“Acenda um e ouça o que eu tenho a lhe dizer/
Esse é o Planet Hemp e
não tenho o que esconder/
Fumo maconha sim, mas calma meu camarada/
Eles um dia vão ver que a lei estava errada.”
versos de abertura de “Dig dig dig”
Chega a ser ridículo pensar hoje que, em 1995, mesmo ano em que o Brasil hipócrita achava engraçadinho os filhinhos-de-papai dos Mamonas Assassinas fazerem apologia ao bacanal e à felação para crianças (pra ficar em apenas dois exemplos incabíveis), os pretos da periferia carioca do Planet Hemp eram taxados de perigosos. Isso porque seu discurso não tinha a intenção de apenas vender falando qualquer baboseira apelativa, mas, sim, de ir à raiz do problema, sem meio-termo. Com palavras-de-ordem como “Legalize Já”, “Fazendo a sua cabeça” e “Aprenda a dizer não”, os caras fizeram um álbum revolucionário que quebrou barreiras sonoras e comportamentais no Brasil democrático e globalizado dos anos 90: “Usuário”. A bandeira não era só a da liberação da maconha, mas também da desigualdade social, da discriminação racial, da midiatização e da corrupção policial e política numa fala altamente engajada e denunciadora. Tudo com muita agressividade, articulação e pegada.
O Planet Hemp foi algo totalmente novo no mercado fonográfico mundial. A começar, tinha nada menos que três rappers como protagonistas. Um deles era o hoje popular Marcelo D2, então um verdadeiro prosador urbano, um poeta do subúrbio cuja lírica alia o grito de revolta do rap à malemolência consciente dos partideiros do samba. Igualmente, BNegão, dono de uma voz possante e ideias não menos, inteligentíssimo e mordaz. Para completar, Black Alien, outro feroz rapper-repentista. A banda se autodefinia como um Raprocknrollpsicodeliahardcoreragga, o que, na verdade, apenas mostra sua diversidade musical. Uniam com desenvoltura rap ao hardcore, funk, reggae, ragga, surf, punk entre outros, mas, como se não bastasse, ainda incluíam ritmos brasileiros. É inegável que se parecem com e não existiriam não fossem Rage Against the Machine, Beastie Boys, Body Count e Cypress Hill, mas essa levada de raiz é um grande diferencial do Planet não só no som, mas na maneira de cantar, no fraseado e nas letras.
Prova dessa gama de influências é a faixa inicial do disco: “Não Compre, Plante”, um funk-rock-soul que podia muito bem integrar algum dos volumes do Tim Maia Racional não fossem os scratches modernos do DJ Zé Gonzales, perfeitos e cirúrgicos como em todo o disco. Na sequência, “Porcos Fardados”, rap com batida sampleada de James Brown, um tiro de escopeta em forma de palavras contra a polícia. Além de citar um dos ídolos de D2 e da banda, Bezerra da Silva ("Você com o revólver na mão é um bicho feroz/ Sem ele anda rebolando e até muda de voz"), manda o recado no refrão: “porcos fardados: seus dias estão contados”.
Depois, a pesada e pegajosa “Legalize Já”, polêmico megasucesso que foi um dos responsáveis por fazer “Usuário” vender 150 mil de cópias. “Deisdasseis”, das melhores, é uma vinheta sustentada só nas vozes e no beat box mas que, pasmem!, não tem ritmo de rap, mas de baião. Sim! Parece um desafio nordestino, mas com sotaque de gurizada carioca (e, claro, com apologia à marijuana). Genial. Esta já emenda com “Phunky Buddha”, um rap-hardcore com scratches fenomenais e a ótima guitarra de Rafael Crespo, além de Bacalhau, na bateria, e Formigão, no baixo, segurando a base super bem – como, aliás, fazem em todo o disco.
“Maryjane”, outra ótima, alterna um hardcore rápido a um funk carregado. A diversidade sonora do grupo surpreende novamente em “Futuro do País”, que começa com um sample de pagode e o canto malandro de D2. A letra, crítica, põe o dedo na ferida, dizendo: “Mas eu queria somente lembrar/ que milhões de crianças sem lar/ São frutos do mal que floriu/ Num país que jamais repartiu (Pátria amada, Brasil)”. Isso, claro, não podia “terminar em samba”. Pois que uma guitarra distorcidíssima surge ao fundo até que, ao final da última estrofe, entra, como se estivesse socando, uma massa sonora de guitarras, baixo, bateria e samples, transformando-a num rock que parece as melhores e mais pesadas coisas do Ministry.
Outro hit, a clássica “Mantenha o Respeito”, traz um refrão poderoso, daqueles que incendeiam qualquer show. “Mutha Fuckin' Racists”, em inglês e bem ao estilo Body Count , alternando hip hop, heavy metal e hardcore, antecede a, para mim, melhor do disco e da banda. “Dig Dig Dig (Hempa)” é, sem dúvida, um dos clássicos do rock nacional. Primeiro que só rock não é a melhor definição. Ela começa com uma batida marcada de baião, até que, no primeiro refrão, muda radicalmente para um reggae. O ritmo nordestino retorna na segunda sessão de versos, mas, no refrão seguinte, surgem as guitarras possantes e pesadíssimas para formar um funk-rock de tirar o fôlego. Outra ideia genial é que a letra do refrão varia. No segundo, por exemplo, D2 cita nada mais, nada menos que versos de “Zumbi”, o clássico samba-rock do LP "Tábua de Esmeraldas" de Jorge Ben, fazendo referência não só ao som do mestre, mas à negritude e à importância histórico-social do líder negro para o discurso contemporâneo do Planet.
Mudando totalmente a textura sonora apurada, o craque produtor Mario Caldato Jr. (corresponsável por toda a engenharia de estúdio dos Beastie Boys pôs a banda ao vivo no estúdio para tocar a instrumental “Skunk”, com show de guitarras de Crespo e que ficou, propositalmente, com cara de faixa demo. “A Culpa É de Quem?” cai no rap novamente, e aí quem se destaca, além dos rappers, é Zé Gonzales, que varia o tipo de batida e os elementos sonoros. Para terminar, o hardcore acelerado “Bala Perdida”. Perfeita.
Afora as polêmicas, prisões e censuras que gerou, é evidente que “Usuário” trouxe à tona discussões então superficializadas ou até evitadas, denunciando a infinidade de coisas erradas que o sistema político do Brasil faz questão de manter para poder explorar. Dentro disso, mordazes e desafiadores, os rapazes do Planet Hemp foram muito além da imagem de adolescentes maconheiros querendo fumar sua cannabis sem parecer criminosos, pois colocaram na mesa uma série de questionamentos fundamentais para quem quer um mínimo de igualdade social em terras brasileiras. Lá pelas tantas, eles dizem: “Não vou ficar calado porque está tudo errado/ Políticos cruzam os braços e o país está uma merda/ Trabalho pra caralho e fumo minha erva/ E aí eu te pergunto/ A culpa é de quem?”
E aí eu lhes pergunto: a culpa é de quem?
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FAIXAS:
1. "Não Compre, Plante!" 4:12
2. "Porcos Fardados" 3:06
3. "Legalize Já" 3:01
4. "Deisdazseis" 0:46
5. "Phunky Buddha" 2:50
6. "Maryjane" 2:10
7. "Planet Hemp" 0:26
8. "Fazendo a Cabeça" 3:20
9. "Futuro do País" 3:39
10. "Mantenha o Respeito" 3:17
11. "P... Disfarçada" 2:26
12. "Speed Funk" 1:24
13. "Mutha Fuckin' Racists" 3:45
14. "Dig Dig Dig (Hempa)" 1:53
15. "Skunk" 3:35
16. "A Culpa É de Quem?" 3:48
17. "Bala Perdida" 2:33
18. "Sem título" (faixa oculta no final do álbum) 1:26
Ouça:
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