Santos, e isso sem precisar sair ali, na beira do Guaíba, abençoada por Yemanjá.

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Iguais e, sim, diferentes


Senhora típica espanhola e um belo jovem vietnamita, em fotos dos anos 30


Trabalhadores do povo daqui e de lá


Mulher africana e Leon Trotsky no exílio México


Vista geral da mostra “Todos iguais, todos diferentes?”


A vitalidade de jovens do Vietnam e de Cuba


Detalhe do preciso sorriso de um pequeno mexicano


Composições semelhantes em Tarabuco, Bolívia (cima) e em Ocongate, no Peru


Detalhe no foco, que está no rosto da jovem em segundo plano


Expressivo retrato de um idoso no Brasil dos anos 50, interior de SP


Outra marcante foto desta linda cubana (1957)


Entre os vários amigos ilustres, Dorival Caymmi, Diego Rivera e Walt Disney, ao centro, de "gaucho"


Foto da impressionante exposição "Orixás" (anos 50)


Trabalho etnológico de Verger, que rendeu fotos históricas da religiosidade africana e brasileira


Divindades do candomblé representadas


A plasticidade própria dos cultos africanos 


Yemanjá (Salvador, 1946)


Um 360° de "Orixás"


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“Todos iguais, todos diferentes?” e “Orixás”
Visitação até 08 de outubro, de  terça-feira a domingo, das 10h às 19h
Local: Museu de Arte do Rio Grande do Sul - MARGS - 1º andar expositivo do MARGS (Pinacotecas e sala Aldo Locatelli)
Praça da Alfândega, s/n°, no Centro Histórico de Porto Alegre - RS
Ingresso: gratuito


Daniel Rodrigues

terça-feira, 5 de julho de 2022

Exposição “Antes que se apague: territórios flutuantes”, de Xadalu Tupã Jekupé - Fundação Iberê Camargo - Porto Alegre (RS)

 

É sempre um prazer voltar à Fundação Iberê Camargo. Aproveitando dias de descanso e uma tarde ensolarada na gélida Porto Alegre invernal, o passeio se completou com o convite de Leocádia a visitarmos a exposição a pouco aberta do artista visual gaúcho e indígena Xadalu Tupã Jekupé, “Antes que se apague: territórios flutuantes”. Condizente com o momento histórico que o Brasil vive atualmente, de total desrespeito à cultura indígena somados aos séculos de extermínio do povo originário americano.

Com curadoria de Cauê Alves, a primeira individual do artista na instituição aborda a questão do apagamento da cultura indígena na região oeste do Rio Grande do Sul, onde diversas etnias foram dizimadas. São 19 obras, que surpreendem pelas dimensões impactantes e pela riqueza de simbologias. Elas são memórias da infância de Xadalu, bem como de sua mãe, de sua avó e de sua bisavó, na antiga Terra Indígena Ararenguá, na beira do Rio Ibirapuitã, em Alegrete. Memórias da casa de barro, sem luz elétrica, do fogo de chão e da pesca, das águas geladas que atravessavam todos os dias em busca de alimento e das infinitas noites escuras, apenas iluminadas pelas estrelas.

Para quem circula por Porto Alegre há aproximadamente uma década, é quase impossível não ter se deparado com os adesivos, cartazes, pinturas ou bandeiras de Xadalu com o escrito “área indígena”. Diferentemente da anarquia escancarada de Toniolo da Porto Alegre dos anos 80, é a reinvindicação do direito ao território, uma reocupação simbólica, uma vez que, de fato, não apenas este pedaço do Sul, mas todo o Brasil (quiçá, quase toda as Américas) já foi território indígena. 

Na exposição, contudo, o artista avança em sua crítica-manifesto e redimensiona estes significados. Um fator que impressiona, além do uso das cores e da apurada técnica no uso da tinta acrílica, é a cosmologia indígena, a qual difere radicalmente do paradigma “branco”. Planetas, satélites, espaços terrestres ou o próprio céu ganham formas quase surreais, místicas, encantadas, quando não donas de uma luminosidade tão viva, que além da realidade. 

Mais impressionante, contudo, ainda mais para porto-alegrenses como eu e Leocádia é a reapropriação/ressignificação dada à imagem das carrancas que fazem parte dos adornos da Catedral Metropolitana. No alto do da igreja, mostram rostos guaranis sofridos que representam a sucumbência do índio ao homem branco e a Igreja. Xadalu, irônico, inverte esta lógica: com os dizeres "OI pecei cetã nnande ary" (algo como “A cidade sobre os índios”) e a impactante reprodução destas mesmas carrancas, agora povoando o espaço urbano que lhe foi tirado.

Detalhe dos rostos dos guaranis que há mais de um século
 "adornam" a cidade"

Na visão de Cauê, a obra de Xadalu representa “uma espécie de reconquista que não é como a conquista colonial, que explora e destrói a terra, seja pelo garimpo, a monocultura ou a construção de cidades e monumentos, mas de modo singelo, chamando atenção para quem sempre esteve ali, sentado, resistindo, mas que foi praticamente apagado, como se os indígenas tivessem perdido sua visibilidade.”

Complementarmente à outra exposição presente no mesmo Iberê Camargo com a retrospectiva da artista visual pelotense Maria Lídia Magliani, mulher preta e de forte ativismo às questões femininas à sua época, a mostra de Xadalu fortalece a noção de ocupação a qual os diversos espaços expositivos vêm tomando consciência e, literalmente, espaço. Ver de forma tão consistente a questão indígena – assim como recentemente ocorrera no MARGS para a exposição “Coleção Sartori — A arte contemporânea habita Antônio Prado”, substituída por outra importante ocupação simbólica: “Presença Africana”, atualmente em cartaz – é um alento em tempos de intolerância e sombras. Tempos em que terras indígenas estão completamente desprotegidas e que a cultura originária corre – como talvez jamais esteve em 500 e tantos anos de descobrimento do Brasil – tamanho risco de aniquilamento.

Respeito à fauna e à clora, herança dos índios

Uso apurado da tinta acrílica 

Série "Pindovy", pintura e vídeo


Mais uma impressionante tela de Xadalu

Acrílica que parece até óleo sobre tela

A interessante instalação em que a terra se descola do planeta.
Transformação ou extinção?

Outra mensagem socioecológica pelo ponto de vista da cosmologia indígena

Obra que usa sementes sagradas como forma de expressão


Vista geral dos corredores

Nós e a gigante obra "Nheru Nhe'ry" (tinta acrílica, serigrafia e costura sobre tecido)

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exposição “Antes que se apague: territórios flutuantes”, de Xadalu Tupã Jekupé
Quando: até 31 de julho
Onde: Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2000, Porto Alegre)
Horários de visitação: Quinta-feira a domingo, das 14h às 18h/
Às quintas-feiras, entrada gratuita.
Ingressos: pelo site Sympla ou na recepção da Instituição.
Informações: iberecamargo.org.br


Texto: Daniel Rodrigues
Fotos: Daniel Rodrigues
Leocádia Costa

sábado, 16 de abril de 2022

Exposição “Terreal”, de Dione Veiga Vieira - Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) - Porto Alegre/RS

 

"Um mar que se liga ao corpo, e um corpo que se liga ao mar."

Não é qualquer dia que você tem na parede de casa a artista a qual você vai assistir na exposição. Podemos dizer com satisfação que é o caso de Dione Veiga Vieira, de quem Leocádia e eu vimos “Terreal” no Museu de Arte do Rio Grande do Sul (MARGS) e que fica somente até dia 17/4. Um dos mais destacados nomes da chamada Geração 80 das artes visuais no Rio Grande do Sul, a porto-alegrense Dione faz um panorama dos últimos 20 anos de seus 40 de produção. Ousada e sensível ao mesmo tempo, a mostra é uma imersão à experimentação. Não se veem a pintura ou o desenho propriamente ditos, mas, sim, sugestões imagéticas que se depreendem de objetos tridimensionais e propostas instalativas e investigativas. São materiais naturais e industriais, que dão um caráter narrativo muito pessoal e poético. 

São esculturas, instalações, fotografias, vídeos, textos, fotoperformance e um manancial de objetos e materiais, como artefatos metálicos, tecidos, pentes, funis, louças, embalagens, passaguá, etc. Rede de pesca, aliás, que aparece em alguns nichos, costurando com sua linha o conceito que une, como a própria Dione diz, essa “poética do corpo e da natureza”. O mesmo objeto que, igualmente, compõe um dos quadros o qual temos da artista, que faz parte da série “Do Mar Purpúreo”, de 2012. Bastante familiar também “Decantação III” (2008, prateleira de metal e 47 vasos de vidro artesanal), que, por sua vez, dialoga com a séria fotográfica "Solutilis" (2011), onde veem-se os mesmos vasos de vidro azulados impressos.

Uma exposição muito detalhada e bem montada pela curadoria de Francisco Dalcol e Fernanda Medeiros, que nos faz despertar impressões sensoriais poéticas, visto que nos coloca de fronte a matérias essenciais de nossa natureza, nossa carne. Seja mineral vegetal ou animal. 

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As belas fotos de natureza de Zona de Metamorfismo, de 2015


Visitantes admirando todos os detalhes da exposição


Uma das vitrines com objetos diversos, que remetam ao azul do mar

 
Conjunto de fotos sobre Canvas P&B/color e vice-versa


Instalação "Margens de Transição", de 2020

Os vasos de vidro de  "Estados Alterados", 
similaridade com um dos nossas obras de Dione


Mais da uma composição instalativa da mesma série


Técnica mista em quadros que respiram organicidade 

Objetos que fazem constante alusão ao mar


Bugigangas poéticas, como se tivessem sido resgatadas do mar subjetivo


Díptico fotográfico de “Estados Alterados (Da noite Negra)” (2004-11)


Tule e madeira da instalação "Substratos de Extremos"


Detalhe de "Fertilização I" (2012/14)


Bacia com conchas e areia de "Substratos de Extremos"


Formas orgânicas que remetem à carne e areia


Em disposição espacial...


... e neste díptico que desacomoda


Leocádia integrando-se à exposição de Dione


E eu quase escondido entre essas formas carnais pendentes



texto: Daniel Rodrigues
fotos: Daniel Rodrigues e Leocádia Costa