“Se o amor precisa de um coração,
‘Running on Empty’ deixa claro que
a estrada não é um bom lugar
tanto para
encontrar
quanto para manter um.”
Paul Nelson,
para a Rolling Stone,
quando do
lançamento do disco
Quem me conhece há bastante tempo sabe que eu sou fã total do som da
Califórnia anos 70, a “Mellow Máfia”, como eles chamam por lá, formada por
James Taylor, Carly Simon, Warren Zevon (se bem que este era nada “mellow”), Eagles e este ilustre
desconhecido no Brasil: Jackson Browne,
um dos meus preferidos. Em 1978, por incrível que pareça, um disco deste cara
chegou ao Brasil embalado pelo sucesso nos States. Fui na Yes Discos da Rua da
Praia (lembram?), comprei e me deliciei tanto que ele hoje está aqui, na lista
dos meus discos favoritos.
A história deste disco começa uns anos antes. Browne, um dos
compositores mais prolíficos daquela região, havia lançado o disco “The
Pretender”, um sucesso absoluto de crítica. Como de praxe na época, o
lançamento do disco vinha seguido de uma turnê. Só que Browne resolveu reverter
as expectativas e gravar ao vivo um trabalho de músicas inéditas ou que não
estavam em "The Pretender". Aí surge “Running on Empty", um disco sem precedentes na história do
rock.
A faixa-título abre o disco com Browne usando a metáfora da estrada
para compará-la com a vida. "Olhando
pra estrada, correndo sobre minhas rodas / olhando pra trás e vendo os anos que
ficaram pra trás como muitos campos de verão/ em 65 eu tinha 17 e corria
um-por-um / Não sei onde estou correndo agora, só estou correndo".
Mais adiante, Browne continua suas indagações: "Você tem de fazer o que pode pra manter seu amor vivo/ e tentar
não confundi-lo com o que faz para sobreviver/ Em 69 eu tinha 21 e dizia que a
estrada era minha/ Não sei quando aquela estrada se tornou a que estou
agora". Com um refrão grudante, os vocais de Rosemary Butler e Doug
Heywood e as guitarras lancinantes de Danny Kortchmar e David Lindley, o disco
tem um ótimo começo. O estilo "70's California" está todo ali.
Na sequência, o bardo engata uma composição de Danny O'Keefe chamada,
apropriadamente, "The Road". Durante todo o disco, Browne vai fazer
uma espécie de inventário sobre a vida do músico na estrada. Nela, as alegrias
e as agruras de estar em movimento sempre acabam por transformar a vida destas
pessoas. "Estradas e salões de
baile/ uma boa canção te leva longe/ Você escreve sobre a lua/ e sonha com as
estrelas... café pela manhã cocaína na tarde/ você fala sobre o tempo e ri
sobre os quartos de hotel/ ligações de longa distância/ pra dizer como você
está/ você esquece as perdas e exagera as vitórias/ Mas quando você para e os
deixa saber que chegou lá/ é apenas mais uma cidade na estrada". A
curiosidade é que Browne começa a canção numa gravação feita num quarto de
hotel e, quando chega na metade, ele mixa com uma gravação ao vivo. A estrada
em dois tempos.
"Rosie", composta por Browne e seu gerente de tour, Donald Miller, conta uma história
bem conhecida de quem está excursionando: a da groupie, aquela fã feminina que persegue as bandas. Browne se
acompanha ao piano num backstage e
tem as harmonias vocais de Heywood e do fotógrafo da excursão, o lendário Joel
Bernstein. "Ela estava no
descarregamento/ quando os caminhões chegaram/ ela estava farejando como se
fosse uma cachorrinha nova/ Não foi difícil falar com ela/ parecia que não
tinha onde ir/ então dei-lhe um passe para que ela pudesse ver o show".
Depois, o astro pop se compadece da groupie
e lhe diz "Rosie, você esta bem,
você está com meu anel/ quando você me abraça forte, Rosie este sou eu/ Quando
você desliga a luz, eu tenho de pegar de volta/ Parece que somos nós dois de
novo esta noite, Rosie". Nesta época, pré-Aids, as groupies terminavam sempre na cama dos
músicos.
"You Love the Thunder" retorna com o clima Califórnia, com
solo de Lindley e uma letra que fala da companheira de um músico sempre com o
pé na estrada. "Quando você olha
sobre seu ombro/ e vê a vida que deixou pra trás/ Quando pensa que acabou chega
a pensar/ O que é que segura sua vida tão perto da minha?/ Você ama o trovão,
você ama a chuva/ O que você vê revelado dentro da raiva vale a dor/ E antes
que a luz esmoreça e você se entregue/ tem um segundo pra olhar pro lado negro de um
homem". No final, a marcha inexorável de quem está na estrada vence
tudo: "Você sabe da sua fome como
sabe o seu nome/ Tenho o seu número, se ele for o mesmo/ você pode sonhar/ mas
não vai conseguir voltar o caminho em que veio".
Como o disco foi gravado em 1977/78, a cocaína era a droga do momento.
E na estrada, então, era uma loucura. Jackson Browne adaptou um clássico blues
do Reverendo Gary Davis e fez sua própria versão de "Cocaine": "Você pega Sally, eu pego Sue/ não tem
diferenças entre as duas/ Cocaína, correndo no meu cérebro... ontem à noite,
passava das quatro/ Ladanyi (o engenheiro de som da banda) veio ao meu quarto e perguntou/ ‘onde está a
cocaína’/ eu disse que estava correndo em meu cérebro". Mas toda esta
orgia tem seu preço: "Estava falando
com meu médico lá no hospital/ E ele disse 'filho, aqui diz que tu tens 27, mas
é impossível/ Cocaína... você parece ter 45'". Mesmo consumindo,
Browne sabia dos riscos.
O lado 2 do LP começa com um tributo aos caminhoneiros composto pelo
guitarrista Danny Kortchmar chamado "Shaky Town". E fala da relação
dos músicos com estes profissionais. "Presenciei
estes shows únicos/ deve ter tocado em milhares de bandas/ Mas estou aqui hoje,
amanhã já estarei longe/ tenho visto caras mostram seus lados negros/ tenho os
visto morrer apenas por orgulho bobo/ E estes motoristas sempre pedem pra ouvir
a mesma canção... e segui aqueles sinais na estrada/ e corri sobre aquelas
linhas brancas/ como aqueles motoristas esta velha estrada eu chamo de
minha". Esta canção foi gravada num quarto de hotel. Browne se esmera
em mostrar que tudo pode ser feito na estrada.
"Love Needs a Heart" é a música romântica do disco, composta
por ele, Valerie Carter e seu amigo Lowell George, do grupo Little Feat, que
morreria um ano depois de overdose. E a melancolia já começa na primeira
estrofe: "Talvez a coisa mais
difícil que jamais eu fiz/ foi partir pra longe de você/ Deixando pra trás a
vida que nós começamos/ eu me dividi em dois/ Orgulhoso e sozinho, frio como
uma pedra/ Descendo aquela colina dentro da noite/ Eu podia ver a surpresa e a
mágoa nos seus olhos/ atrás de cada luz piscando nas cidades/ O amor precisa de
um coração e preciso saber/ se o amor precisa de um coração como o meu".
A backing Rosemary Butler tem
destaque nesta canção, assim como o tecladista Craig Doerge, que faz um solo de
mini-moog bem no clima triste
inspirado pela letra. E a tristeza continua: "Orgulhoso e sozinho, frio como uma pedra/ Tenho medo de sentir as
coisas que sinto/ Posso chorar com os melhores, posso descansar com o resto/
mas nunca sei quando é real/ E pode ser a coisa mais difícil que eu tenha
feito/ mas longe de tudo que eu esperava encontrar/ onde está o coração que
está esperando o meu?/ Espero que me encontre a tempo". A vida do
músico na estrada impede que ele tenha um relacionamento normal. E é isso que
Browne destaca nesta canção, uma das mais lindas do disco.
O tédio das viagens está também em "Nothing But Time",
gravada dentro de um ônibus, com o baterista Russ Kunkel tocando caixas e hi-hat. No refrão, Browne fala do que
acontece durante uma viagem e o vazio de se deslocar de um lugar para outro: "Tenho uma garrafa de vinho (passe
adiante)/ tenho uma carreira partida (ainda estou sóbrio)/ não tem nada além de
tempo entre este Silver Eagle/ e aquela estrada pra New Jersey". O
interessante é que os ruídos do ônibus são audíveis durante a gravação, feita
com piano elétrico, violões e as caixas de papelão de Kunkel.
Pra fechar, Jackson Browne escolheu o momento mais dramático de uma tour musical: a hora em que tudo termina
e começa o carregamento para a próxima cidade. "The Load-Out" é
exatamente isso. "Agora que os
lugares estão vazios/ deixe os roadies
subirem no palco/ empacotando e desmanchando tudo/ Eles são os primeiros a
chegar e os últimos a sair/ trabalhando por um salário mínimo/ Eles vão arrumar
tudo numa outra cidade/ esta noite o público foi ótimo/ Esperou na fila/ E
quando levantou, fez o show/ E isso foi ótimo/ Mas posso ouvir o som de portas
batendo e cadeiras sendo fechada / E esse é um som que eles nunca vão
ouvir". A canção segue contando a desmontagem do espetáculo, a ida
para outro lugar, a remontagem e o recomeço. "Mas a banda está no ônibus/ eles estão esperando pra ir/ Temos de
viajar a noite inteira pra fazer um show em Chicago/ Ou Detroit, eu não sei/
fazemos muitos um atrás do outro/ E essas cidades todas se parecem/ Passamos o
tempo em nosso quartos de hotel/ e circulamos pelos backstages/ até que estas luzes se acendam e ouvimos a
multidão e lembramos porque viemos". Juntamente com esta dramaticidade,
Browne encontra espaço para a alegria de tocar, de fazer música, de trazer
esperança e felicidade pra quem está assistindo. "Vocês tem o poder sobre o que fazemos/ vocês podem sentar e
esperar ou podem nos animai / venham junto, cantem a canção/ vocês sabem que
não pode dar errado/ porque quando o sol da manhã começar a surgir/ Vocês vão
acordar em suas cidades/ Mas nós estaremos programados para aparece / milhares
de milhas longe daqui".
Quando parece que tudo terminou, Browne e sua banda redescobrem
"Stay", uma música de Maurice Williams que se encaixa perfeitamente
no clima de encerramento do disco, pedindo: "Pessoal,
fique mais um pouquinho/ Queremos tocar só mais um pouquinho/ Agora o produtor
não interessa/ o sindicato não interessa/ se ficarmos mais um pouquinho/ vamos
jogar tudo pra cima/ e vamos cantar mais uma canção". Brilham Browne,
Butler e uma aparição engraçada do guitarrista David Lindley fazendo um vocal
jocoso.
"Running on Empty" é um disco que tem marcado em sua testa o
carimbo inconfundível do som dos cantores e compositores californianos dos anos
70. Quem gosta, como eu, se delicia com as frequências arredondadas da bateria
mixadas com Aphex Aural, um dispositivo que "limpava" o som mais sujo
e deixava tudo bem clean (se não for
exatamente isso, vou perguntar ao meu amigo Marcos Abreu , que ele deve ter uma
explicação técnica embasada muito melhor). Pra quem não conhece – e eu acho que
muita gente jamais ouviu este disco –, ele está aqui.
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FAIXAS:
1. Running On Empty -
5:20
2. The Road (Danny
O'Keefe) - 4:50
3. Rosie (Jackson
Browne/Donald Miller) - 3:37
4. You Love The Thunder - 3:52
5. Cocaine (Rev. Gary
Davis) - 4:55
6. Shaky Town (Daniel Kortchmar) - 3:36
7. Love Needs A Heart (Browne/Lowell
George/Valerie Carter) - 3:28
8. Nothing But Time (Browne/Howard
Burke) - 3:05
9. The Load-Out (Browne/Bryan
Garofalo) - 5:38
10. Stay (Maurice
Williams) – 3.28
todas as composições de Jackson
Browne, exceto indicadas.
OUÇA O DISCO:
por Paulo Moreira
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