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sexta-feira, 21 de março de 2014

cotidianas #280 - O primeiro poema do caderno


O primeiro poema do caderno


"Caderno", RODRIGUES, Daniel
esferográfica em bloco de papel
(aprox. 30x 22cm)
O primeiro poema do caderno
vem assim
sem asco e sem sílaba
sem tônica
nem dominante
sem som: mudo, 4’33, “ma”, prece

O primeiro poema do caderno
permite-se a tudo
ao sexo sujo, ao jogo limpo
às paredes mal pintadas das celas
à mendicância dos suicidas heroicos
à imundície dos bancos das praças
à mira dos atiradores a esmo
ao gargalo das garrafas dos bêbados
às gravatas dos donos do mundo
enforcadoras das vontades

Afinal, ele é o primeiro de todos
pode-se tudo, ele

O primeiro poema do caderno
diz, maioral: “às favas com os estilos!”
quer transgredir as métricas e as redondilhas
tudo que lhe encarcera
que oprime, limita:
parnasos, neoconcretos, renascenças, ilíadas, comédias divinas, faustos doutores
tudo lixo
resta-se livre e insuflado sobre as linhas
do poema que vem primeiro
e por isso impõe-se

O primeiro poema do caderno
pode tomar folhas e folhas
do caderno
sem culpa
e transformá-las, depois de rabiscadas, em páginas
e ainda crendo-se, inabalável, primeiro, uno
poema
essa coisa inventada pelos deuses mundanos
que compreende todas as verdades e desverdades
mundos

Ele (traiçoeiro, como vês)
quer subverter as próprias anáforas
dedicar-se a mundos
de explosões solares, nebulosas coloridas e amores lunares
aqueles que têm dentro de ti
ó, invólucro débil e sábio!
tão corpo... tão corpo
por isso, o primeiro poema do caderno (justo)
te merece

Ele dita o ritmo
da pulsação
e para de bater
quando lhe convêm
como agora
morte
...
e: Páscoa!, ressuscita

Há-de contrariá-lo?

O primeiro poema do caderno
é isso que você está vendo
no espelho da tua carne
nada mais
– reconhecei-vos!
poema que, por ser primeiro
parece
curiosa e infalivelmente
com o último
o último que será
o primeiro
ao infinito
poema deste caderno
que agora e por isso
passou a existir.



a Luan Pires.

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