“Não
é o sucesso, é o contrário: é o sufoco mesmo,
é a vontade de
cantar e de falar.
Só que de repente isso não foi possível de
acontecer a nível popular,
porque a cada dia as pessoas têm mais
medo, não têm defesa,
cada vez sabem menos o que está acontecendo.
Aí você vem e começa a cantar umas coisas
que elas gostariam de
dizer e cantar.
A razão do sucesso, então, não é bem ele mesmo.
Talvez a razão dele seja o fracasso de todo mundo.”
João
Bosco,
em entrevista de 1976
sobre o disco “Galos de Briga”
Este
mês de abril de 2014 não ficará marcado apenas pelas vésperas de
Copa do Mundo no Brasil (quando se espera dos cidadãos, sem querer
pedir muito, civilidade) ou pelas celebrações de 222 anos pela
memória do “patrono cívico” brasileiro, Tiradentes, mas,
também, por outra data de importância patriótica menos feliz,
porém necessariamente rememorável: os 50 anos do começo da
Ditadura Militar, em 1º de abril de 1964. Diante de tantas
manifestações contra a realização da Copa, de mais um feriado que
não se acessa o verdadeiro motivo da paralisação nacional e de
tantas controvérsias em razão dos arquivos ainda velados dos porões
da ditadura, o que seria capaz de unir de alguma forma futebol,
liberdade civil e política, representando essas três datas
distantes cronologicamente, mas próximas em simbologia?
Um
disco que une esses três polos como nenhum outro é “Galos de
Briga”, terceiro da carreira de João Bosco. Gravado em 1976 pela
RCA Victor, este sucesso de público e crítica à época é fruto,
curiosamente, de um momento de alta ebulição no Brasil: enquanto
Geisel iniciava seu governo anunciando uma “abertura lenta e
gradual”, o AI-5 inda vigorava e barbaridades aos direitos humanos
ainda ocorriam em todos os cantos do País. A Lei Falcão punha uma
mordaça na oposição política; a estilista e mãe de guerrilheiro
Zuzu Angel, pedra no sapato dos militares, morria num ainda
inexplicado acidente de carro no mesmo fatídico abril; meses antes,
o jornalista Vladmir Herzog era assassinado dentro
do DOI-CODI.
Torturas tomavam os porões do DOPS e pessoas desapareciam sem
praticamente ninguém saber. Porém, a resistência se mostrava
forte: o rabino Henry Sobel e Dom Evaristo Arns comandam a missa
ecumênica em nome de Vlado na Praça da Sé, reunindo milhares de
pessoas que, sob o olhar e a mira dos policiais, rezam
silenciosamente; Ulysses Guimarães fundava a OPB, Ordem dos
Parlamentares do Brasil, associação sem vínculos partidários,
religiosos ou sociais que representava a luta pela abertura política;
o PCdoB, esfacelado na Guerrilha do Araguaia, voltava a se
reorganizar através das lideranças estudantis. O Brasil estava
pegando fogo, e a classe artística, obviamente, ansiava por se
manifestar, por resistir de alguma forma.
Eis
então que, no início dos anos 70, através do meio universitário,
se dá o encontro de João Bosco com Aldir Blanc. João, um mineiro
que virou carioca, mas que nunca perdeu a vastidão poética de Minas
Gerais dentro de si. Aldir Blanc, típico poeta maldito da Rio de
Janeiro carnavalesca e vadia, do fervor pelo futebol e pela
militância política. A fusão dessas duas forças artísticas foi
explosiva, e eles criam com “Galos de Briga” uma obra que é tapa
contundente na cara do regime em mensagens inteligentes aos milicos e
aos mantenedores do sistema. Com crítica social, combatividade e um
posicionamento de esquerda visível, o álbum só podia ter este
título, uma vez que, como animais de rinha, eles vão para o
enfrentamento com as armas que têm: os sons e a palavra.
Exímio
violonista e compositor, amante de Clementina de Jesus, dos mitos da
Rádio Nacional, de sambas antigos, de João Gilberto e do populacho
das rádios AM, João consegue criar desde boleros emanados dos
puteiros do baixo meretrício da Lapa até sambas gingados, passando
por ritmos portugueses e marchas da antiga. Isso, aliado à poesia
afiada de Aldir. É esse arsenal rítmico e melódico que “Galos de
Briga” traz, como uma dupla de atacantes habilidosos que tiram da
cartola jogadas inesperadas. O clássico samba "Incompatibilidade de Gênios" dá o pontapé inicial com seu humor ácido, já
pontuando a crítica social de um país que persegue e mata seus
filhos enquanto, dentro dos lares, a violência e a incompreensão
reinam. A referência ao futebol, tanto como paixão do brasileiro
como fuga da realidade, já aparece no primeiro verso na rusga entre
marido e mulher: “Dotô, jogava o Flamengo, eu queria escutar/
Chegou, mudou de estação, começou a cantá...” Na mesma
linha, porém ainda mais aguda, “Gol Anulado” usa o futebol de
forma metafórica para expressar a mesma incompatibilidade entre amor
e o momento político de dureza e opressão, o que, numa sociedade
ignorante, machista e inculta, desemboca na válvula de escape, o
futebol. É o caso do marido que espanca a mulher por que ela mentia
ser vascaína como ele, mas, na verdade, torcia pelo rival Flamengo.
“Quando você gritou Mengo/ No segundo gol do Zico/ Tirei sem
pensar o cinto/ E bati até cansar...” E desfecha, reforçando
esse simbolismo maléfico que o entretenimento futebol
desgraçadamente pode ter: “Eu aprendi que a alegria/ De quem
está apaixonado/ É como a falsa euforia/ De um gol anulado”.
De
igual potência crítica, “O Cavaleiro e os Moinhos”, das canções
imortalizadas na voz de Elis Regina (lançadora de João e Aldir em
1972, ao gravar-lhes o hit “Bala com Bala”), inicia com um
provocador ritmo de marcha militar sob os versos: “Arrebentar/ a
corrente que envolve o amanhã/ Despertar as espadas/ Varrer as
esfinges das encruzilhadas...”. De repente, o clima marcial se
transforma numa debochada rumba! E a letra, pontuda como um bico de
galo, continua atacando: “Todo esse tempo/ foi igual a dormir
num navio/ sem fazer movimento/ mas tecendo o fio da água e do
vento/ Eu, baderneiro/ me tornei cavaleiro/ malandramente/ pelos
caminhos”. E, exaltando os diversos grupos da guerrilha armada,
finaliza referenciando Cervantes: “Meu companheiro/ tá armado
até os dentes/ já não há mais moinhos/ como os de antigamente”.
Afinal, numa época como aquela, quem era o “louco Quixote” e
quem era o “moinho”?
O
suingue caribenho reaparece na gostosa “Rumbando”, assim como o
bolero nas não menos deliciosas “Latin Lover” (já gravada por
Simone um ano antes) e “Miss Suéter”, o antigo certame
que destacava as jovens que apresentavam os bustos, digamos, mais
avantajados. Aldir penetra no universo brega de forma
engraçada e crônica (“Eu conheço uma assim/ Uma dessas
mulheres/ Que um homem não esquece/ Ex-atriz de TV/ Hoje é
escriturária do INPS/ E que, dia atrás/ Venceu lá no concurso de
Miss Suéter...”) e João realiza o sonho de fazer duo com uma
de suas divas, Ângela Maria, que executa uma impressionante
progressão tonal no riff com sua treinada voz de contralto.
Embora
ainda tenha o divertido partido-alto “Feminismo no Estácio“ e o
samba-canção “Vida Noturna”, típica fossa-boemia-carioca,
o negócio naquele momento era mesmo partir para a briga. Aí é que
o jogo engrossa! “Transversal do Tempo”, outra eternizada por
Elis (foi título de disco e espetáculo dela, em 1978), que fala
sobre pobreza (“As coisas que eu sei de mim/ São pivetes da
cidade/ Pedem, insistem e eu/ Me sinto pouco à vontade/ Fechada
dentro de um táxi/ Numa transversal do tempo”), exílio (“As
coisas que eu sei de mim/ Tentam vencer a distância/ E é como se
aguardassem feridas/ Numa ambulância”) e desesperança (“Acho
que o amor/ É a ausência de engarrafamento”). Pungente.
Igualmente, o fado lusitano que dá título ao álbum, de poesia
rebuscada e caráter combativo: “Não o rubrancor da vergonha/
mas os rubros de ataduras/ o rubro das brigas duras/ dos galos de
fogo puro/ rubro gengivas de ódio/ antes das manchas do muro”.
(Sim, não é coincidência que a imagem das pichações com
palavras de ordem contra a ditadura venha à cabeça.)
Mas
não para por aí. A raiva de toda a sociedade civil oprimida e sem
voz parecia não caber em apenas poucas músicas para João e Aldir.
Tinham que falar, exatamente, desta raiva, deste inconformismo. Pois
então, toma!: “O Ronco da Cuíca”. Tal samba-enredo,
literalmente, enredou a censura que, burra e limitada, embaralhou-se
com seus versos circulares e envolventes, que a denunciavam como que
dizendo: “vocês até podem parar nossa reação através das
força, mas jamais serão capazes de conter nosso desejo pela
liberdade”. Uma “Opinião”, de Zé Keti, revisitada. Letra
e música geniais, que expande os sentidos e simbologias das palavras
(como na personificação do instrumento “cuíca”, dando-lhe vida
e politizando-o), uma vez que o próprio termo “fome” tanto pode
significar a crítica econômico-social da falta de comida ao povo
(talvez tenha sido isso que induzira os milicos ao erro) quanto, num
espectro maior, a urgência da democracia.
Pra
terminar, o “tiro de misericórdia” (não à toa, título do LP
seguinte de João Bosco, de 1977): “O Rancho da Goiabada”, uma
marcha-rancho aparentemente festiva mas que, como em poucas obras do
cancioneiro brasileiro, denunciam algo que se falava somente nas
esquinas e a boca pequena: a situação desumana dos boias-frias –
trabalhadores rurais escravos apelidados assim por causa das
refeições que levavam em recipientes sem isolamento térmico desde
que saíam de casa, de manhã cedo, o que faz com que estas já
estejam frias na hora do almoço. Os versos pintam um quadro
sócio-profissional perturbador, que contrasta com o ritmo de
carnaval da melodia: “Os boias-frias quando tomam umas biritas/
Espantando a tristeza/ Sonham, com bife a cavalo, batata frita/ E a
sobremesa/ É goiabada cascão/ com muito queijo...”. E
finaliza condenando sem meias-palavras os latifundiários criminosos
em suas fantasias de homens poderosos comparando-os aos soberanos
egípcios cujo tempo já passou dizendo que, bravamente, os
boias-frias: “São pais de santos, paus de arara, são
passistas/ São flagelados, são pingentes, balconistas/ Palhaços,
marcianos, canibais, lírios pirados/ Dançando, dormindo de olhos
abertos/ À sombra da alegoria/ Dos faraós embalsamados”.
João
e Aldir criaram um disco que é o retrato de um país em período de
mudanças, as quais só se concretizaram por que artistas corajosos
como eles, junto a centenas de opositores ativos – entre estes,
vários desaparecidos –, ofereceram resistência, seja em armas ou
em ideias. Estes são grandes responsáveis pela democracia que se
vive hoje num País capaz de receber, inclusive, uma Copa do Mundo
sem a sombra da vigília militar como ocorrera na Argentina em 1978.
Afinal, naquele tempo, quem se opunha sabia claramente o porquê de
estar fazendo. Não era por 20 centavos: era para viver num país
livre.
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Certamente,
foi por uma causa nobre como esta que, naquele mesmo 1976, João Bosco e Aldir Blanc recusaram o prêmio Golfinho de Ouro, conferido
pelo Governo do Rio de Janeiro, pois queriam que o premiado fosse
Cartola, uma vez que consideravam, sem modéstia burra, o trabalho do
compositor daquele ano, o histórico LP com “As Rosas não Falam”
e “O Mundo é um Moinho”, melhor do que o seu. A dupla recebeu,
então, o troféu de Compositores do Ano pela Associação Brasileira
dos Produtores de Disco.
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FAIXAS
1 -
Incompatibilidade de Gênios
2 -
Gol Anulado
3 - O
Cavaleiro e os Moinhos
4 -
Rumbando
5 -
Vida Noturna
6 - O
Ronco da Cuíca
7 -
Miss Suéter
8 -
Latin Lover
9 -
Galos de Briga
10 -
Feminismo no Estácio
11 -
Transversal do Tempo
12 - O
Rancho da Goiabada
todas
as músicas são de autoria de João Bosco e Aldir Blanc
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OUÇA
O DISCO
por Daniel Rodrigues
que excelente resenha, parabéns e obrigado.
ResponderExcluirUm belo texto,e pensar que há gente querendo retroceder no tempo!!!
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