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quinta-feira, 28 de novembro de 2013

cotidianas #256 - Uma Floresta



Quem é amante de música como eu vai entender essa história, mas quem é fã da banda inglesa The Cure vai, mais do que isso, se identificar. Embora tenha ocorrido há uns bons anos, a sensação daquele acontecimento ainda me é bastante presente. Os “bons anos” a que me refiro significam 23 deles atrás, em 1990. O local: a emblemática loja Mesbla da Voluntários da Pátria, Centro de Porto Alegre.

Era um início de noite de um dia útil qualquer, terça, quarta, qualquer coisa assim. Hora do pico: pessoas pegando condução, umas correndo para os compromissos noturnos, outras voltando para casa, comércio fechando, meretrício abrindo, ambulantes aproveitando o movimento para vender, frotas de coletivos lotando as ruas, muito zunzunzum. Minha mãe, que trabalhava na Senhor dos Passos, combinou comigo de nos encontrarmos ao final de seu expediente, por umas 18h30. Ela precisava comprar algo ou simplesmente pesquisar preços, não lembro ao certo. Lembro, sim, de pegá-la em seu trabalho e rumarmos em direção da Mesbla, por ficar ali perto e por ser um dos poucos estabelecimentos que se mantinham abertos até mais tarde do que o horário normal do comércio.

A Mesbla, para os que não conhecem, era uma loja de departamentos (tal qual uma Magazine Luiza ou Colombo da vida) de origem francesa cuja falência, decretada em 1999, diz-se, se deu por má administração. Porém, naquela época, princípio dos anos 90, a Mesbla ainda reinava, embora, por debaixo dos panos, já se prenunciava a derrocada, o que só veio a público anos depois, quando tentaram em vão salvar o negócio e as lojas foram fechando aos poucos até definhar. Havia outra loja Mesbla na esquina da Otávio Rocha com Dr. Flores (onde funciona hoje uma Manlec). No entanto, a da Voluntários era “A” Mesbla. Majestosa. Moderna. Convidativa. Numa época em que outras boas lojas de departamento já guerreavam entre si com ofertas e preços, as também extintas Grazziotin, Hipo-Incosul, JH Santos e Arapuã (que se situavam se não na mesma rua, no entorno), nenhuma batia a Mesbla. Lá era o shopping de uma Porto Alegre que, naquele então, tinha apenas o Iguatemi como grande centro comercial.

Parte desta importância se devia, certamente, à arquitetura do Edifício Mesbla. Projetado pelo arquiteto Arnaldo Gladosch, em 1944, o prédio, marco da arquitetura comercial da cidade, se já era vistoso por fora, com sua fachada acompanhando a curvatura da rua e cuja superfície explorava a textura dos tijolos em tom terroso-escuro, por dentro, então!... No seu interior, os três primeiros pisos eram integrados através de mezaninos em forma de anéis, enquanto os demais, destinados a escritórios, desenvolviam-se perifericamente, liberando uma área central que possibilitava uma iluminação vinda do cume em todos os pisos de loja. Isso sem falar na visibilidade do seu todo, apreciável de qualquer ponto em que se estivesse.

Depois que aquela Mesbla fechou as portas, antes mesmo de a empresa anunciar a falência, duas situações vividas por mim envolvendo o prédio – hoje pertencente ao Centro Cultural do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia e onde se pretende, em breve, instalar a nova sede do Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul – me geraram sentimentos opostos. Uma delas, em 1997, de puro deleite, quando pude visitar a 1ª Bienal do Mercosul, evento o qual, inteligentemente, se valeu da beleza e da disposição espacial do prédio para integrar lindamente o desenho de sua arquitetura a quadros, esculturas e instalações da nata da arte moderna brasileira. A outra circunstância, no entanto, nada tem de encantadora, pois foi quando, a trabalho, em 2009, fui à TV Ulbra à época em que as emissoras da universidade, então dona do imóvel, se transferiram da cidade de Canoas para lá. Encontrei tudo “remendado”: divisórias, paredes móveis e estúdios montados no hall que, numa lógica funcional e burra, descaracterizaram totalmente o local, dando-me, logo ao entrar, a nítida sensação de que não estava no mesmo lugar. Nada daquele visual clean e do espaço amplo, que fazia destacar com clareza os produtos e as pessoas que circulavam. Não localizei nem a grande escada em alas simétricas ao fundo da área central, nos moldes dos primeiros magazines de departamentos do século XIX, que facilitavam a progressão vertical do público no interior da loja.

Naquele início de noite com minha mãe, no entanto, não subi as escadas da Mesbla. Enquanto ela comprava-pesquisava suas bugigangas noutros andares, eu permaneci no térreo, pois ali ficava o que me interessava: os discos. O setor de Música e Vídeo era ao fundo e à esquerda do salão principal, com seus módulos para LP’s separados por categorias (Cantor Nacional, Banda Nacional, Gauchesco, por exemplo) mais os mostruários de fitas K7 e as de VHS, que não recordo como ficavam expostas. Ao chegar, o vendedor do departamento, um rapaz de uns 30 anos de quem não lembro o nome (perdoem-me, mas quem me conhece sabe que tenho dificuldade de gravar nomes, ainda mais quando de um acontecimento de tanto tempo atrás), cumprimentou-me como pede a conduta de um bom atendimento varejista. Porém, percebi que ele ficou observando (com motivo de sobra) aquele pré-adolescente de 12 anos vestido de blusa preta, calças jeans rasgadas num dos joelhos, tênis tipo basquete sujos, cabelo pixaim com corte quase moicano, óculos de grau com armação redonda e de cor azul fluorescente e, para arrematar, pendurado no pescoço por uma corrente metálica, um crucifixo de ferro fundido de uns 14 cm de altura, que tomava a extensão do tórax, comprado não numa loja de artigos de rock, mas num antiquário da rua Fernando Machado. Sim: eu me vestia desse jeito, algo entre o punk, o dark e eu mesmo. E pior: minha mãe, mais por coragem do que por amor, mesmo que fizesse algum comentário a respeito de um exagero ou outro, andava com seu filho numa boa pelo Centro ou onde fosse. Inclusive em lojas de departamentos.

Como não tinha por hábito comprar filmes para assistir no videocassete, pois me eram caros (alugava-os como solução), meu interesse ali era voltado especialmente para os discos de vinil. Diletante já naquela época, colecionava junto com meu irmão o que me era possível com a mesada, mas a maioria dos discos, inevitavelmente, eram apenas objetos de desejo que eu não cansava de admirar nas prateleiras das lojas. Repetia este ritual de contemplação mais uma vez ali na Mesbla, dedilhando volume após volume para, ávido por conhecer mais, descobrir novos títulos, ver os já conhecidos e aqueles que almejava ter ou rever os que já figuravam na discoteca de casa. Passando pela letra C da fileira de Bandas Internacionais, deparei-me com os LP’s de um dos meus grupos preferidos desde aqueles idos: o The Cure. Tinham posto para venda os mais populares em vendagem e conhecimento do cliente mediano, afinal, tratava-se de uma loja de departamentos que, vendedora de produtos muito mais caros e rendosos, não se preocupava em ser especialista justamente em discos. Disco era coisa para aficionados como eu. E o vendedor.

Havia ali dois ou três do Cure, provavelmente “The Head on the Door”, álbum de carreira repleto de hits da banda, de 1985, e “Standing on a Beach”, de um ano depois, a coletânea com os maiores sucessos de Robert Smith e Cia. até então, um campeão de vendagens. O terceiro, no entanto, não podia ser classificado exatamente um estrondo de vendas. Não era o exótico “The Top” nem o deprê “Pornography”, mas, sim, o único LP oficial ao vivo da banda até aquele momento, de 1984: o “Concert”. Embora fosse dos que já tivesse em casa, puxei-o da pilha com surpresa e emoção e fiquei a admirar a capa. Foi quando ouvi uma voz atrás de mim perguntar-me com empolgação:

- Tu gosta de The Cure?!

Virei-me e constatei que quem me perguntava era o vendedor da loja. Respondi que sim com um sorriso tanto de surpresa quanto de identificação. Comentei que meus preferidos (na época era) do Cure eram o “Pornography” e o “Faith”, os bem gothic-punk, mas que gostava muito, no “Concert”, entre outras coisas, da sonoridade da bateria do Andy Anderson, um negrão que assumira as baquetas do grupo naquela época e que tocava forte como um bate-estacas. Foi visível que o tal moço da loja também se identificou comigo, tendo ficando, inclusive, positivamente espantado por aquele pirralho conhecer e gostar do mesmo que ele, de uma geração mais velha – situação que vira e mexe me ocorria quando era mais guri. Ele ainda disse:

- Eu fui no show deles no Gigantinho. Foi demais. – contou-me com emoção. – Cara, me dá esse disco aqui que eu vou colocar pra rodar.

Sim: ele interrompeu uma Paula Abdul ou George Michael qualquer que tocava sonolentamente na vitrola e substituiu por The Cure. Pelo “Concert”. O som dos alto-falantes, espalhados por toda a loja, saía, tirando as interrupções para os anúncios em voz dos vendedores ao microfone, somente dali. Ou seja: toda a Mesbla estava prestes a escutar The Cure. Ele pôs na primeira faixa. Chiados da agulha no sulco e entra um sobe-som da plateia ovacionando a banda que, percebe-se, entrava no palco naquele instante para abrir o “concerto”. Robert Smith dá boa noite e anuncia a canção de abertura. Andy Anderson faz um longo rolo na bateria conjugando tom-tom e surdo, abrindo caminho para que toda a banda entrasse explodindo naquele clima soturno e denso, de guitarras distorcidas, teclados espaciais e bateria possante. Era “Shake Dog Shake", para delírio do público, meu e do vendedor.

Escutamos a música inteira entre uma conversa e outra sobre partes da mesma que achávamos legal e sobre nossa paixão pelo Cure. Tudo num volume ambiente, afinal, o som ia para toda a loja. Não que Cure não pudesse tocar na Mesbla, mas o “Concert”, cheio de músicas da fase dark da banda, carregado em sonoridades ruidosas e perturbadoras, além do fato de ser ao vivo, o que adensa as vibrações irregulares por causa do rumor da plateia, não era exatamente o mais aconselhável para uma situação como aquela. Por isso, respeitávamos os ouvidos das senhoras que, como minha mãe, estavam lá para comprar uma colcha, roupa de banho, artigos para casa, etc. Mas nossa vontade era de arrebentar as caixas de som! Durante a conversa, concordamos que a melhor performance da bateria era a de “A Forest”. Sem dúvida. Afinal, aquela marcação de ritmo da música original pedia mesmo uma batida forte. Empolgado, ele virou o lado e foi direto nesta faixa. Largou a agulha ainda no fervor da multidão, que vibrava com o final de “A Hundred Years”, a anterior. Foi a partir dali que a luminosa e moderna loja Mesbla se transformou...

A clássica abertura de teclados, num tom grave e ritualístico, mórbido como que vindo de dentro de uma caverna, e as espaçadas frases da guitarra prenunciando o riff, levam a galera ao êxtase. E nós também. Começava um dos épicos do Cure. Já alheio a qualquer outra coisa que estivesse por perto, inclusive o seu gerente ou outros clientes, o vendedor aumentou o volume. Naquele mesmo momento, a sensação foi de que anoitecera dentro da Mesbla e de que entrávamos definitivamente para dentro de uma selva fechada e escura. Parecia que ninguém mais existia em nossa volta. Só nós, a música e uma floresta.

A introdução de “A Forest”, de pouco mais de 1 minuto, parece ter durado uma hora. Nós, diante daquele som, não falávamos, talvez com receio de alertar os bichos à espreita. Até que, finda a abertura, entra, enfim, a tal batida, marcada em dois tempos, pesada, esmurrando as caixas da bateria e até mais acelerada que na versão original. Arrasador! Meu companheiro silvícola não se conteve e aumentou ainda mais o volume. Para o máximo! Os acordes de “A Forest” retumbavam pelos corredores, fazendo vibrar as mesas, os eletrodomésticos, as vidraças e as louças do setor de Bazar.

Robert Smith dizia: “The sound is deep/ In the dark/ I hear her voice/ And start to run/ Into the trees/ Into the trees...” (“O som é profundo/ Na escuridão/ Eu ouço a voz dela/ E começo a correr/ Para dentro das árvores/ Para dentro das árvores...”). E corríamos, ali, parados. Sentíamos o som reverberar por todo o espaço, tomando totalmente os 15 metros de altura que iam do chão ao teto (ou seria a copa?).

Absorvidos por aquela atmosfera selvagem, os versos: “Again and again and again...” nos fazia investir mais ainda mata adentro. E de novo, e de novo, e de novo. Será que saberíamos voltar agora? “I’m lost in a Forest”? We lost in a Forest? O maravilhoso solo de guitarra, cheio de efeito de pedal, já avançava e levava a canção para o final, em que os instrumentos pouco a pouco vão morrendo, perdendo-se no escuro da noite silvestre. Anderson dá o último soco da bateria; ficam apenas as guitarras e os teclados, que logo se retira, para, por fim, manterem-se as cordas, que saem de cena uma a uma. Cessam as guitarras e fica apenas o baixo, que suspira espaçadamente os últimos pares de acordes: “tan dan - tan dan - tan dan...”, até sua propagação esvaecer de vez no espaço.

Bastou a música terminar para tudo voltar a ser como era antes. Claridade, senhoras comprando ou pesquisando preços, crianças correndo e berrando, vendedores vendendo. Uma loja de departamentos. Entretanto, entreolhamo-nos com a sensação de que algo diferente ainda pairava no ar, mas que não tínhamos mais como saber ao certo o que era. Retomados, trocamos ainda algumas animadas palavras de “cureanos” até que minha mãe retornou para irmos embora. Despedi-me do parceiro de viagem calorosamente, afinal, só nós sabíamos a experiência que tínhamos vivido naqueles 6 minutos e 46 segundos minutos entre o primeiro e o último acorde de “A Forest” que pareceram durar uma madrugada inteira.

Indo em direção à porta de saída, minha mãe ainda observou impressionada:

- Tu faz amizade rápido, hein, Dã?!

- ... É-é... – respondi meio bobo, ainda sem muita noção do que se sucedera ali naquele magazine entre tantos objetos supérfluos e desnecessários, entre tantas pessoas que eu não conhecia e jamais conhecerei.


O segurança abriu-nos a porta da entrada e, ao sairmos para a rua, educadamente deu-nos “boa noite” antes de fechá-la novamente como quem passa o cadeado numa jaula. Antes de a passagem ser totalmente fechada, porém, juro ter escutado, vindo lá de dentro da loja, o uivo de um lobo, o que, lamentavelmente, logo se perdeu no ruído metálico da frenagem desvairada dos ônibus que cumpriam, com suas toneladas de realidade, a correria irracional da vida, deixando-me com a dúvida, até hoje, se realmente escutei aquilo.



3 comentários:

  1. Pouco mais de seis minutos em que uma loja se transformou numa floresta escura e apavorante.
    Bárbaro!
    "A forest" causacsensações como essas mesmo. Até hj, tendo ouvido inúmeras e incontáveis vezes ainda me emociono quando a escuto. Ainda dá aquele arrepio.

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  2. Que viagem! São as maravilhas da nossa imaginação, que até nos fazem perder a noção de tempo e de espaço.
    E, agora, durante a leitura, viajei, também. Muito legal! Iara.

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  3. "Lendo, eu consegui ver a música bem perto dos meus ouvidos". A frase não faz sentido, mas foi exatamente isso que eu senti. Sensacional!

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