“Meu
som não deixa nada a desejar para o que houve,
há e haverá no
mercado musical.
Digo, repito, atesto e assino embaixo,
sem medo de
errar e sem falsa modéstia.
É muito swing, balanço, molho,
charme e malemolência,
pois nem Santo Antonio com gancho consegue
segurar,
nem o boato ou disse-me-disse de que
eu havia morrido de
desastre de moto.
Se esqueceram de uma coisa: que eu sou imorrível!”
Di Melo
Assim
como não seria exagero dizer que tudo em Seu Jorge que não é João
Nogueira é Carlos Dafé, a mesma comparação dialética serve muito
bem para outro ídolo da música brasileira da atualidade: tudo que
não é Sabotage em Criolo é Di Melo. A constatação, embora
um tanto capciosa, denota o quanto a arte musical de hoje no Brasil
anda a reboque daquilo que já foi produzido e, principalmente, o
quanto artistas do passado foram, de fato, precursores. No caso de Di
Melo, este é pioneiro de muito do que se considera “inovação”
na música brasileira de hoje e, novamente em comparação a Criolo,
a poética afiada e o ecletismo que se percebem neste último chegam
a quase parecer uma cópia.
Todo o
pioneirismo de Di Melo está, curiosamente, em apenas um disco, o
álbum homônimo produzido por ele em 1975, um marco na história da
música pop brasileira. Idolatrado por artistas como Otto, Nação Zumbi, Leo Maia, Simoninha, Max de Castro e Charles Gavin (que, como
produtor, o verteu para CD em 2004), “Di Melo” é tomado
de lendas para os apreciadores e colecionadores, assim como a própria
figura do simpático e bonachão músico pernambucano. Saído de sua
Recife natal nos anos 60 para São Paulo, onde gravou este álbum em
alto estilo, Roberto de Melo Santos é daqueles músicos cheios de
talento e criador de uma única grande obra que, com o passar do
tempo, caíram no ostracismo. Porém, como muitas vezes acontece com
artistas brasileiros esquecidos no seu próprio país, o retorno de
Di Melo à mídia tem a ver com a apreciação que veio de fora. Nos
anos 90, seu LP tornou-se sucesso entre DJ’s europeus e teve uma de
suas faixas incluída numa coletânea da gravadora norte-americana de
jazz Blue Note. O suficiente para a galera tupiniquim voltar correndo
para conhecer aquilo que desprezava. Logo “Di Melo” passou a ser
valorizado nas lojas de bolachões paulistanas até esgotar e virar
raridade no mercado negro, chegando a custar 300 Reais em média um
vinil.
Os
músicos que participaram de sua gravação dão ao disco uma aura
ainda mais épica: contou com uma cozinha com Cláudio Bertrame
(baixo), Bolão (sax), Luiz Melo (teclado), Geraldo Vespar (maestro,
arranjos e violão), José Briamonte (maestro), Waldemar Marchette
(arregimentação) e ainda participações de gente do calibre de Hermeto Paschoal nos arranjos (!) mais Heraldo Dumont, Capitão,
Ubirajara (pai do Taiguara) e até de um músico da banda de Astor
Piazzola.
Já
para com Di Melo, a falácia chegou ao nível de este ser considerado
morto após um hipotético acidente de moto. Tudo boato: Di Melo mora
no subúrbio de Recife com filha e esposa, vive da venda dos quadros
que pinta e, segundo o próprio, tem mais de 400 canções prontinhas
para serem gravadas (inclusive parcerias com Geraldo Vandré).
Dessas, as que conseguiu pôr no acetato no famoso disco de 1975 são
verdadeiras joias da música brasileira moderna, onde demonstra uma
versatilidade e um groove de deixar muito medalhão da MPB com
inveja.
“Di
Melo” começa com a gostosa “Kilariô”, um arrasador jazz-funk
com uma pitada caribenha e cuja melodia de voz é daquelas que pegam
no ouvido de cara: “Kilariô, raiou o dia/ Eu fiz chover em
minha horta/ Ai ai meu Deus do céu, como eu sofri ao ver a natureza
morta”. A voz de timbre abençoado de Di Melo, algo entre o tom
metálico de Moraes Moreira e a pronúncia aberta de Wilson Simonal,
é ainda mais realçada pelo belo sotaque pernambucano (com suas
pronúncias “holandesas” do “T” como “Tí” e do “D”
como “Dí”). Além disso, Di Melo canta ao estilo dos mestres da
soul music norte-americana, mas também referenciando-se em
artistas nordestinos como ele, desde o swing de Jackson do
Pandeiro até o vocal rasgado de Genival Lacerda.
Em
seguida, outra que vem ratificar definitivamente a veia soul:
“A vida em seus métodos diz calma“, seu maior sucesso tanto na
época quanto na sua “retomada”, visto que foi esta a faixa que
os gringos escolheram para a coletânea de “novidades” da Blue
Note. A letra, igualmente pegajosa, é um destaque, tanto pela
mensagem quanto pela melodia de voz que lhe é empregada: “A
vida em seus métodos diz calma/ Vai com calma, você vai chegar/ Se
existe desespero é contra a calma, é/ E sem ter calma nada você
vai encontrar”. Nesta fica evidente a afinação da banda e a
qualidade da produção de Zilmar R. de Araújo. Tudo certo, tudo no
lugar: o groove da batida, os timbres, a levada da guitarra, o
arranjo dos sopros.
Na
sequência, vêm três maravilhas altamente críticas à sociedade
moderna e à condição do homem oprimido pela cidade grande, algo
que a percepção de nordestino na gigantesca São Paulo ajuda a
enxergar com mais clareza. Primeiro, “Aceito tudo”, de poética
letra que remete ao modernismo e ao fraseado de um estilo musical que
ainda nem existia, o rap, visto seu jeito de cantar e organizar os
versos na melodia. Música que lembra muito a maneira de escrever e
cantar de Chico Science (até por causa do sotaque) e que
provavelmente é tudo o que Criolo sempre quis fazer: espécie de
repente moderno marcado na guitarra com letra sacaca e de sinapses
ligeiras (Aí eu pensei que ia indo caminhando mas não fui/ para
um sonho diferente que se realiza e reproduz/ E pensando fui seguindo
num caminho estreito cheio de toco/ Esqueci de lembrar de pensar que
todo penso é torto...”). No fim, desemboca em um funk
irrepreensível comandado pelos vocais espertos de Di Melo.
A
outra é mais uma pérola: "Conformopolis". Mas, peraí: essa
melodia é uma... milonga?! Sim, uma milonga, ritmo hispano-ibérico
típico do Rio Grande do Sul e dos vizinhos portenhos Uruguai e
Argentina. Esta gravação é algo sem precedente dentro da MPB fora
dos pagos gaúchos. Não eram os irmãos Ramil, não era Hartlieb,
não eram os Almôndegas nem Ellwanger. É um pernambucano em terras
paulistanas totalmente sintonizado com a arte musical – pois,
afinal, música boa não tem fronteira. Pungente, realista,
melancólica: “A cidade acorda e sai pra trabalhar/ Na mesma
rotina no mesmo lugar/ Ela então concorda que tem que parar/ Ela não
discorda que tem que mudar...”. Das grandes do disco, que já
foi motivo de Cotidianas aqui no ClyBlog.
Mais
um apelo crítico à vida maquinal e desumanizadora da sociedade
moderna, desta vez na balada marcial “Má-lida”. Os versos,
confessionais, traduzem através da repetição fonética e de
sentenças curtas o deslocamento existencial de um homem no mundo:
“Ah! tenho de pouco surrados miúdos malditos/ Fui entrelaçado
e já fui casado/ Um tanto inibido/ E pra muita gente sou um
depravado.” E completa: “Ah! julgo não ser enxerido nem
intrometido/ Tampouco ousado/ É que estou saturado de tanta má-lida/
Mesmo trabalhando como um condenado”. E os arranjos de cordas
são preciosos.
E se
pensa que as surpresas param por aí, é porque não se tem noção
do que vem a seguir. Depois de três exemplos de soul, de uma
canção mais contemplativa e de uma surpreendente milonga, Di Melo
manda ver um tango! Sim, “Sementes” é um tango, ainda mais
platino que “Conformópolis”. É nesta em que toca um dos músicos
da banda de Piazzola que Di Melo em entrevista diz não lembrar do
nome, mas que, afora esse detalhe importante, dá um show de
acordeom. Os versos acompanham a elegância dramática deste estilo
musical: “Vai, flor que se mata a espera do amanhã/ Vai,
desembaraça teu sorriso a uma irmã/ Vai, que quando passas tu
perfumas chão ardente/ Vai, que o tempo atrai de ti sua semente...”.
“Pernalonga”
retoma o swing num balanço irresistível, o mesmo com outra
ótima do disco: “Minha Estrela”, de letra romântica mas no
ritmo chacoalhante da soul. De novo, a voz variante de Di
Melo, que vai do som aberto ao aveludado, bem como a pronúncia
pernambucana, se sobressai: “Minha estrela/ Girai na noite até
o raiar do dia/ Se tiver fossa vem que eu canto a melodia/ Não quero
ver o teu sorriso magoado”. O samba-rock “Se o mundo acabasse
em mel” pode ser considerado uma "Construção" pop, porém não
narra a morte repentina de um trabalhador pobre como no clássico de Chico Buarque, mas sim de um milionário do mundo do business
publicitário. “Deu pane no nervo do cérebro/ Taquicardia e
reverbério/ Momentos trágicos, instantes sórdidos/ Tombou perplexo
em pleno orbe”. Que versos!
Bucólica,
“Alma gêmea” começa com um dedilhado de violão a la
Bach que marca sua base, acompanhado de acordes de flauta que
explicitam a tocante canção. É outra que faz lembrar bastante Moraes e Chico Science, mas também da MPB rural da época. Em
“João”, a força melódica e letrística de Di Melo volta com
tudo para uma nova análise existencial do homem, um “João”
qualquer que vive submerso nas exigências sociais (trabalho,
casamento, amigos, lazer) e naquilo que ele deve ou não ser mas que,
justamente por isso, faz com que se perca de si como indivíduo. Na
alta variedade de ritmos do disco, ele finaliza com um xote.
“Indecisão” ainda termina com versos quase proféticos vindos de
um artista que conheceria o estrelato e o ostracismo, mas que nunca
deixaria de seguir pelo caminho da música: “Tem gente que nasce
pra ter e tem gente que vem pra cantar”.
Pode-se
tranquilamente colocar “Di Melo” junto a outros grandes álbuns
da soul music brasileira como os “Tim Maia Racional”, “Pra
que vou recordar o que chorei”, de Dafé, ou “Saci Pererê”, da Black Rio. Esse sentimento é compartilhado por vários apreciadores
desta obra, o que pode ser visto no bom curta documentário “Di
Melo, O imorrível”, de Alan Oliveira e Rubens Pássaro, realizado
em 2011 e que retrata a vida do compositor hoje, relembrando
histórias, coletando depoimentos de fãs e amigos e mostrando sua
ainda tímida volta aos palcos. Oxalá Di Melo possa tornar a gravar
e, quem sabe, fazer o sucesso que lhe é cabido. Para quem já foi
dado como morto e que, de certa forma realmente “reviveu”, nada é
tão improvável assim. Certo é que sua obra, mesmo passados tantos
anos (40 anos), segue sendo cada vez mais admirada. E, afinal, como Di Melo diz
de si próprio: “Para o imorrível nada é impodível”.
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documentário “DI MELO, O IMORRÍVEL”
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FAIXAS:
1. Kilariô
2. A vida em seus métodos diz calma
3. Aceito tudo (Vidal França - Vithal)
4. Conformópolis (Waldir Wanderley da Fonseca)
5. Má-lida
6. Sementes
7. Pernalonga
8. Minha estrela
9. Se o mundo acabasse em mel
10. Alma gêmea
11. João (Maria Cristina Barrionuevo)
12. Indecisão (Terrinha)
todas composições de Di Melo, exceto indicadas.
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Ouça o disco:
por Daniel Rodrigues
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