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quarta-feira, 9 de junho de 2021

Música da Cabeça - Programa #218

Eu se fosse vocês fariam o que todo mundo tá esperando: ouvir o MDC desta quarta. Vai ter Azymuth, Siouxsie & the Banshees, US3, Caetano Veloso, Chico Buarque & Milton Nascimento, CAN Band e muito mais. Para o "Palavra, Lê", um "viva" ao oitentão Erasmo Carlos e no "Cabeça dos Outros" um som do Emersson Ramone pedido por ele mesmo. Faz assim: evita os olhares de julgamento da galera e sintoniza às 21h na Rádio Elétrica, que vai valer a pena, pode confiar. Produção e apresentação: Daniel Rodrigues (só no teu bico...)



Rádio Elétrica:
www.radioeletrica.com  

terça-feira, 26 de abril de 2011

Bauhaus - "Burning From the Inside" (1983)


“...nós nunca fomos góticos, fizemos uma música de brincadeira ["Bela Lugosi is Dead"], uma ironia e um monte de idiotas no mundo começou a nos chamar de góticos."
Peter Murphy


Bauhaus é uma banda frequentemente substimada pelo seu aspecto dark, excessivamente teatral, mas atrás do que se escondiam, contudo, boas qualidades, boas referências musicais e literárias, um vocalista com bons recursos, instrumentistas criativos e nada desprezíveis. A verdade é que ao entrar na década de 80, o punk do final da década passada, ganhava outras características e com bandas como Sisters of Mercy, The Cure, Siouxsie and the Banshees, desacelerava aquele som, preenchia mais o ambiente com bases de teclados e sintetizadores, abordava temáticas mais pessimistas e soturnas e dava uma estética a este estado de espírito, tão densa e angustiante quanto suas letras e atmosferas. É verdade que o visual somado à proposta meio expressionista, tirava um pouco da credibilidade sonora do novo movimento que se ensaiava, ainda mais sucedendo exatamente ao punk que era extremamente ativo, engajado, revoltado, o que fazia aquele pessoal de preto parecer meramente um bando de fantasiados pro dia das bruxas sem nenhum valor musical. Mas isso não era verdade. O chamado rock gótico produziu muitos bons discos e alguns, diria, muito bons, como é o caso de “Burning From the Inside” do Bauhaus, de 1983, que se destaca na curta e interessante discografia da banda pela ousadia e experimentação, se afastando um pouco das próprias características. Diferencia-se também por prescindir em alguns momentos de gravação e produção, da presença do vocalista Peter Murphy, doente naquele período, fato que, por um lado dava mais liberdade e autonomia aos outros integrantes, mas por outro, prenunciava o possível fim da banda, que se confirmou logo em seguida.
Mas “Burning From the Inside” mostra uma banda mais madura em relação à própria obra e por isso mesmo arriscando mais. É um disco daqueles com ‘cara’ de grande álbum, sabem? Estrutura de grande disco: grande abertura, faixas de ligação, vinhetas importantes, faixa monumental e um final depois do final.
A abertura na qual se destaca uma envolvente linha de baixo e uma guitarra corrosiva traz a excelente “She’s in Parties” interpretada de forma magistral por Murphy; canção que depois de ‘terminar’, praticamente recomeça só instrumental com o baixo de David J. ainda mais marcante e mais recheada de efeitos, ecos e sintetizadores. Traz na seqüência um punk com roupagem preta na anárquica, “Antonin Artaud”, que por sua vez já emenda na vinheta”‘Wasp”, uma curta introdução de rabeca que leva à mística “King Volcano”, uma espécie festa cigana com inserção gradual de instrumentos acústicos cantada num coro ritualístico assustador.
Depois daí, aparecem dois momentos curiosos no disco pela ausência de Peter Murphy, e é onde os outros integrantes, Ash, Hawkins e David, tomam conta e já dão um ar meio Love & Rockets, futura banda dos três, para o som do disco. “Who Killed Mr. Moonlight” é uma balada soturna pontuada por um piano e cantada por Daniel Ash,; e “Slice of Life”, cantada por ele com o baixista David J., aparece com uma abertura de guitarras ‘luminosas’ que parecem nos permitir uma breve saída do claustro. Na seqüência vem “Honeymoon Croon” que também tem um som mais aberto e apresenta um teclado que remete a The Doors; seguida de “Kingdom Coming” que mostra uma beleza sombria que alterna luz e trevas quase ao mesmo tempo. Mas é a faixa que dá nome ao disco que faz arrepiar todos os pelos do braço: “Burning From the Inside”, uma longa viagem tormentosa com uma guitarra pesada, alta e quase monocórdia servindo de base para a voz de Peter Murphy soar mais horripilante do que nunca, durante mais de nove minutos, ao longo dos quais a música é entremeada por uma espécie de funk das trevas com uma linha de baixo pesada e agressiva. Simplesmente destruidora. Depois de algo assim não precisava vir mais nada, mas até para nos permitir dar uma respirada, ainda vem ‘Hope” que é como se fosse a luz do dia depois de tanta escuridão, numa canção entoada em coro lembrando cânticos camponeses, mas aí já é apenas uma despedida. E a propósito de adeus, o disco, por conta da excessiva participação de Ash e David J., na ausência de Murphy, que não aprovou tamanha autonomia, acabou sendo o estopim da separação da banda que até voltou em 2008 porém já sem o mesmo ímpeto criativo nem anímico. Mas já não valia a pena. Sua contribuição já tinha sido dada e era hora de assumir que, assim como Bela Lugosi, no nome de sua mais famosa canção, o Bauhaus também estava morto.
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FAIXAS:
1. "She's in Parties" – 5:43
2. "Antonin Artaud" – 4:04
3. "Wasp" – 0:20
4. "King Volcano" – 3:29
5. "Who Killed Mr Moonlight?" – 4:54
6. "Slice of Life" – 3:43
7. "Honeymoon Croon" – 2:52
8. "Kingdom's Coming" – 2:25
9. "Burning from the Inside" – 9:19
10. "Hope" – 3:16

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Ouça:
Bauhaus Burning From The Inside


Cly Reis

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

Joy Division - "Closer" (1980)

Diálogo Entre Mim e Eu Mesmo Sobre Como Re-Descobri o Joy Division


“Cansados por dentro, agora nossos corações perdidos para sempre/
Não podemos nos recompor do medo ou da ânsia da perseguição/
Estes rituais nos mostraram a porta para nossas caminhadas sem rumo/
Aberta e fechada, e então batida na nossa cara/
Onde estiveram? Onde estiveram?...”
Ian Curtis,
da letra de “Decades”

- Dã, tu que sempre gostou de Joy Division, desde que os descobriu num programa do saudoso Clube do Ouvinte, da Ipanema FM, no início dos anos 90, já percebeu que eles são superinfluentes num monte de coisa?

- Que eles inspiraram o próprio New Order, embora o som seja majoritariamente diferente (um, deprê; o outro, “pra cima”), disso todo mundo sabe. E que tiveram também um papel importante na formação do pós-punk, ao lado do Public Image Ltd.Gang of Four e Pop Group, e do gothic punk, junto com The CureEcho and the BunnymenSiouxsie and the Banshees e outros. Mas tem mais alguma coisa que eu não saiba?

- Tem, tem mais coisa aí, sim. Andei percebendo isso reouvindo-os como sempre fiz desde que os conheci junto contigo, mas, sei lá porque, agora que me dei conta de uma série de outras percepções que nunca tinha atinado. A gente sabe que eles são muito mais do que um grupo do hit clássico “Love Will Tear Us Apart” ou aquela banda pré-história do New Order do vocalista que se matou. Mas afora isso tudo e o que tu citaste, noto hoje mais claramente que o Joy abriu as portas para uma série de influências que seriam sentidas dos anos 80 adiante na música pop em geral.

- Tipo o quê?

- Vejamos o “Closer”, de 1980. Embora minha admiração pelo "Unknown Pleasures" (e a idolatria que o mesmo tem mundo afora), é no segundo e último disco que o Joy Division cristaliza essa confluência de referências. Comecemos pelo exemplo da faixa inicial, “Atrocity Exhibitions”. Numa expressão: rock industrial.

- Quê? Tu... quer dizer, eu... enfim: estás louco? Rock industrial é pesado, sujo, ruidoso, cheio de efeitos eletrônicos. Rock industrial é Ministry, Pigface, Foetus, Alien Sex Fiend, essas coisas!

- E tu já prestou atenção em como é “Atrocity Exhibitions” de fato? Por acaso ela não é, justamente, pesada, suja, ruidosa e cheia de efeitos? Mais do que isso, veja a estrutura dela. Comparando com Ministry, banda exemplo máximo de rock industrial: a linha de bateria é intricada, quase específica dentro da harmonia. Em “Atrocity...”, a combinação caixa-tom tom-bumbo parece separada do chipô que, por sua vez, é separada dos toques no tarol, como se fossem três ilhas de percussão distintas. Fora que, além de não usar pratos, por uma questão de conceito harmônico, a percussão é toda sequencial, podendo tranquilamente se passar por uma programação de ritmo eletrônica combinada com bateria. Não é totalmente as melodias do Martin Atkins pro Ministry, Pigface ou PIL?

- É, neste sentido, tens razão.

- E o riff: muito rock industrial. Linha de baixo pesada em constante levada e guitarra distorcidíssima e corrosiva dando corpo, criando um clima caótico de era pós-industrial. A sacada do Joy, que ainda não tinha todo o aparato eletrônico que o mundo pop iria democratizar poucos anos à frente, foi criar um efeito de sequenciador na própria guitarra. A distorção, de uma clareza sonora incomum para as gravações da época (que não conseguiam dá-la por limitações de estúdio, fora num Hansa ou Abbey Road), parece, propositadamente, sair de uma motosserra ou de uma britadeira. Sobrepõe-se ao restante na medida certa, mas sem abafar os outros sons.

- É verdade!... Muito rock industrial isso, né? Lembra a estrutura melódica do Ministry em, por exemplo, “Breathe” e “Faith Collapsing”, até pelo ritmo meio tribal, pra citar apenas duas. Neste sentido, põe “no chinelo” o Pere Übu, que, embora eu goste, é o que chamam de início desse estilo. Que nada!

- E fora o vocal sempre espetacular do Ian Curtis, naquele timbre grave que transmite seriedade e melancolia, além de ser uma voz que não se consegue precisar a idade. Pode ter 24, como ele tinha, ou 70 anos. É bonita e perturbadora ao mesmo tempo.

- Bá, sempre achei o máximo o vocal do Ian.

- Pois então avancemos em nossa análise. “Isolation” não tem nem o que dizer: é MUITO New Order. E, mais do que isso, o pop dançável que tomaria as pistas anos 80 e adiante. The Cure, que é The Cure, só foi descobrir essa fórmula (riff no baixo, teclados cumprindo a função melódica da guitarra e bateria um misto de acústico e eletrônico) três anos depois, com “The Walk”. O Depeche Mode ainda engatinhava em direção à sua sonoridade própria quando o Joy lançou “Closer”.

- Ah, aí eu concordo contigo. Essa é a música que “inventou” o New Order.

- É, aí tu te enganas, mr. Daniel. Não exatamente.

- Ué? Por quê?

- Mais do que “Isolation”, “Heart and Soul”. Esta, sim, menos lembrada, carrega todos os predicados da linha que o New Order escolheria para seguir depois da morte do Ian. É só prestar atenção: primeiro, bateria/programação que reelabora a ritmação da disco, o que viria a dar depois em toda a cena tecno-house de Erasure, Tecnotronic, OMD da vida. É o mesmíssimo estilo de bateria que o PIL criou, principalmente no "Metal Box", de 1980 (“Swan Lake”, “Bad Baby”) e “This Is What You Want... This Is What You Get”, de 1984 (“This Is Not a Love Song”, “Bad Life”). Depois, o baixo marcado, constante, dub, a la Jah Wobble, remetendo a uma sonoridade eletrônica. David Bowie e Brian Eno já haviam feito isso em “Breaking Glass”, do "Low", de três anos antes – afinal, Bowie é quase sempre pioneiro no que se refere a pop-rock. Mas o Joy reelaborou e deu a forma definitiva daquilo que o próprio New Order assumiria. Basta ver os teclados e sintetizadores, que têm papel essencial na melodia e no arranjo. Mas o principal desta música: a voz do Ian. Mais leve e melodiosa que em qualquer outra que ele cantou em toda sua curta trajetória. É exatamente o estilo vocal que o Bernard Summer se sentiu à vontade em usar quando tomou os microfones – claro, tirando as gravações do defasado “Movement” – que é, parafraseando, um “movement ago”! hahahaha Endenteu, “movement”, “ago”! hahahaha

- Entendi, entendi. Meio sem graça, mas tudo bem.

- Com tu é sem graça, Dã... Tá, só complementando a ideia: o “Movement” é um luto do New Order em que eles ainda não conseguiam se desprender do Joy e da figura do Ian, grande poeta e líder. Por isso, New Order mesmo vale a partir do “Power, Corruption and Lies”, de 1982. Não só o Barney Summer pegou esse estilo de cantar do Ian em “Heart and Soul”, mas de toda a geração da acid house. Os caras do Erasure e Pet Shop Boys cantam exatamente assim até hoje!

- Concordo. Mas “Passover” e “24 Hours”, darks e densas, onde ficam?

- Tem que se entender que o Joy Division tinha o seu estilo já formado desde o “Unknown...”, e a banda, por mais que tenha incutido elementos e texturas eletrônicas, nunca deixou de compor suas canções nos instrumentos-base: baixo-guitarra-bateria . E se tu fores ver, eles próprios no New Order, festeiro e alegre muitas vezes, nunca abandonaram a composição à “moda antiga”, o que talvez seja o grande diferencial por eles estarem anos-luz à frente de outros grupos/artistas do eletro-punk dos anos 80, como o próprio Pet Shop Boys, o Ultravox ou o Durutti Culumn. No New Order, o Joy sempre esteve presente, às vezes até suprimindo ou relegando a segundo plano os teclados da Gilliam Gilbert, como em “Leave me Alone”, “Dream Attack” ou “Love Less”.

- Tá, mas voltando ao “Closer”, então, que mais tu me diz?

- Quanto a essas duas que citei, “Passover” é como uma continuação de “Isolation” com aquela “colagem” entre as faixas: o final de uma tem aquele som que parece estar sendo sugado, enquanto que o início da seguinte traz o mesmo som, só que invertido, dando a impressão de trazê-lo de volta, mas em outra abordagem. É isso que “Passover” é: uma “Isolation” obscura. No lugar do ritmo em tom elevado, tom menor de tristeza. Ambas as letras retratam as dificuldades psicológicas de Ian para com sua criação materna. Enquanto a letra de “Isolation” diz: “Mother I tried please believe me/ I'm doing the best that I can/ I'm ashamed of the things I've been put through/ I'm ashamed of the person I am” (“Mãe, eu tentei, por favor, acredite em mim/ Estou fazendo o melhor que posso/ Me envergonha as coisas que tenho feito/ Me envergonha a pessoa que sou”), “Passover” responde: “Is this the role that you wanted to live/ I was foolish to ask for so much/ Without the protection and infancy's guard/ It all falls apart at the first touch” (“É este o papel que você quis viver?/ Eu fui um tolo por pedir tanto/ Sem a proteção e guarda da infância/ Tudo se despedaça ao primeiro toque”). Até a batida, num compasso mais lento em “Passover”, é igual. Pode perceber. Quanto a “24 Hours”, acho das melhores da banda, com aquela intensidade que explode no refrão num ritmo punk junto da inabalavelmente tristonha voz de Ian, que não se altera da parte mais lenta para esta, mais agitada. E a linha de baixo do Peter Hook?! O que é aquilo? Inteligente, executa arpejos crescentes e decrescentes, que imprime um ar sério e contemplativo pra música. A bateria é outro ponto especial. Como no pós-punk e no industrial, não é óbvia. Aliás, o Stephen Morris dá um show à parte em todo o disco, cumprindo com precisão nas baquetas e na programação rítmica sempre que acionado, e olha que tem cifras difíceis de tocar no “Closer”!

- É verdade. “Colony” é um espetáculo a bateria.

- Pois ia falar justamente desta. Classifico-a como um “blues hermético”. É outra muito rock industrial, estilo que, por sua vez, como fica claro em “Heart and Soul”, é filho do pós-punk. Enquanto no “Unknown...” a veia punk desses ex-Warshaw ainda estava latente (basta ver “Interzone” e “Disorder”, punk-rocks secos), no “Closer” Ian & Cia aperfeiçoam isso. A bateria é sequencial e quebrada, como uma "Tomorrow Never Knows" em tempos fin de siècle, a guitarra solta urros como de “um vento cruel que uiva em nossa demência” e o baixo encaixa-se na batida, formando um ritmo marcial-militar, dando a ideia de prisão de uma opressora colônia para doentes mentais (ou seria a sociedade moderna que ele estava falando?). Nesse mesmo compasso rítmico, “A Means To an End” é outra brilhante do disco.

- E, novamente, uma letra e performance incríveis do Ian Curtis. É fantástico quando ele sai do seu tom contidamente tenso pra esbravejar, desiludido: “I put my trust in you” (“Eu depositei minhas esperanças em você”). Demais.

- Pois é. Agora, pensando pela lógica que expus desde o início, tanto “The Eternal” quanto “Decades” são bem a ponte entre o dark do Joy e o avanço técnico e melódico trazido pelo New Order e sua geração tempo depois. O compasso de “The Eternal” vem de uma bateria eletrônica, que lhe dá um clima de funeral, semelhante a de um coração deprimido que pulsa com sofreguidão. Os sintetizadores, também, mais parecem camadas de neblina cobrindo um cemitério. Elementos “artificiais” para um efeito orgânico. E é muito legal ainda a voz quase desfalecida de Ian, que a canta com profundo sentimento. Aí vem o final do disco com “Decades”!

- Esta é das melhores. “Decades” parece-me ser uma paixão especial por parte dos fãs de Joy Division.

- Concordo. Seguindo a linha de raciocínio, como “The Eternal”, em “Decades” a banda avança na ideia de sofisticar sua sonoridade. Ao invés da secura sem maiores efeitos de mesa de uma “New Down Fades” (também excelente, deixe-se registrado), que também fecha um dos lados de "Unknown..." e tem clima igualmente sombrio e construção melódica que cresce para um final épico e carregado, o riff de “Decades” já sai do próprio teclado. Nela, se adensa a atmosfera litúrgica sentida na faixa anterior, principalmente pelo som de órgão de Igreja. A letra, belíssima, não pode ser mais poética e decadentista.

- Total desesperança desse cara, né? Tava na cara que o suicídio dele se anunciava, e foi acontecer justamente dois meses antes do disco ser lançado, o que o tornou ironicamente póstumo. Mas tu me responde uma coisa: o que um ser em sã consciência faria assistindo “Stroszek”, do Werner Herzog, e ouvindo o "The Idiot" do Iggy Pop, ao mesmo tempo? Ambas as obras excelentes, mas, juntas, é piração total, um coquetel molotov pra um suicida!

- É verdade. Além de toda essa lenda em torno da morte do Ian, aumenta ainda mais a carga mitológica do “Closer” o fato de ter sido gravado sob uma abóbada de estuque especialmente construída esse fim de modo a captar a ressonância de uma capela. Era o Ian já preparando seu jazigo.

- Não sabia disso. Mas é fato que a peculiaridade de não ter indicação dos lados, seja no selo, seja no encarte, gera, conceitualmente, uma relação ao mesmo tempo aleatória e concisa entre as faixas, pois todas “dizem a mesma coisa”.

- Ah, mas mais do que isso, a arte da capa (assinada por Peter Saville), com aquela foto pictórica ritualística, mostra a foto de uma lápide tirada no Cemitério Staglieno, em Gênova, foi concebida antes da morte de Ian Curtis. Sabia disso? Uma infeliz coincidência?

- Sabe-se lá, né? De repente, o cara já tava intuindo, queria deixar seu “testamento musical”, como dizem que Coltrane fez em “A Love Supreme” ou Kurt Cobain teria dado a entender ao tocar a debochada e tristemente autosugestiva “Where Did You Sleep Last Night?” (“Onde Você Dormiu a Noite Passada”), com todas aquelas velas fúnebres no palco, como último número do "MTV Unplugged in New York", canto-do-cisne do Nirvana. Enfim: mitos que se criam em torno de um disco clássico como “Closer”.

- Pois é... pós-punk, gothic-punk, rock industrial, acid house, tecno, dub... puxa, são muitas referências que partiram deles!

- É, Dã: clássicos são reveladores a cada audição até mesmo para fãs de Joy Division como nós, que nunca deixaram seus discos esquecidos na prateleira. É o caso do “Closer”, que escutamos e reescutamos seguidamente. Mas grandes artistas têm disso, né: nos surpreendem mesmo depois de acharmos que os conhecemos bem. Eu pelo menos me surpreendi, e tu, Daniel?

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FAIXAS:
1. "Atrocity Exhibition" - 6:06
2. "Isolation" - 2:53
3. "Passover" - 4:46
4. "Colony" - 3:55
5. "A Means to an End" - 4:07
6. "Heart and Soul" - 5:51
7. "Twenty Four Hours" - 4:26
8. "The Eternal" - 6:07
9. "Decades" - 6:10


vídeo de "Decades" - Joy Divsion


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OUÇA:




quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

Dossiê ÁLBUNS FUNDAMENTAIS 2023

 



Rita e Sakamoto nos deixaram esse ano
mas seus ÁLBUNS permanecem e serão sempre
FUNDAMENTAIS
Chegou a hora da nossa recapitulação anual dos discos que integram nossa ilustríssima lista de ÁLBUNS FUNDAMENTAIS e dos que chegaram, este ano, para se juntar a eles.

Foi o ano em que nosso blog soprou 15 velinhas e por isso, tivemos uma série de participações especiais que abrilhantaram ainda mais nossa seção e trouxeram algumas novidades para nossa lista de honra, como o ingresso do primeiro argentino na nossa seleção, Charly Garcia, lembrado na resenha do convidado Roberto Sulzbach. Já o convidado João Marcelo Heinz, não quis nem saber e, por conta dos 15 anos, tascou logo 15 álbuns de uma vez só, no Super-ÁLBUNS FUNDAMENTAIS de aniversário. Mas como cereja do bolo dos nossos 15 anos, tivemos a participação especialíssima do incrível André Abujamra, músico, ator, produtor, multi-instrumentista, que nos deu a honra de uma resenha sua sobre um álbum não menos especial, "Simple Pleasures", de Bobby McFerrin.

Esse aniversário foi demais, hein!

Na nossa contagem, entre os países, os Estados Unidos continuam folgados à frente, enquanto na segunda posição, os brasileiros mantém boa distância dos ingleses; entre os artistas, a ordem das coisas se reestabelece e os dois nomes mais influentes da música mundial voltam a ocupar as primeiras posições: Beatles e Kraftwerk, lá na frente, respectivamente. Enquanto isso, no Brasil, os baianos Caetano e Gil, seguem firmes na primeira e segunda colocação, mesmo com Chico tendo marcado mais um numa tabelinha mística com o grande Edu Lobo. Entre os anos que mais nos proporcionaram grandes obras, o ano de 1986 continua à frente, embora os anos 70 permaneçam inabaláveis em sua liderança entre as décadas.

No ano em que perdemos o Ryuichi Sakamoto e Rita Lee, não podiam faltar mais discos deles na nossa lista e a rainha do rock brasuca, não deixou por menos e mandou logo dois. Se temos perdas, por outro lado, celebramos a vida e a genialidade de grandes nomes como Jards Macalé que completou 80 anos e, por sinal, colocou mais um disco entre os nossos grandes. E falando em datas, se "Let's Get It On", de Marvin Gaye entra na nossa listagem ostentando seus marcantes 50 anos de lançamento, o estreante Xande de Pilares, coloca um disco entre os fundamentais logo no seu ano de lançamento. Pode isso? Claro que pode! Discos não tem data, música não tem idade, artistas não morrem... É por isso que nos entregam álbuns que são verdadeiramente fundamentais.
Vamos ver, então, como foram as coisas, em números, em 2023, o ano dos 15 anos do clyblog:


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PLACAR POR ARTISTA (INTERNACIONAL)

  • The Beatles: 7 álbuns
  • Kraftwerk: 6 álbuns
  • David Bowie, Rolling Sones, Pink Floyd, Miles Davis, John Coltrane, John Cale*  **, e Wayne Shorter***: 5 álbuns cada
  • Talking Heads, The Who, Smiths, Led Zeppelin, Bob Dylan e Lee Morgan: 4 álbuns cada
  • Stevie Wonder, Cure, Van Morrison, R.E.M., Sonic Youth, Kinks, Iron Maiden , U2, Philip Glass, Lou Reed**, e Herbie Hancock***: 3 álbuns cada
  • Björk, Beach Boys, Cocteau Twins, Cream, Deep Purple, The Doors, Echo and The Bunnymen, Elvis Presley, Elton John, Queen, Creedence Clarwater Revival, Janis Joplin, Johnny Cash, Joy Division, Madonna, Massive Attack, Morrissey, Muddy Waters, Neil Young and The Crazy Horse, New Order, Nivana, Nine Inch Nails, PIL, Prince, Prodigy, Public Enemy, Ramones, Siouxsie and The Banshees, The Stooges, Pixies, Dead Kennedy's, Velvet Underground, Metallica, Dexter Gordon, Philip Glass, PJ Harvey, Rage Against Machine, Body Count, Suzanne Vega, Beastie Boys, Ride, Faith No More, McCoy Tyner, Vince Guaraldi, Grant Green, Santana, Ryuichi Sakamoto, Marvin Gaye e Brian Eno* : todos com 2 álbuns
*contando com o álbum  Brian Eno e John Cale , ¨Wrong Way Out"

**contando com o álbum Lou Reed e John Cale,  "Songs for Drella"

*** contando o álbum "Five Star', do V.S.O.P.



PLACAR POR ARTISTA (NACIONAL)

  • Caetano Veloso: 7 álbuns*
  • Gilberto Gil: * **: 6 álbuns
  • Jorge Ben e Chico Buarque ++: 5 álbuns **
  • Tim Maia, Rita Lee, Legião Urbana, Chico Buarque,  e João Gilberto*  ****, e Milton Nascimento*****: 4 álbuns
  • Gal Costa, Titãs, Paulinho da Viola, Engenheiros do Hawaii e Tom Jobim +: 3 álbuns cada
  • João Bosco, Lobão, João Donato, Emílio Santiago, Jards Macalé, Elis Regina, Edu Lobo+, Novos Baianos, Paralamas do Sucesso, Ratos de Porão, Roberto Carlos, Sepultura e Baden Powell*** : todos com 2 álbuns 


*contando com o álbum "Brasil", com João Gilberto, Maria Bethânia e Gilberto Gil

**contando o álbum Gilberto Gil e Jorge Ben, "Gil e Jorge"

*** contando o álbum Baden Powell e Vinícius de Moraes, "Afro-sambas"

**** contando o álbum Stan Getz e João Gilberto, "Getz/Gilberto"

***** contando com os álbuns Milton Nascimento e Criolo, "Existe Amor" e Milton Nascimento e Lô Borges, "Clube da Esquina"

+ contando com o álbum "Edu & Tom/ Tom & Edu"

++ contando com o álbum "O Grande Circo Místico"



PLACAR POR DÉCADA

  • anos 20: 2
  • anos 30: 3
  • anos 40: -
  • anos 50: 121
  • anos 60: 100
  • anos 70: 160
  • anos 80: 139
  • anos 90: 102
  • anos 2000: 18
  • anos 2010: 16
  • anos 2020: 3


*séc. XIX: 2
*séc. XVIII: 1


PLACAR POR ANO

  • 1986: 24 álbuns
  • 1977 e 1972: 20 álbuns
  • 1969 e 1976: 19 álbuns
  • 1970: 18 álbuns
  • 1968, 1971, 1973, 1979, 1985 e 1992: 17 álbuns
  • 1967, 1971 e 1975: 16 álbuns cada
  • 1980, 1983 e 1991: 15 álbuns cada
  • 1965 e 1988: 14 álbuns
  • 1987, 1989 e 1994: 13 álbuns
  • 1990: 12 álbuns
  • 1964, 1966, 1978: 11 álbuns cada



PLACAR POR NACIONALIDADE*

  • Estados Unidos: 211 obras de artistas*
  • Brasil: 159 obras
  • Inglaterra: 126 obras
  • Alemanha: 11 obras
  • Irlanda: 7 obras
  • Canadá: 5 obras
  • Escócia: 4 obras
  • Islândia, País de Gales, Jamaica, México: 3 obras
  • Austrália e Japão: 2 cada
  • Itália, Hungria, Suíça, França, Bélgica, Rússia, Angola, Nigéria, Argentina e São Cristóvão e Névis: 1 cada

*artista oriundo daquele país
(em caso de parcerias de artistas de países diferentes, conta um para cada)

sexta-feira, 4 de março de 2016

Talking Heads - "True Stories" (1986)




“Quando terminamos as bases e os vocais
para aquela leva de músicas,
 começamos a ensaiar um material
que poderia render ainda mais um disco,
mas que eu havia composto para o filme.
Quando ‘Little Creatures’ saiu,
 eu já estava no Texas para filmar ‘True Stories’.
Levei as fitas de multicanal com as nossas faixas-base
para as músicas do filme até o set de filmagens em Dallas
e adicionei um pouco do tempero texano”.
David Byrne,
em seu livro
“Como funciona a música”.



O ano de 1986 é especial para quem pegou o rock dos anos 80. Talvez junto apenas com o ano anterior (que viu nascerem "Meat is Murder", dos Smiths"The Head on The Door", do The Cure, e "Psycho Candy", da The Jesus and Mary Chain), tanto no Brasil quanto fora houve discos essenciais de bem dizer todas as grandes bandas e artistas da cena pop da época. No cenário internacional, em especial, muitos se superariam no sexto ano da chamada “década perdida”. Siouxsie and the Banshees poria na praça o sucesso “Tinderbox”, a P.I.L; de John Lydon chegaria ao auge com "Album" e Smiths e New Order estourariam nas rádios com “The Queen is Dead” e "Brotherhood" respectivamente, para ficar em apenas quatro exemplos. Embora de sonoridades distintas, mesmo que afim em certos aspectos, o ponto que os unia era o fato de que, já trilhados alguns anos e discos lançados, todos chegavam naquele momento mais maduros e donos de sua música. Assim, 1986 trouxe uma culminância de grandes álbuns não por coincidência, mas por que representou o desenvolvimento artístico da geração vinda do punk.

Essa onda atingiu outra grande banda do final dos 70/início dos 80: o Talking Heads. Liderados pelo talentoso esquisitão David Byrne, os Heads, surgidos na cena punk nova-iorquina, haviam largado com o referencial "77", daquele ano, passado pela brilhante trilogia com Brian Eno (“More Songs about Bouildings and Food”/"Fear of Music"/"Remain in Light") e pelo bom “Sepeaking in Tongues”, além de mais três registros ao vivo. Nesse transcorrer, atravessaram a virada dos anos 70 para os 80 avançando em estilo e personalidade. Se no começo, comandados pelo produtor Toni Bongiovi, foi o proto-punk e, logo em seguida, Eno os tenha empurrado para o experimentalismo pós-punk e para a world-music, em “Speaking...”, de 1982, passam a produzir a si próprios e mostram uma intenção pop-rock mais refinada. Afinal, a criatividade de Byrne, seu principal compositor, nunca correspondeu exatamente à tosqueira do punk-rock genuíno dos colegas de CBGB Ramones e Richard Hell. Veio, então, outra joia da safra 1985: “Little Creatures”, para muitos o melhor trabalho da banda e um dos ápices do pop-rock dos Estados Unidos. De admirável musicalidade, trazia pelo menos dois hits marcantes: “Lady Don’t Mind” e “And She Was”. Seriam Byrne & cia. capazes de superar aquele feito? A resposta veio um ano depois, no fatídico 1986, não apenas em um disco, mas num até então incomum projeto multimídia: o disco-filme-livro “True Stories”, que está completando 30 anos em 2016.

Para a época, o que hoje é comum no showbizz, em que um artista grava o CD, DVD, videoclipe e um documentário num mesmo espetáculo sem precisar gastar uma fortuna, foi bem impressionante a ousadia de Byrne, o verdadeiro “head” do projeto. Não se via uma proposta naquele formato até então, no máximo os abastados clipes-filmes de Michael Jackson. Neste, entretanto, de feições quase intimistas, Byrne, dentro de um mesmo tema, dirigiu um filme, atuou nele, lançou um livro de fotos e textos e ainda criou de cabo a rabo um disco, componto-o e produzido-o por inteiro. E mais: tudo de altíssima qualidade! Da turma que aprendeu com Andy Warhol a transformar produto em arte, Byrne e seus habilidosos companheiros de grupo – a ótima baixista Tina Weymouth, o competente baterista Chris Frantz e o versátil guitarrista e tecladista Jerry Harrison – traziam três “produtos culturais” interligados mas independentes entre si. Pode-se ver o filme e não comprar o disco ou ler o livro e por aí vão as combinações. Há quem teve o primeiro contato com a obra, por exemplo, através dos clipes da MTV (de certa forma, um quarto tipo de produto cultural) e depois ouviu o disco ou assistiu ao filme.

Para se falar sobre as músicas, no entanto, é fundamental que se comece abordando sobre o filme. Em "Histórias Reais" (tradução nos cinemas no Brasil), um narrador, encarnado pelo próprio Byrne, percorre como um repórter a pequena Virgil, no estado do Texas, em plena comemoração dos 600 anos da cidade, onde encontra diversos personagens hilários e típicos. Conforme as situações vão se apresentando, as músicas da trilha vão surgindo. Byrne, escocês radicado nos EUA, cria um filme no qual engendra com delicadeza e humor uma crônica cotidiana da vida norte-americana, tudo permeado por um olhar aparentemente infantil mas carregado de perspicácia e ligado à relação emocional do autor com o seu lugar. Lindamente poético, algo entre o documental e a fantasia, o longa sintetiza as belezas e as fragilidades do povo do país mais poderoso do mundo.

Como se vê, no filme está a razão do trabalho musical, pois este funciona como uma trilha sonora que veste a narrativa da história filmada ao mesmo tempo em que é “apenas” mais um disco de carreira do Talking Heads, seu sétimo de estúdio. Na seara de avanço de seu próprio estilo, eles repetem acertos do passado, principalmente de seu trabalho antecessor “Little Creatures”. A começar, assim como o disco anterior, um pouco por coincidência “True Stories” também tem dois hits marcantes. O primeiro deles é “Love for Sale”, que o abre. A letra já denota com humor e distanciamento crítico o caráter pueril e materialista do ser norte-americano, que põe tudo à venda, até – e principalmente – o amor. “O amor está aqui/ Venha e experimente/ Eu tenho amor pra vender”, canta, enquanto, no clipe, imagens de publicidade pulam na tela em cores vibrantes e kitch. Divertido, o clipe é a própria cena extraída do filme, numa total interação entre as obras. E que grande música! A batida lembra a de “Stay up Late”, de “Little...”, só que mais acelerada, e o riff, memorável, é daqueles que se reproduz o som com a boca. Pode-se colocá-la na classificação de perfect pop, músicas de estrutura perfeita e próprias para tocar no rádio mas que guardam qualidades genuínas de estilo e composição.

Com uma pegada bastante Brian Eno pela base no órgão, “Puzzlin' Evidence“ – no filme, a cena de um culto religioso em que se projeta um vídeo com as maravilhas da tecnologia e do poderio bélico e financeiro yankee – tem o vigor do gospel, principalmente no refrão, com o coro cantando com Byrne: “Puzzling Evidence/ Done hardened in your heart/ Hardened in your heart”. Em seu livro “Como Funciona a Música”, de 2012, ele comenta que compôs as faixas de “Little...” e “True...” praticamente ao mesmo tempo, por isso as semelhanças entre um e outro. No caso do segundo, o que já se diferenciava em sua cabeça era a aplicação: seriam músicas para o filme que ainda pretendia rodar. Assim, já no Texas para inteirar-se das locações, levou consigo as demos ainda por finalizar e lá teve a ideia de inserir os elementos mais peculiares do folk norte-americano, como o acordeom Norteño, a steel guitar e o coral de igreja protestante de “Puzzlin'...”.

Durante todo o disco, a bateria de Chris é especialmente amplificada, ótimo ensinamento pescado da faixa “Television Man”, de “Little...” – resgatada, porém, de antes, pois já nota-se isso em “Electric Guitar”, de “Fear of Music”, de 1979. Pois a caribenha “Hey Now” é marcada com essa batida forte, acompanhada de bongôs e de uma guitarrinha ukelele, a mesma que faz um solo totalmente no espírito ula-ula. Por conta de seu ritmo e melodia quase lúdicos, no filme, Byrne a arranjou diferentemente: são crianças, todas com instrumentos improvisados como pedaços de pau e latas, quem, numa das passagens mais bonitas, entoam os versos: “I wanna vídeo/ I wanna rock and roll/ Take me to the shopping mall/ Buy me a rubber ball now”.
“Papa Legba”, das melhores de “True...”, é outra que mostra como a banda aprendeu consigo própria. A programação eletrônica faz intensificar o ritmo sincopado da música africana, que começa com percussões típicas do brasileiro Paulinho da Costa, um craque, e um canto quase tribal extraído por Byrne. Visível influência dos trabalhos com Eno, principalmente do world-music “Remain in Light”. O tema em si é lindo: um canto ritualístico do vudu haitiano (“Papa Legba” significa aquele que serve como intermediário entre a loa – mundo dos espíritos – e o homem) que é usado no filme quando o personagem de John Goodman, um homem em busca de uma carreira como cantor, recorre a esta espécie de pai-de-santo – vivido pelo cantor Pops Staple, que a canta lindamente. No disco, é Byrne quem está nos microfones, esbaldando-se em seu vocal rasgado e emotivo.

O segundo lado no formato LP abre com outro hit e outro perfect pop: a sacolejante "Wild Wild Life", marco dos anos 80 e da música pop internacional. Impossível ficar parado se estiver tocando numa pista. Além da letra ácida, a canção, bem como seu clipe, também extraído do filme, é superdivertida, num convite a se assumir o “lado selvagem”. Várias pessoas, os integrantes da banda e atores, sobem num palco em um programa de tevê fazendo playback e interpretando as figuras mais exóticas. O refrão, de versos móveis, é daqueles inesquecíveis de tão naturalmente cantaroláveis: “Here on this moutain-top/ Oh oh/ I got some wild wild life/ I got some news to tell ya/ Oh oh/ About some wild wild life...”.

Alegre e ritmada, "Radio Head" lembra a levada das bandinhas folclóricas europeias (as que migraram para os EUA em várias localidades), ainda mais pelo uso da gaita-ponto. Mas, claro, com o toque todo dos Heads, desde a forte batida de Chris, as percussões de Paulinho da Costa – contribuinte costumaz da banda –, e o vocal aberto de Byrne, perito em criar refrãos pegajosos, como o desta: “Transmitter!/ Oh! Picking up something good/ Hey, radio head!/ The sound... of a brand-new world”, “Radio Head” guarda uma curiosidade: é a música em que Byrne se inspirou num verso de Chico Buarque – de “O último blues”, da trilha do filme “Ópera do Malandro” – e que, por consequência, inspirou o nome da banda inglesa, que juntou as duas palavras.

A melódica “Dream Operator” – que no filme transcorre numa engraçada sequência de um desfile, mais bizarro e brega impossível – tem uma bela letra, a qual versa sobre o eterno estado de sonho em que vivem os norte-americanos: “Todo sonho tem um nome/ E nomes contam a sua história/ Essa música é o seu sonho/ Você é o operador de sonho”. Algo nem bom nem ruim: apenas verdadeiro. Outra clássica do álbum, “People Like Us”, tema-chave do filme, é, assim como “Creatures of Love”, de Little...”, um típico country-rock, com direito a guitarra com pedal steele de Tomy Morrell. Uma verdadeira declaração de amor do estrangeiro Byrne para os EUA, reverenciando a cultura daquele país e ao mesmo tempo totalmente integrado nela. Os versos iniciais dizem tudo: “Quando nasci, em 1950/ Papai não podia comprar muita coisa para nós/ Ele disse: ‘Orgulhe-se do que você é’/ Há algo de especial em pessoas como nós”. E o refrão, dentro da mesma ideia de “Creatures...”, não deixa por menos, impelindo-nos a enxergar a alma norte-americana com um olhar mais humano: “Não queremos liberdade/ Não queremos justiça/ Só queremos alguém para amar”.

De ritmo parecido a outra faixa de “Little...”, “Walk it down”, bem como a outras daquele álbum no refrão de coro em tom entoado, como “Perfect World” e “Road to Nowhere” (a ideia vem desde o primeiro trabalho com Eno, em “The Good Thing”, de 1978), “City of Dreams” desfecha a obra com puro lirismo. A letra fala da perda de identidade provocada pelas aculturações e dizimações, algo muito presente na formação de sociedades modernas como a norte-americana: “Os índios tinham uma lenda/ Os espanhóis viviam para o ouro/ O homem branco veio e os matou/ Mas eles não sabem quem realmente foram”. Porém, artista sensível como é, Byrne joga luzes otimistas sobre o futuro daquela nação e suas gentes, tendo como metáfora a pequena Virgil: “Vivemos na cidade dos sonhos/ Nós dirigimos na estrada de fogo/ Devemos despertar/ E encontrá-la por fim/Lembre-se disso, nossa cidade favorita”.
Se “True...” deve muito a “Little...”, que lhe serviu de espelho em vários aspectos, também é fato que o disco de 1986 supera seu antecessor em completude conceitual, uma vez que conversa o tempo todo com a obra filmada e, consequentemente, com o trabalho fotográfico posto em páginas. Além do mais, o sucesso alcançado por “True...”, seja motivado pela mídia televisiva e radiofônica ou pelas telas do cinema, foi consideravelmente maior de tudo o que já jamais conseguiriam, tendo em vista que “Wild Wild Life” ficou por 72 semanas no 25º posto da Billbord, melhor posição de uma música da banda nesta parada. Comparações afora, o fato é que ambos os discos revelam um grupo no auge de sua capacidade criativa, produzindo música pop sem descuidar das próprias intenções e aspirações.

Tudo isso está ligado bastantemente à iniciativa de David Byrne que, com o passar do tempo, foi se tornando cada vez mais o principal compositor e criador da banda, a ponto de passar a ser o único. Assim, se “True...” é o ápice dos Heads, também é o começo de seu declínio. A redução paulatina mas permanente da participação de Chris, Tina e Jerry enfraqueceu-os enquanto conjunto, sufocando os companheiros de Byrne. O fim estava próximo. Ainda tentaram um sopro de comunhão, “Naked”, de 1988, mas o mais fraco álbum deles só serviria para denotar que não tinha mais saída que não a separação de uma das grandes bandas do pop-rock mundial. Os discos, porém, estão aí até hoje, longe de se datarem e donos de alguns dos melhores momentos do que se produziu nos anos 80, a tal “década perdida” – que, aliás, de “perdida” não teve nada em termos de rock. Basta uma audição de “True Stories” para se certificar de que essa história, por mais onírica que tenha sido, é real e muito especial.

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O filme “Histórias Reais” tem, aliás, uma trilha sonora própria, a qual traz temas incidentais. Apenas “Dream Operator”, em versão instrumental arranjada por Philip Glass (“Glass Operator”), se repete, além da faixa “City of Steel”, que é, na verdade, a melodia de “People Like Us”, também só com instrumentos. As outras são de artistas variados, como “Road Song”, da genial Meredith Monk, “Festa para um Rei Negro” (“Olê lê/ Olá lá? Pega no ganzê/ Pega no ganzá...”), com a banda brasileira Eclipse, e a mexicana “Soy de Tejas”, de Steve Jordan, além de seis composições do próprio Byrne que só se encontram em “Sounds From True Stories”.
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FAIXAS:
1. "Love for Sale" – 4:30
2. "Puzzlin' Evidence" – 5:23
3. "Hey Now" – 3:42
4. "Papa Legba" – 5:54
5. "Wild Wild Life" – 3:39
6. "Radio Head" – 3:14
7. "Dream Operator" – 4:39
8. "People Like Us" – 4:26
9. "City of Dreams" – 5:06

todas as canções compostas por David Byrne.

vídeo de "Wild Wild Life" - Talking Heads

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OUÇA O DISCO