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terça-feira, 30 de abril de 2024

cotidianas #829 - Pílula Surrealista #56

 

Verônica levantou-se da cama tarde. Meio zonza, a cabeça ainda cheia da bebedeira da noite anterior. O atraso era fatal, só precisava se confirmar na prática quando, mais de uma hora além do horário do ponto, ela se depararia cara a cara com o chefe, sendo a dela de constrangimento e a dele de fúria. 

Mas o atraso não se confirmou. Melhor dizendo: jamais houve, pois nem atraso e nem compromisso se realizaram. Tudo isso porque, voltando ao momento da saída de Verônica da cama, os sapatos lhe embaralharam a rotina. Não somente de Verônica, aliás. De todos. Ao tentar calçá-los, ela percebeu que o pé direito calçava o sapato esquerdo e vice-versa. Não havia o que consertasse aquele descompasso. Com desconforto, calçou-os trocados. Era o que restava.

Mesmo assim, tentou ir ao trabalho. Saiu pela rua cambaleando e com os pés tortos num exercício de equilíbrio entre bolsa, filho, casaco, processos e autoconfiança. Foi difícil, ainda mais com a dor nos dedos dos pés que o aperto causava. Quase caiu num desnível da calçada, mas manteve a dignidade.

Menos mal que não era somente Verônica que sofria com aquele enviesamento imprevisível. Pessoas atrapalhavam-se com os próprios passos por todos os lados, como se tivessem desaprendido a caminhar em duas pernas, engatinhando igual espécies muito primitivas do homem. Tropeços, quedas, agonias. Uns, desacostumados como não poderia ser diferente, iam forçadamente na direção que o lado esquerdo apontava, mesmo que quisessem ir na direção exatamente oposta. Nas esquinas, Verônica e o filho precisavam desviar de amontoados de gentes, que despencavam umas sobre as outras e não conseguiam mais levantarem-se, numa cena tal qual condenados no fogo do purgatório: urrando, chorando, clamando, lamentando uma vida civilizada que nunca mais recuperarão.

"Trocar os pés pelas mãos", "andar pé ante pé", "usar o sapato do outro", "dois pés não cabem num só sapato", "cada um sabe onde lhe aperta o sapato". Vieram à cabeça de Verônica todos estes provérbios, os quais, contudo, não fizeram sentido, não lhe ajudaram em nada. Desistiu de levar o filho ao colégio a duas agora intermináveis quadras de distância. Parou no meio-fio, vencida. Pela primeira vez na vida, não sabia que direção tomar.


Daniel Rodrigues

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