Terra sem sal
por Daniel Rodrigues
Fui com grande expectativa ver o
último filme do genial cineasta alemão Wim Wenders, “O
Sal da Terra” (França/Itália/Brasil, 2014), documentário
sobre Sebastião Salgado codirigido por seu filho, Juliano Ribeiro
Salgado. Além da indicação ao Oscar de Melhor Documentário
(que não levou, mas não me fez perder o interesse) e de ter como
tema o trabalho do grande fotógrafo brasileiro, a própria
assinatura de Wenders já me significa um bom indicativo.
Expectativa frustrada. Num filme
cujo conteúdo principal, a obra e a trajetória de Salgado, poderia
ser muito melhor explorado, os diretores derrapam num longa monótono
e comumente didático que não diz a que veio: nem pode ser
considerado uma biografia (até porque o protagonista ainda tem chão
pra correr), nem se configura como um documento poético-visual tal
qual Wenders já fizera em outros trabalhos nesse formato como “Pina”
(2011) e “Buena Vista Social Club” (1999). Além disso, o roteiro
desaproveita os próprios “ganchos” levantados durante a
narrativa de “improbabilidades controláveis” típica de
documentários, os quais poderiam direcioná-la a algo mais autoral e
criativo.
Suspeito que dois fatores tenham
influenciado para que “O Sal da Terra” tenha saído assim tão
“sem sal”. Primeiro, que Sebastião Salgado está vivo, e falar
sobre a vida-obra de pessoas que ainda estão pela tal Terra –
ainda mais quando altamente comprometidas com fatores sociais e
políticos e quando a pessoa é diretamente envolvida na produção
como neste caso – pode acarretar em interferências tanto positivas
quanto negativas. Aqui, na queda de braço, as negativas se
sobrepuseram. De bom, tem-se a riqueza de percepções do próprio
Sebastião Salgado analisando, relatando e comentando projetos e
fotos de sua autoria. No entanto, é impossível não cogitar a
autopreservação de quem provavelmente tema entrar de cabeça num
projeto com potencial de descortinar o que se quer e o que não se
quer mostrar. Com Wenders à frente, este desmascaramento tem grandes
chances de acontecer sem que o documentado o perceba conscientemente.
Quando ele vê, já foi pra ilha de edição. Um homem público como
Salgado, que guarda o status de maior em sua profissão no mundo e
cujos projetos dependem de instituições financeiras, empresas e
verba pública (inclusive, este filme), mesmo que ele não queira,
mesmo que seja inconsciente, não permite se expor de um jeito que o
discurso artístico o conduza.
Juliano filmando enquanto Sebastião fotografa. |
Não digo com isso que haja má
índole nem “rabo-preso” da parte de Sebastião Salgado,
personalidade ciente de sua trajetória e de postura
filosófico-políticas bastante esclarecida. Tanto é fato que, em
“Revelando Sebastião Salgado”, outro documentário sobre ele (de
Betsie de Paula, de 2013), vários aspectos de sua vida não deixam
de ser conhecidos pelo espectador, como a rotina de trabalho, o papel
fundamental da esposa Lélia em sua vida e modus operandi e a
relação com o outro filho, Rodrigo, que tem Síndrome de Down. Em
“O Sal da Terra”, por exemplo, o relacionamento com o filho é
abordado de forma bastante superficial e nem se menciona que é Lélia
quem organiza seu arquivo de fotos e negativos, dois elementos que
denotam bastante da forma de ser de Sebastião. Um pouco por falta de
um direcionamento mais assertivo, um pouco pelo ritmo/conceito da
montagem, tudo é contado de forma (sono)lenta mas aproveitar essa
lentidão para um aprofundamento real. A questão parece-me, sim (e
aí entra o outro fator influenciador para a concepção vaga do
filme), que o dedo de Juliano trouxe uma amortização de aspectos
negativos tanto no sentido de preservação da imagem do pai quanto
de uma inaptidão técnica sua por trás das câmeras. Ao invés de
ter ajudado, a proximidade pai-filho parece trazer um complicador ao
projeto de Juliano, influenciando no roteiro. Ainda mais considerando
as vaidades familiares, incontroláveis em exposições tão grandes.
Não captei de cara, mas lembrei da entrevista prestada por Juliano
na entrega do Oscar, em que, numa mostra sabe-se lá de modéstia ou
autismo ele se refere ao “Sebastião Salgado” e não simplesmente
ao “pai”, já denotava esta má-resolução psicanalítica.
E onde entra Wim Wenders nisso?
Justamente neste bolo de comprometimentos e presunções. Chamado
para assumir a codireção – provavelmente pela constatação desta
inaptidão de Juliano a que me referi –, o alemão tentou, tentou,
mas não soube onde se colocar. São visivelmente dele os tais
“ganchos” que poderiam salvar o filme. Primeiro, na sua didática
germânica e poética, inicia o longa com um off no qual
disseca o termo “fotografia”. Um começo até óbvio que, para
não se tornar um jogral de ensino básico, dependeria de se
desenvolver esta didática de maneira a penetrar no âmago do objeto
foto: luz, escuro, ambiente, calor, frio, posição, emoção,
solidão. Expectativa frustrada novamente, pois a narrativa segue
para uma exposição cronológica dos projetos e viagens do fotógrafo
ao longo dos anos “curiosamente” selecionada a gosto da família
Salgado. Quem viu o outro documentário sobre Sebastião ou conhece
um pouco de sua carreira sabe que ele prefere, por exemplo, não
associar seu sucesso à famosa foto do atentado a Ronald Reagen, em
1981, quando seu trabalho ganhou definitivamente projeção
internacional.
A foto de Reagan nem é mencionada
em “O Sal da Terra”.
A outra “deixa” sugerida por
Wenders e desconsiderada é ainda mais perceptível e até simbólica
nessa relação cinema de arte X imagem institucional. Quando
o cineasta relata sobre o convite que recebeu para assumir o projeto
e começar a rodar, ele destaca na narração que, curiosamente, ao
mesmo tempo em que ele apontava a câmera para Sebastião Salgado, o
movimento inverso, por força do hábito de fotógrafo, também
acontecia. Aquilo supõe que o filme, a partir dali, versaria sobre a
profundidade simbólica da linguagem cinematográfica, em que o olhar
do cineasta, do protagonista e do espectador pudessem se confundir,
confluir e se complementar. “O que é foto?” “O que é
filme?” “Quem está documentando quem?” “O quanto importa o
movimento contínuo dos frames-fotos para uma significação real do
objeto do filme?” Questionamentos estimulantes para qualquer
obra cinematográfica.
Fotos-denúncia do fotógrafo feitas na Etiópia |
Fantástico!... Não, pois
simplesmente a ideia é abandonada mais uma vez para retornar à
cômoda, isenta e simplória narração de Wenders e de Juliano (mais
de Wenders, diga-se) com incursões de depoimentos de Sebastião. Se
o filme seguisse pela lógica da discussão da linguagem de cinema,
justificaria, inclusive, a presença do/s diretor/es como
personagem/ns. Em outros documentários seus, Wenders optou ou por
uma espécie de “presença intrínseca”, como em “Quarto 666”
(1983), no qual entrevista cineastas como ele e debate o futuro de
sua profissão; “Buena Vista...”, em que a figura de Ry Cooder o
“substitui”; ou “Pina”, quando é totalmente
diretor/entrevistador, deixando a história se construir através dos
bailarinos e da presença imaterial de Pina. Todos obras-primas. Por
que será?...
No fim, coube a Wenders tentar dar
um ar autoral a “O Sal da Terra”, amarrando-o com offs,
depoimentos e muitas, mas muitas projeções de fotos. Até demais.
Muito sépia, muito esfumaçamento. Na condução, arriscou aplicar
uma cadência contemplativa para dar a sensação de apreensão do
tempo. Inútil, pois em todo o decorrer não se aprofundaram questões
como a necessidade da espera e/ou a preparação de um fotógrafo em
campo para extrair, às vezes, nenhum click. Supõe-se isso na
sequência do urso polar, mas se “descarta” a ideia também. O
resultado disso é um filme com bons momentos (principalmente, a
sequência sobre as tristes fotos da Etiópia) mas que cansa pela
lentidão e do qual ninguém sai empolgado da sala de cinema. Se
Wenders, que é Wenders, não teve condições de “levantar” o
filme, quem dirá Juliano. Como na vida, quando se atribuir uma
função para duas pessoas sem distinguir a que cada um será
responsável, nenhuma delas acaba por fazer algo por completo. Em “O
Sal da Terra” é assim: dois diretores, nenhum autor.
A codireção não é o problema.
Wenders já produzira assim e com sucesso, haja vista os belos “O Céu de Lisboa” (1994), em parceria com o português Manoel de
Oliveira, ou “Além das Nuvens” (1995), feito a quatro mãos com
mestre do cinema italiano moderno Michelangelo Antonioni. Quanto a
Juliano, até temia que o filme pudesse ter mais a “cara” dele e
menos a do parceiro, que poderia ter se associado de forma a dar uns
pitacos providenciais mas, respeitando o ambiente familiar, não
interferiria no resultado final – suposição minha que não se
confirmou. A questão é que não se criou um espaço real de atuação
nem para um, nem para outro.
Seja por influência ou não da
família, de Juliano ou do próprio Sebastião, “O Sal da Terra”,
com um substrato espetacular para que se compusesse um grande filme
que contivesse como temperos elementos instigantes e questionadores,
saiu um produto audiovisual “chapa branca”. Branco como sal em
pitadas esparsas e imperceptíveis ao paladar.
Trailer "O Sal da Terra"
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