Em “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, o barro é um elemento
altamente simbólico para o entendimento da criação do homem e de sua relação
com as divindades. Quando o ardiloso Prometeu, filho do titã Jápeto com Clímene,
incumbido de originar os homens, considerou insuficiente apenas água e terra
para compô-los, roubou, para fúria de Zeus, o fogo dos deuses para completar a
tarefa, estava feita bagunça. Suficiente para Zeus mandar criar Pandora e esta
levar consigo a caixa com as piores características que os deuses podiam ter e
dá-las de presente... aos homens. Assim os mortais ficaram nesse limbo:
forjados pelo barro fundido, amaldiçoados pelo Olimpo. Afetado por suas
imperfeições, o homem jamais soube (ou saberá) desfazer-se desse mal-estar
entre o divino e o mundano. É dessa tensão mitológica que provém a obra de um
dos mais representativos e sui generis artistas brasileiros: o pernambucano
Francisco Brennand. Parte de sua vastíssima obra está em exposição até setembro
no Santander Cultural na mostra "Senhor da várzea, da argila e do
fogo", com curadoria de Emanoel Araujo.
Num universo atemporal que mistura misticismo, personagens
históricos, divindades, natureza e sexo, a obra de Brennand, atualmente com 89
anos, é resultado de mais de 40 anos de trabalho incessante na Oficina Cerâmica
e o Parque das Esculturas Francisco Brennand, em Pernambuco, localizados na antiga
olaria de sua família, que o artista adaptou e reconstruiu como ateliê e espaço
expositivo. Esse mundo à parte é mínima mas competentemente reproduzido no hall
do Santander, principalmente pelos grandes painéis com fotos da oficina, que
ambientam a região de várzea das redondezas de Recife. Mas o que coloca o
visitante mesmo em contato com objeto de Brennand são, obviamente, as obras.
De uma robustez espantosa, o que se vê de início são
esculturas, todas dos anos 70, de animais típicos da campina (lagarto, jacaré,
molusco). Blocados. Tesos. A técnica de cerâmica vitrificada, de grande
dificuldade de execução, impressiona ainda mais na ainda mais impressionante
“Serpente” (2014/15), composta de três grandes partes (cauda, cabeça e corpo),
que, viva, parece submergir por debaixo da terra para hastear a cabeça para
fora em posição de ataque. Surpreende, igualmente, a organicidade de “Árvore da
Vida” (1977), com suas formas arredondadas e volumes sobrepostos – que, não à
toa, remetem às formas erotizadas do corpo humano (sim, aquele do barro e do fogo
pecador de Prometeu). Pois aí está uma das mais marcantes características
propostas de Brennand: formas que, diretamente humanas ou não, trazem, por mais
de um viés, a questão da essência através da lascívia, da gênese, da criação.
A visualização de vulvas, pênis, testículos, seios, glúteos
e afins é determinante para a percepção de obras como “La tour de Babel” (1978),
“Ídolo” (1878), “Molusco” (1977), “Origem do Mundo” (1984) ou a série “Fruto”, nas
quais o fálico se integra e interfere decisivamente. Quando não
necessariamente, o conceito se denota em caráter mais uterina, a exemplo das
formas ovulares da série “Ovo” e “Ovo da Serpente” ou da instalação “250 Ovos Brancos”.
Por mitológico se entende tudo que ganha formato na argila
de Brennand, desde o essencialmente olímpico (as sofridas “Ofélia”, 1978;
“Diana Caçadora”, 1980; “Antígona”, 1978), os mitos cristãos (os embaraçados “Adão”
e “Eva”, 2015), os mitos da história (um sangrento “Calígula”, 1981; uma altiva
“Joana D’Arc Guerreira”, 1978) e até da própria existência mundana com suas
mitologias estéreis. Uma abordagem perpassada pela crítica, haja vista a
disformia alienígena de “Guilherme Tell” (1977) ou a de “O Sobrevivente” (1995),
quando não pontuada por certo desprezo pela espécie humana, como no animalesco
“Primeira refeição” (1995). De fato, o hibridismo homem/bicho – bem como as
implicações disso – é uma leitura presente no imaginário de Brennand, haja
vista seu “Pã” (1978), misto de verme e
falo ereto.
Ainda das esculturas, outra arrebatadora é “Leda e o Cisne”
(1980), de suas mais conhecidas obras em que expressa, num tempo, a
sensualidade das formas da mulher e o desejo carnal, a leveza da feminilidade e
o equilíbrio da escultura clássica. Como no duo “Frade” (cerâmica vitrificada
queimada em baixa temperatura, que lhes dá a colocação esbranquiçada), em que
estes ostentam pontiagudas tetas por debaixo dos hábitos, as formas de Leda não
pronunciam apenas seu gênero, uma vez que sua perna esticada remete claramente
a um pênis também. Sem o apelo sexual tão direto, os bustos, todos elevados em
altivos pedestais detalhadamente ornamentados um a um, são de comparáveis
belezas. Em “Palas Atenea” (1987), incrível, de tão expressivo, tem-se a
impressão de estar sendo vigiado por aquele guerreiro medievo. Destaque ainda
para a triste “Ofélia”, uma inexpressiva “Maria Antonieta” (1993) e “Lara”
(1978), outra cuja face exprime um sofrimento sensível. Todas mortas, parecem a
quem vê cadáveres.
Muito bonitas também suas telas a óleo, demonstrando a
perícia do desenho. De pincelada impositiva, compõe aquilo que deseja, sem
espaço para aleatoriedades. E as cores não fogem quase nunca dos tons terrosos
da argila, quando muito do verde da mata. Ideias visíveis nos quadros “O Olho
de Deus” (s/d), “O Rio” (1966) e “Árvore da Vida” (1980).
Desprovida da religiosidade clássica, a pagã obra de
Brennand parece fugir também dos estereótipos tanto em conceito quanto em
estética para forjar uma mitologia dos mortais. Suas cerâmicas e óleos são tão
inclassificáveis quanto os estilos de Van Gogh na pintura ou de Augusto dos
Anjos na poesia. Impossível alocá-lo dentro de uma linha ou escola. Por
manipular a matéria que compõe os seres da terra, sua obra é marcada pelos
elementos de vida e morte, os quais lhe fazem parte de um mesmo material. O que
leva a entender que, num ato não de provocação como o de Prometeu, mas de
coragem, Brennand tenha se embrenhado no desafio de cumprir aquilo que aquele
não completou. Incompletude esta que, talvez, seja minimamente recuperada a
cada vez que se admira alguma reconciliadora obra deste elevado espírito vindo,
quem sabe, não das várzeas do nordeste brasileiro, mas da Tessália grega.
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Exposição
“Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo”,
de Francisco Brennand
local: Santander
Cultural (Sete de Setembro, 1.028, Praça da Alfândega – Centro - Porto Alegre)
período: até 4 de
setembro
de terça a
sábado, das 10h às 19h, e domingo, das 13h às 19h. (fechado nos feriados)
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