“Musicalmente
falando, eu acho que o que estou fazendo é, basicamente, a
continuação de uma estética de linguagem musical que existe no
Brasil desde os anos 60 e 70, mas que de repente ficou meio esquecida
por aqui.”
Lucas Arruda
”Esse
cara é um gênio. Para mim, ele salva esse cenário supermedíocre
de hoje”.
Ed Motta
Ano
passado publiquei aqui no Clyblog uma lista dos meus melhores discos instrumentais brasileiros de todos os tempos. Salvo a minha
ignorância de não listado a obra-prima de Robson Jorge e Lincoln
Olivetti, de 1982 (menção esta aqui com a qual me sinto agora livre
do justo espancamento), um que não incluí, pois ainda não o
conhecia nem o entendia suficientemente devido à sua recência, é
“Sambadi”, de Lucas Arruda, de 2013. Considero, no
entanto, que desfaço agora duplamente a injustiça ao sagrá-lo como
um ÁLBUNS FUNDAMENTAIS, tanto por destacá-lo assim, exclusivamente,
como pelo fato de ser o álbum mais recente sobre o qual já escrevi
entre os meus mais de 40 para esta seção.
O
certo é que esse destaque não se sustenta por um sentimento de
culpa. “Sambadi” é que é muito bom. Primeiro disco deste
talentoso jovem capixaba multi-instrumentista radicado no Rio de
Janeiro, é ao mesmo tempo um trabalho autoral e raro na música
brasileira dos últimos 20 anos como também uma homenagem aos ídolos
da soul music e do samba-jazz brasileiro, forte nos anos 60 e
70 mas gradativamente desvalorizado a partir dos 80. O resultado é
um disco semi-instrumental altamente sofisticado pela habilidade de
Lucas, responsável por praticamente todos os instrumentos (a
bateria, único que ele não toca, é de seu irmão, Thiago Arruda).
As referências vão dos mestres norte-americanos Stevie Wonder,
Curtis Mayfield e George Duke aos brasileiros Tamba Trio, Azimuth,
Marcos Valle, Black Rio, Sambrasa Trio, Ed Motta, os próprios Robson
Jorge, Olivetti, entre outros dentre os que dominam o legado da MPB e
o manancial estético oferecido pelo jazz e o R&B.
“Physis”
dá a cara da abertura com uma linha de sintetizador marcando acordes
que vão e voltam, acompanhados por vocalises de Lucas. Ao fundo, um
clima muito brasileiro se forma com sons da natureza de nossa flora e
fauna. Prenúncio da brasilidade que se sentirá fortemente a partir
dali. Sem dar tempo de respirar, a primeira faixa emenda com “Tamba”,
um samba-funk gostoso e sofisticado no qual Lucas manda ver em
lindos improvisos de seus teclados (piano, Fender Rhodes e
sintetizador). Nos tons médios, a guitarra, numa levada de mexer o
esqueleto, sustenta a base junto com o Rhodes e a batida sincopada da
caixa, enquanto o baixo e o bumbo mantém a seção grave. Afora a
visível homenagem ao famoso trio de bossa-jazz dos anos 60 comandado
pelo pianista Luiz Eça, a sonoridade remete mesmo durante todo o
disco fortemente à Azimuth, outra grande banda da mistura de jazz e
MPB, porém esta, já setentista, com o espírito fusion de
então.
Aliás,
a arquitetura timbrística de “Sambadi” respira o tempo todo a
Rio de Janeiro e a essa atmosfera da Azimuth, e isso por dois
motivos. Primeiro, pelo arranjo e produção serem do próprio Lucas
Arruda, que encerra todas as músicas do disco dentro do mesmo
conceito sonoro: bateria e/ou percussão e/ou programação de ritmo
(uma ou duas juntas no máximo), guitarra, baixo, piano elétrico e
sintetizador ou Fender Rhodes. Fora um ou outro instrumento ocasional
(cavaquinho, violão) ou voz, as texturas do disco são
permanentemente essas, o que lhe dá bastante coesão. E essa
sonoridade é muito Azimith, principalmente no mitológico "Light as a Feather", de 1979, porém adicionando a isso a limpidez dos estúdios digitais de hoje. Segundo: quem executa tudo é apenas um
músico: o próprio autor – fora a bateria, que também vêm de
alguém do sangue Arruda. E com tamanho talento, tudo funciona
redondinho. “Batuque” (outra referência a seus mestres, nesse
caso, o clássico “Batucada Surgiu”, dos irmãos Valle, de 1967)
acelera o ritmo mas mantém a mesma malemolência e elegância. Na
percussão, além da bateria, um agogô joga o ouvinte pra dentro de
um terreiro de samba. Nesta, Lucas investe em solos não só de seus
teclados, mas também da guitarra, tudo sob uma linha de baixo 4/4
maravilhosa a la Ron Carter que lembra as realizadas pelo
baixista norte-americano nas memoráveis gravações com os
brasileiros Airto Moreira, Tom Jobim e Hermeto Paschoal.
A
black music ganha um preito especial em “Who’s that Lady”,
de autoria de O'Kelly Isley, do grupo soul norte-americano
Isley Brothers, das poucas cantadas do disco. Clima sensual e
charmoso nesse AOR que podia rodar em qualquer rádio retrô tipo
Continental que os desavisados achariam que foi gravada nos anos 70.
Sem percussão, apenas no piano elétrico e sintetizador, “Rio
Afternoon”, na sequência, é quase uma vinheta atmosférica como a
inicial “Physis”, demarcando agora o começo de uma nova seção
do disco, como se o CD tivesse o lado B do vinil. Essa segunda parte
começa com a também curta “Na Feira”, um baião hi-tech,
provando o quanto Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira são sofisticados.
Tudo
isso faz cama para a excepcional faixa-título em seus cerca de cinco
minutos de puro desenvolvimento de solos e perícia nas linhas de
base. O espírito nordestino se mantém na marcação metálica de um
triângulo, que vem com os keyboards espaciais do Rhodes e uma
rica linha de guitarra ao estilo Nile Rodgers. Uma programação
eletrônica, associada à bateria e a percussões, aponta o ritmo. O
baixo, entretanto, é um destaque à parte, denotando o quanto Lucas
é ouvinte atento de suas fontes. Com uma letra quase incidental, ele
canta versos que mais fazem dar sentido melódico à ideia de “samba
de” (“Sambadi balada/sambadi quebrada/ sambadi embolada/
sambadi linha do mar...") do que para inventar poesia. A
melodia, swingada e requintada, algo entre o samba e o funk, dá
espaço tanto para os solos quanto para floreios dos instrumentos,
principalmente da guitarra e do Rhodes.
Outra
aberta lembrança à Azimuth, “Carnival” (alusão à “Jazz
Carnival”, sucesso da banda de José Roberto Bertrami) põe ainda
mais groove no samba. Já “Alma Nova” faz cair novamente o
ritmo para aclimatar uma bela bossa-nova romântica, a última com
letra de verdade. Lucas canta com leveza e afinação sobre uma
batida de violão sincopada, característica do estilo, somada a um
acompanhamento na bateria do irmão Thiago digno de um Milton Banana
ou um João Palma. O piano e o Rhodes estão ali funcionando no
arranjo como integradores da faixa ao restante do repertório mesmo
com a estética distinta que a bossa-nova impõe. Para arrematar, uma
nova sequência de “Tamba”, finalizando o álbum novamente com um
instrumental de alto virtuosismo.
Festejado
por gente do calibre de Ed Motta, por quem a admiração é
recíproca, o surgimento de Lucas Arruda vem como um raiar de
esperança na música brasileira contemporânea tão infestada pelo
medíocre, conformada com o mediano e, quando melhor que isso, ainda
ditada por artistas de gerações (bem) anteriores. Ironicamente, o
que acontece com Lucas Arruda é a repetição do que muitas vezes já
se viu em terras tupiniquins: seu trabalho foi apreciado antes no
exterior (no caso dele, Europa e Japão) para depois receber atenção
aqui. Pouca, diga-se de passagem. E se a galera da MPB pós-bossa-bova
está toda na faixa dos 70 anos, o aparecimento de um guri de apenas
32 de idade (30 quando gravou “Sambadi”) é no mínimo alentador.
Com uma estreia luminosa como essa isso se torna ainda mais
promissor. Neste sentido, não parece coincidência que seu novo CD,
lançado em março desse ano (novamente primeiro no exterior) traga
um título consideravelmente simbólico: “Solar”.
Lucas Arruda - Sambadi (Radio Edit)
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FAIXAS:
1.
Physis - 1:15
2.
Tamba, Pt. 1 - 7:10
3.
Batuque - 5:38
4. Who's That Lady (O'Kelly Isley) - 3:40
5. Rio
Afternoon - 1:37
6. Na
Feira - 1:29
7.
Sambadi - 5:18
8.
Carnival - 3:30
9.
Alma Nova (Arruda/Fabricio Di Monaco) - 5:33
10.
Tamba, Pt. 2 - 4:41
todas
as composições de autoria de Lucas Arruda, exceto indicadas.
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OUÇA
O DISCO
por Daniel Rodrigues
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