A genial instalação "Ocio",
que te joga no fundo do poço.
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Minha primeira parada da 10° Bienal do Mercosul foi o
Memorial do Rio Grande do Sul. E já começamos bem! Com cuidado curatorial
refinado, o espaço abriga as obras relativas ao subtema “Biografia da Vida
Urbana”. Certeiro na abrangência do tema e na investigação que propõe, seja no
que se refere ao espaço físico, psicológico e ideológico do ser urbano da
América Latina. Criminalidade, direitos humanos, mídia, arquitetura, política,
civilização. Aspectos que se depreendem naturalmente ao se apreciar e traduzir
as obras expostas.
A crítica e a provocação, formas de expressão intrínsecas da
arte, evidenciam-se de forma contundente quanto aos contrassensos do Estado de
Direito numa trinca especial: díptico de quadros da goiana Shirley Paes Leme,
compostos por fuligem de poluição sobre filtro de ar condicionado de carro;
fotografia do colombiano Andres Ojuela de um homem sendo agredido pela polícia
por ter tentado resgatar algo que lhe havia sido roubado; e a simbólica
bandeira “parodiando” o “verde-louro” da flâmula brasileira, que ostenta não os
ditos “Ordem e Progresso”, mas “Complexo do Alemão”, numa clara referência à
controversa ocupação das favelas do Rio de Janeiro.
O sarcasmo de Cildo Meireles
com a icônica marca. |
Na mesma linha, porém consideravelmente mais sarcástica,
outro trio de obras critica um dos símbolos do capitalismo e da midiatização: a
Coca-Cola. O craque Cildo Meireles é um deles, compondo em três garrafas contour de vidro elementos de sua
percepção – numa delas, explica didaticamente como fazer um coquetel Molotóv.
Junto, uma impactante impressão sobre lâmina do colombiano Antonio Caro,
igualmente parafraseando, ao reescrever-lhe sobre a logotipia icônica da marca
o nome de seu país. Completando, um pequeno mas altamente expressivo quadro de
outra mente privilegiada da arte moderna brasileira, Paulo Bruscky: “Fax
Performance”, autorretrato de 1985 em que se coloca na pele de um super-herói
urbano meio homem-bomba (atualíssimo, infelizmente).
A ótima “Multidão”, do paulista Cláudio Tozzi (acrílica
sobre compensado, de 1968), traz o frescor da arte pop com o uso discursivo da
publicidade e do cinema. Igualmente impressionante, principalmente em termos de
concepção/concisão, é a instalação-quadro de Waldemar Cordeiro
“Subdesenvolvido”, de 1964, em que uma constituição em madeira aglutina em si
todos os móveis de um imaginário cômodo, como uma versão 3D mas subdesenvolvida
e reprimida (não esqueçamos que, naquele ano, se marcava a entrada da Ditadura
Militar no Brasil) de “Quarto em Arles”, de Van Gogh – sem prescindir, claro, da expressiva distorção das formas.
Arte-pop e denúncia na obra de Cláudio Tozzi. |
Também incisiva e denunciadora é a instalação “Stelar”, do
peruano Giancarlo Scaglia, a qual cumpre aquele que é um dos fundamentos da
arte: a ressignificação. Isso porque resgata um dos momentos mais tristes e
sangrentos da história peruana recente ao perscrutar as ruínas da de uma antiga
cadeia de presos políticos, palco de sangrentos massacres de presos do grupo
separatista Sendero Luminoso pela força militar do governo, hoje desativada. O
artista apronta enormes telas feitas a partir dos furos das balas dos
fuzilamentos nas paredes de concreto do presídio (somando a isso os próprios
resquícios de pedras do complexo) e, como um simbólico negativo, pinta de preto
ao redor, formando uma imagem que remete a uma constelação, mas também
apontando para o vazio da memória e dos desaparecidos políticos. Em texto, os
curadores anotam: ”Frente ao trauma, o
artista articula um potente registro visual das ruínas da tragédia que une
representação, presença e ausência”. Pungente pra caramba.
"Declaration" do norte-americano
naturalizado hondurenho, Jonas.
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Há uma sequência relativa ao espaço urbano, apontando para
várias ideias e leituras no que se refere à sociabilidade, controle e
emancipação. Primeiro, uma série de fotos P&B exaltando a arquitetura
modernista de várias cidades como a São Paulo e Montevidéu dos anos 70, as
quais dialogam com e estética da cidade-sede da Bienal, gerando uma identidade
urbana através de um do legado artístico-funcional da Arquitetura. Noutra, a
que abre o nicho, o deboche de “Declaration”, do norte-americano residente de
Honduras Paul Ramirez Jonas, feito com trompete e bandeira de algodão escrito
“Open”. Também, o interessante paralelo entre o que se conquista enquanto
território, no óleo do catarinense Victor Meirelles “Visão de Desterro – atual
Florianópolis”, de 1851 (e mais antiga obra dali) e aquilo que configura – ou
se perde – como espaço concreto na tela de Eduardo Haesbert (pastel seco sobre
tela e papel): fria, tecnicamente arquitetônica e quase apenas um esboço.
Traz também uma das obras em metal de Lygia Clark, das artistas
plásticas celebradas dessa Bienal. Mas impressionante mesmo (não só a mim: a
maioria dos que veem saem com tal impressão) pela criatividade, originalidade e
expressividade, a instalação “Ocio”, do chileno Ivan Navarro. Composta de
tijolos, espelho, energia elétrica e a palavra-título escrita em neon, a qual
se reproduz ao infinito para baixo, como num poço sem fim. Genial.
Faltou apenas um pedacinho do Memorial para visitar, o que
rapidamente complemento depois. Enfim, um começo de visitas à Bienal bem
positivo. Expectativas pelas próximas exposições.
Díptico de Shirley Paes Leme usa poluição da cidade como instrumento de discurso. |
Composição que evidencia os contrassensos da sociedade. |
Coca-Cola no âmago da crítica ao capitalismo. |
A arte via aérea de Paulo Brusky. |
O Van Gogh subdesenvolvido de Cordeiro. |
A arquitetura como meio de identidade. |
A cidade conquistada e acidade possível. |
"Bicho", uma das peças de Lygia Clark na Bienal |
À esquerda, a impressionante instalação de Scaglia que remonta a guerra civil no Peru e à direita o detalhe da obra mostrando os furos de bala. |
por Daniel Rodrigues
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