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domingo, 27 de outubro de 2013

Grant Green - "Matador" (1964)


Acima, a capa original de 1964,
seguida da capa da reedição em CD
“Grant Green merece uma medalha por gravar o hit
‘My Favourite Things’ de [John Col]Trane
com o mesmo conjunto.
Mas embora o grupo se aproxime da canção
com o mesmo estilo 6/8
e da forma como Coltrane a sentia,
não a reduzem aos essenciais acordes básicos”.
Michael Cuscuna


O jornalista e crítico musical Márcio Pinheiro uma vez afirmou, com toda propriedade, que tudo o que os grandes nomes da MPB (Maria Bethânia, Caetano VelosoGilberto GilChico BuarqueGal Costa, João Donato, entre outros) produziram nos anos 70 é de ótima qualidade. É só pegar qualquer disco daquela época e ouvir que não tem erro. Infalível. Tudo favorecia para que tanta coisa boa acontecesse ao mesmo tempo e com um nível altíssimo de qualidade, o que ocorre de tempos em tempos conforme o cenário cultural, político, histórico e social de determinado local. Isso se aplica à produção de jazz norte-americana dos anos 40 a 60. Na época, gênios estavam a pleno (Miles Davis, Dizzie Gillespie, Charles Mingus, Duke Ellington), outros se estabeleciam rumo ao Olimpo (John Coltrane, Wayne Shorter, Herbie Hancock, Ornette Coleman) e, além destes, igualmente talentosos e sintonizados com aquela onda (Kenny Dorham, Joe Henderson, Lee Morgan, Freddie Hubbard, Sonny Rollins e mais centenas e centenas), não ficavam para trás em maestria e qualidade. Tudo conspirava a favor: retomada da sociedade civil no pós-Guerra; surgimento de uma nova classe afrodescendente e latina em fase de transformação sociopolítica; produções de várias lugares que se complementavam e se somavam; centros urbanos (Chicago, Nova York, Filadélfia, Los Angeles) suportando técnica e economicamente este contingente; encorpo da indústria cultural; e, o mais importante: o resultado de toda uma tradição musical, artística e antropológica trazida pelos negros da África e ressignificada na América que, agora, confluía de diversas formas e em quantidades amazônicas.

As gravadoras de jazz mantinham em seus portfólios artistas de primeira linha, mas, em especial, o Blue Note, principalmente no final dos 50 aos 60, era, esta sim, infalível. Tudo muito bom, sem exceção. A este selo pertenciam vários dos melhores jazzistas da época, e um deles era o guitarrista Grant Green. Com forte base no rhythm'n blues e com extremo domínio do bebop, além de ser também um espetacular solista em baladas, ele se junta, por força do destino, a McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, bateria, e Bob Cranshaw, baixo – ou seja, trocando-se Chanshaw por Jimmy Garrison, dá a “cozinha” que gravou com Coltrane o antológico “A Love Supreme”, a segunda melhor banda de jazz de todos os tempos depois do quinteto de Miles dos anos 50, que tinha o próprio Coltrane na formação.  Com eles, lança, em 1964, um disco cuja alcunha fala por si: “Matador”. Em apenas duas sessões (uma em maio e outra e junho, apenas cinco meses antes da gravação de “A Love Supreme”), conta, além da maestria desses músicos, com a mão apurada de Rudy Van Gelder na técnica, o alemão responsável pela operação de estúdio de 90% das históricas gravações de jazz da época, que afina a mesa de som de “Matador”. Igualmente, na arte da capa – mais uma particularidade dos selos de jazz, inclusive o Blue Note, que a valorizavam tanto quanto o conteúdo –, quem empresta seus traços em um desenho a nanquim de um esboço de Green empunhando a guitarra é ninguém menos que Andy Warhol.

Se fosse só isso, já seria legal. Mas aí vem o que interessa: música. Na faixa-título, Green abre o disco fazendo soar seu tom característico de dedilhado muito limpo ao ouvido, em que desliga os graves e agudos do amplificador e dá ganho nos alto-falantes. Ele exercita seu estilo técnico e habilidoso do R&B, porém colocando sempre a expressividade acima da perícia. Isso fica claro na linda escalada progressiva dedilhada com a suavidade do blues e em todo o enredo, desenvolvido com segurança e alma pelo quarteto. Aqui já se nota a predileção pelas quartas de Tyner, que dá saltos de três intervalos maiores acima da tônica da melodia, o que surpreende e mexe com o ouvinte. Também, tem a marcação balanceada e cheia de groove de Jones. Todos cobertos pelo baixo competente de Cranshaw. Soul-jazz da melhor qualidade.

Aí, preparem-se, leitores-ouvintes, pois vem uma das peças mais lindas que o abençoado jazz já cunhou. E a ligação de Green com Coltrane aqui se faz inequívoca. Não é apenas pela parceria com seus músicos de fé nem só pela contemporaneidade de ambos (naquele início de anos 60, o saxofonista era já uma lenda e talvez o maior astro de jazz vivo então), mas também de repertório e espírito. Tanto é que Green pinçou justamente o maior sucesso comercial de
Coltrane para uma gravação baseada não na original canção popular natalina de Hammerstein II e Rodgers, mas na versão marcadamente modal e particular criada por Coltrane: a obra-prima "My Favourite Things". Retomando a estrutura e o clima da faixa que Trane gravara quatro anos antes, Green simplesmente arrasa. Tyner e Jones, que compunham a banda de Coltrane na histórica sessão de 1960 (junto com Steve Davis, no baixo), aqui, sabem exatamente o que fazer. O piano, elegante e preciso no seu jogo modal em três tempos (meio tom acima que na versão clássica e em compasso ligeiramente mais acelerado); a bateria, puro ritmo em ataques sincopados da baqueta na caixa, rolos engenhosos e combinação constantemente diferenciada de pratos/bumbo/caixa. E Green... Ah! Este exala inspiração das cordas de sua Gibson em construções ágeis e luminosas não de modo a imitar Coltrane, mas, sim, de homenageá-lo. Os três, junto com Cranshaw, alternam lances de liberdade dissonante e politonalismo que atinge por vezes um epicismo quase sinfônico tamanha a sintonia. Não é exagero dizer que esta “My Favourite Things” só não é melhor que a de Coltrane – o que, convenhamos, é quase impossível, uma vez que se está falando de algo comparável ao "Bolero", a “For no One”, à Cavalgada d’"As Valquírias” e obras desse porte.

Green, por mais apurado que seja, é muito coração, pois sua técnica está sempre a serviço de uma música o mais pura possível, como um bom blues ou gospel. Tal qual Coltrane, ele evita os clichês, flutuando com expressividade dentro das escalas. “Green Jeans” é assim. Neste hard bop modal, a ágil e criativa mão esquerda de Tyner impressiona por seu lirismo, enquanto a direita modula e mantém a tônica. Jones faz a “cama”, dando ênfase na consistência do ritmo e na continuidade através dos pratos. Mas é Green quem brilha. Apreciador de jazzistas não apenas do seu instrumento, como Charlie Christian e Jimmy Raney, mas, principalmente, dos de sopro como Coltrane, refletia diretamente em seu fraseado o estilo reed style de tocar como os mestres Miles e Charlie Parker, a quem admirava especialmente. “Green Jeans” mostra bem isso, pois há momentos em que até parece que o solo está saindo de um sax alto ágil e suingado e não de uma guitarra. Mas é. Ao invés do stacatto (quando cada nota aparece destacada da seguinte), muito usado pelos guitarristas, usa o legato, ligando as notas de suas frases à maneira de um saxofonista.

“Badouin”, repleta de enlevos, traz as influências folclóricas que faziam a cabeça dos jazzistas da época. Seu riff carrega toques orientais, árabes e africanos num uníssono agudo de guitarra e piano, enquanto a bateria marca um ritmo tribal. Era o show de Elvin Jones só começando... A manutenção Tyner com o baterista é impecável, na medida certa, jogando a luz sobre o solista, mas sem se ausentarem do foco. Green, assim, improvisa acordes circulares e, às vezes, até repetitivos e hipnóticos, como os de um encantador de serpentes. O solo de Tyner é cheio de expressividade e classe. Já a marcação pontuada de Jones nos pratos e nos ataques de baqueta à caixa, ora fortes, ora suaves, antecipam seu único solo no disco. Mas que solo! Imponente, Jones vale-se de todo seu arsenal polirrítmico, dobrando compassos, variando volumes e extensões, combinando as texturas, salpicando sonoridades africanas e latinas. Um espetáculo. Depois, só restava mesmo voltar ao chorus e encerrar a faixa.

Finalizando o disco, num compasso um pouco mais ligeiro que uma balada tradicional, “Wives and Lovers”, clássico de Burt Bacharach, que ganha a sua talvez mais radiosa e definitiva versão no jazz. Longe do standart pop cantado por Frank Sinatra (lindamente, diga-se de passagem), “Wives...” recebe aqui outra roupagem, o que lhe dá uma nova vida. É um prazer inenarrável ouvir Grant Green executando o riff com toda aquela singeleza, movimento e sensualidade, num controle total de tempos e durações. Seu improviso traz lances de redemoinhos sonoros que enredam o ouvinte e que, logo, se resolvem numa nova e engenhosa solução, fazendo a música evoluir para um hard bop não menos romântico. Tyner, impecável como sempre; Chanshaw, escalonando com elegância; e Jones, mais uma vez inteligente e fluido, segura o ritmo no chipô e na vassourinha arrastando no couro da caixa, adensando o clima sensual e etéreo.

Apenas quatro faixas (considerando que “Wives...” foi incluída na edição em CD), mas que carregam todos os predicados do alto nível do jazz que a Blue Note produziu naquela fase de ouro. E mais do que isso: um disco coirmão da obra-prima “A Love Supreme”, quase que, junto a “Crescent”, do próprio Coltrane e também daquele mesmo ano, um ensaio de luxo para o que o gênio do saxofone iria revelar meses depois e com praticamente o mesmo time na retaguarda. O que dizer, então, deste disco de Grant Green? Numa palavra: “Matador.

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FAIXAS:
1. "Matador" (Green) – 10:51
2. "My Favorite Things" (Oscar Hammerstein II, Richard Rodgers) – 10:23
3. "Green Jeans" (Green) – 9:10
4. "Bedouin" (Pearson) – 11:41
5. "Wives and Lovers" (Bacharach, David) – 9:01


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Ouça:
Grant Green Matador




sexta-feira, 27 de novembro de 2015

John Coltrane – “Ascension” (1965)




“[‘Ascension’] foi a tocha que acendeu o free-jazz.
Quero dizer, ele começa com Cecil (Taylor) e Ornette (Coleman) em 1959,
mas ‘Ascension’ foi como um santo padroeiro que dizia:
‘está bem – isso é válido’.
Acho que teve um efeito muito maior
sobre todo mundo do que ‘A Love Supreme’”.
Dave Liebman

“Trabalhei feito um condenado.
Não consegui sentir prazer na sessão.
Se não fosse uma gravação, eu teria me divertido.
Sabe, estava de olho no relógio e tudo mais.
Quanto a ouvir o disco, disso eu gostei;
gostei de todas as contribuições individuais”.
John Coltrane



Ao mesmo tempo é uma tarefa fácil e difícil falar de “Ascension”, de John Coltrane. Fácil pelo motivo óbvio: a inegável qualidade superior que o músico imprimia em tudo que fazia, ainda mais em seus trabalhos mais maduros, como neste caso, sua última gravação em estúdio. Além do fato de ser apenas instrumental, também ajuda na apreciação o formato, pois, ao invés de se explanar sobre várias faixas, como num disco pop, ou mesmo 4 ou 5 delas, comum a um álbum de jazz, “Ascension” tem apenas um tema monotemático. Um extenso e único número contínuo. E é aí que saltamos da facilidade para a complexidade – e, curiosamente, todos os motivos que talvez lhe facultassem facilidade passam a ser vistos de outro ângulo.

Se fosse uma trilha de simples deglutição, ainda vá. Só que o fato de ser altamente ruidoso e intrincado já refuta qualquer amenidade na análise. Como um filme de Bergman ou um quadro de Bacon, em que, mesmo se gostando, se é desafiado a apreciar, ouvir “Ascension” exige sensibilidade e retidão. Se for considerar os adjetivos costumeiramente usados ao longo dos anos para definir “Ascension” aí sim se verá que realmente o buraco é mais embaixo. Classificado como “visceral”, “rebelde”, “complexo”, “urgente”, “provocativo”, “cerebral” e “catártico”, para ficar em apenas alguns exemplos, trata-se do célebre canto-do-cisne do genial Coltrane, o que somente por isso já valeria um registro nos anais. Porém, além de tudo, é o sucessor da obra-prima "A Love Supreme" e o disco simboliza o ápice de um artista cuja carreira foi de total devoção à sua arte, pautada pelo constante amadurecimento e que paulatinamente voltou-se a uma busca espiritual de seu autor. Estava ali ele exposto, inteiro e indivisível.

Mas se o resultado final de “Ascension” aparenta ser sucinto, os meios pelos quais Coltrane chegou a tal não são nada simplórios. Além de sua banda de fé, que o acompanhava havia quatro anos – os gigantes McCoy Tyner, ao piano, Elvin Jones, na bateria, e Jimmy Garrison, contrabaixo –, Trane, incansável perscrutador de novos horizontes sonoros e metafísicos, surpreendeu a todos ao adicionar à aparentemente imexível formação novos integrantes. Primeiro, mais um baixo, o de Art Davis. Ainda, nada menos que outros seis sopros além do dele: dois trompetes, a cargo de Freddie Hubbard e Dewey Johnson; dois saxofones alto, Marion Brown e John Tchicai, e mais dois sax tenor para somarem-se ao seu, recrutando os então jovens admiradores Pharoah Sanders e Archie Shepp. Para quem vinha de um bom tempo desenvolvendo trabalhos autorais em quarteto (e não era qualquer um: era O quarteto de jazz!), colocar 11 músicos – sendo 7 deles, de sopros – e de diferentes origens (dos oriundos dos conservatórios a rapazes da nova geração passando pelos tarimbados do be-bop) era, no mínimo, desafiador. Por mais habilidoso que o engenheiro de som Rudy Van Gelder fosse. Mas Coltrane já era o grande nome do jazz moderno àquela altura, e tanto músicos como técnicos tinham essa noção. Por isso entendiam que, fosse como fosse, estavam prestes a preencher mais um capítulo da história do jazz naquela noite de 28 de junho de 1965.

O que se revelaria, enfim, dessa inusitada reunião? Nem quem estava acostumado com as experiências de Coltrane – sua banda, o produtor Bob Thiele e Van Gelder – imaginava o que ele propunha. Afinal, o conceito guardava realmente um arrojo inigualado até então. Coltrane já havia experimentado performances contínuas e longas tanto ao vivo quanto em estúdio. Mas não com tamanha complexidade, o que lhe deu um bocado de dor de cabeça. Mas, como se sabe, a obsessão e o perfeccionismo são proporcionais à genialidade. Referenciando-se no free-jazz de Ornette Coleman e Cecil Taylor, nos arranjos engenhosos de Charles Mingus para grandes bandas com vários tipos de sopros, bem como nas pesquisas das culturas oriental e africana e nas inovações tonais/atonais da vanguarda erudita (Messiaen, Bártok, Ives), Coltrane juntou tudo isso a seu gigantesco cabedal musical e engendrou uma ideia a qual já praticamente consolidara no seu celebrado álbum anterior: a da construção de uma peça una cuja “alma” conduzisse a “técnica”. Pautados pela ideia-base de “ascensão”, era o coração dos músicos, conectados com seus deuses interiores, que, a partir do conhecimento e experiências de cada um, constituiria o âmago de “Ascension”. Assim, ainda mais que “A Love...”, esta obra soa como uma suíte altamente coesa – no caso, uma improvável sinfonia para 5 saxofones e 2 trompetes.

Tal alquimia é arranjada com maestria no cadinho mental de Coltrane. A canção-tema se constitui de ensembles intercalados com solos de todos os instrumentistas em uma ordem preestabelecida. Uma semipartitura elaborada por ele institui quem entra, quando e quanto tempo tem para desenvolver-se considerando o arranjo e o tempo máximo de duração que cada lado do LP suportaria. Nos momentos conjuntos, a liberdade é total. Há uma quase imperceptível melodia-base de 3 acordes, mas, inspirado no exemplo de “Free Jazz”, de Coleman (1960), o que dá o direcionamento é a sensação momentânea do músico, e não um tempo ou escala predeterminados que o motivem. E é assim que já inicia e peça: sob uma tempestade de solos. Rajadas, gritos, ataques violentos, espasmos, glissandos, rubatos, fluxos densos, clusters, dissonâncias mil. Uma impressionante parede sonora que remete à politonalidade de Darius Milhaud e às camadas inter-relacionadas de Elliot Carter. Impacto é o termo certo.

A divisão dos solos é minuciosamente organizada, bem como impressionantemente sutil em meio a todo o caos: naquela avalanche de sons, o encadeamento entre estes e os ensembles, seja nos começos ou nos finais de cada um, é perfeito. A abertura do tema é longa, de mais de 4 minutos de extravaso. Emendando, de modo a começar as sequências individuais, o próprio Coltrane faz as boas-vindas em exatos 2 minutos de absoluta entrega. No auge de sua maturidade musical, sente-se um Coltrane sendo Coltrane mais do que nunca. Jogando a escala lá no alto de cara, ele começa em repetições lancinantes, sustentando o clima, a partir dali, com sua alta técnica e emotividade. Os saltos de modulação, a multitonalidade, os vibratos potentes e os double stops, característicos de seu estilo, estão todos ali, cristalinos. Os arroubos roucos, bem como a escalada emotiva, também: presentes. Termina, como não poderia ser diferente, explorando os limites do instrumento.  Fúria e paixão.

O fato de os músicos terem seus espaços predefinidos dentro da melodia não significava que, nos próprios intervalos, quando todos executam juntos, também não houvesse improvisos, às vezes tão significativos quanto os lances reservados. Na verdade, é como se ninguém parasse de solar do início ao fim. O trompete de Johnson, por exemplo, começa a soar mesmo antes de ele entrar sozinho. Mas quando é seu momento, o trompetista não deixa por menos: força a que se crie uma atmosfera de blues acelerado, lançando frases curtas e ligeiras em dissonâncias. Parece querer dar ainda mais significado ao solo anterior proposto por Coltrane, explicando-o em outras “palavras”, cuspidas e sem paciência. Já Sanders, dos mais felizes pupilos de Coltrane e igualmente instigado pelas questões da espiritualidade, aproveita a oportunidade para disparar de seu tenor um rascante e intenso solo, cheio de agudez e desespero, deixando evidente o estilo que o marcaria como band-leader a parir de então.
Hubbard, o solista seguinte, ao contrário de Sanders, já calejado e mais cerebral, em contrapartida à intensidade anterior, prefere dar um refinamento diferente à música. Ele, que nunca havia tocado com Coltrane, demonstra sua gratidão por ser chamado àquela sessão sabidamente histórica e explora seu inigualável bom gosto hard-bop e assertividade nas escolhas das notas – sem, contudo, sair do clima ardoroso. Impecável o mestre Hubbard.

Outro ensandecido fã de Trane dá as graças. É Sheep, à época, também dos iniciantes da New Thing como Sanders. Ele já sai despejando notas raivosas e frases discordantes, potencializando a maneira de tocar do professor. Mais um “chorus” de alta habilidade antecipa a entrada de Tchcai, o qual, num solo expressivo, faz oscilar na maior parte do tempo entre duas escalas, como que num dueto consigo mesmo – quem sabe, não era este o meio encontrado por Tchcai, respondendo à instigação de Coltrane, para demonstrar sua “ascendência” pessoal? Outra brilhante participação. Mantendo o mesmo instrumento, é a vez de Brown revelar seu íntimo, o que o faz com densidade e potência. A permanente construção da melodia, que desfaz os limites do que é conjunto e o que é individual, leva a que a entrada de Brown funcione como um desdobramento, uma continuidade do que já vinha sendo desenvolvido. Estreante, Brown traz para dentro do furacão sonoro um misto do formalismo, adquirido nos conservatórios de Atlanta e Washington, e um natural lirismo inquieto, típico da avant-garde que ajudou a cunhar.

Tyner, cuja inteligência e sensibilidade ao piano o fazem manter-se presente a todo instante – seja demarcando, pontuando, mantendo ou ajudando a evidenciar os outros instrumentos –, tem a sua hora exclusiva. Mas nem o diferenciado timbre das teclas faz com que seu solo também não se homogeneíze ao restante (está tudo integrado enredado). Coltrane está ainda improvisando quando Tyner “avisa” que vai entrar. Uma, duas, três vezes. Até que, quando se vê, é o piano que já domina o campo. Seus peculiares acordes martelados enriquecem o drama da peça. Ele articula tempos diferentes com as duas mãos, parecendo claramente em alguns instantes serem dois pianistas (ou não seriam?...).

No que Tyner encerra, Jones larga rolos bem marcados para dividir o improviso do piano com o dos baixistas. Davis e Garrison, então, apresentarem o momento certamente mais erudito do tema. Com acompanhamento só da bateria, seu duo é curto mas repleto de nuanças que somente as cordas de um contrabaixo podem dar. Neste caso, dois baixos, sendo que, num deles, Davis puxa o arco e transforma seu instrumento num cello, enquanto Garrison segue dedilhando e tracejando, longe dali, elevado. Um minuto basta para ambos, pois, logo em seguida, Jones, ativo em toda condução rítmica e harmônica desde o primeiro segundo, presenteia os diletantes com um ainda mais sucinto solo (apenas 25 segundos), porém possível de identificar toda sua habilidade e pungência. Ele merecia essa distinção, mesmo que assim, no final, antecipando a nova torrente de sons que, em pouco menos de 3 minutos, vem à tona para encerrar a suíte.

Várias análises podem se tirar de “Ascension”, haja vista sua infindável e desafiadora complexidade como obra. Entretanto, antes de tudo, é muito bonito o resultado que Coltrane extraiu desse verdadeiro tour de force coletivo. A conjunção de estilos de cada integrante forma uma espécie de “teia de temperamentos”, rica em personalidades e pulsação. Viva, uma obra viva. Do material maciço que o tema se compõe é possível, com aceitação e dedicação, derivar uma comovente procura interior. Comprometido apenas consigo e com sua obra, Coltrane desdenhou o sucesso imediato de “A Love...” e não se escondeu atrás do mito. Pelo contrário: saiu em busca de novos entendimentos de si e de sua música, fosse provocando ou resignando, inquietando ou contristando. Séria e comprometida união dos polos de uma existência: deus e diabo, bem e mal, amor e ódio, leveza e cólera. Como um Messiaen, que enxergava Deus em todos os sons, das naturais consonâncias aos diabólicos trítonos, observadas em profusão em sua última peça intitulada “Flashes da vida após a morte”. Como um Glauber Rocha que, em seu derradeiro “A Idade da Terra”, fez encarnar no Brasil urbano um Jesus freudiano cheio de aflições e belezas. Todas obras de final de vida de artistas irrequietos, por mais fatalista ou sublime que isso signifique. Coltrane, no seu último suspiro, igualmente mirou essa providência por meio da linguagem pela qual mais conseguia essa aproximação com o elevado. Como numa ascensão aos céus, a qual – provavelmente não por coincidência – cumpriria dali a menos de 2 anos rumo à eternidade, deixando uma das obras mais ricas que o mundo da música já conheceu.

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“Soberba”, de Orson Welles, é ainda hoje considerado um dos melhores filmes da história do cinema, mesmo sua edição final tendo ficado a cargo dos estúdios e não do cineasta, a contragosto deste, claro. A primeira versão de “Ascension”, lançado com John Coltrane ainda vivo, trazia o primeiro take dos dois que gravara com a banda na fatídica noite de junho de 1965. Porém, Coltrane havia gostado mais da segunda sessão – e manifestara isso a gravadora Impulse! quando do lançamento. A queixa ficou guardada por 44 anos. Como fazer, então? Realizar o sonho do autor antes tarde do que nunca. Em 2009, uma edição em CD, hoje tida como definitiva, traz as duas editions de “Ascension”, priorizando a preferida de Trane, “Edition II”, de cerca de 40 minutos e sem o solo final de Elvin Jones, e, em seguida, a versão impressa originalmente, de 38 minutos e meio. Delícia tanto para puristas quanto desapegados.
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FAIXA:
1. "Ascension" – 38:31

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