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quarta-feira, 6 de julho de 2016

Exposição "Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo" de Francisco Brennand - Santander Cultural - Porto Alegre/RS









"Leda e o Cisne", obra-prima
Em “Prometeu Acorrentado”, de Ésquilo, o barro é um elemento altamente simbólico para o entendimento da criação do homem e de sua relação com as divindades. Quando o ardiloso Prometeu, filho do titã Jápeto com Clímene, incumbido de originar os homens, considerou insuficiente apenas água e terra para compô-los, roubou, para fúria de Zeus, o fogo dos deuses para completar a tarefa, estava feita bagunça. Suficiente para Zeus mandar criar Pandora e esta levar consigo a caixa com as piores características que os deuses podiam ter e dá-las de presente... aos homens. Assim os mortais ficaram nesse limbo: forjados pelo barro fundido, amaldiçoados pelo Olimpo. Afetado por suas imperfeições, o homem jamais soube (ou saberá) desfazer-se desse mal-estar entre o divino e o mundano. É dessa tensão mitológica que provém a obra de um dos mais representativos e sui generis artistas brasileiros: o pernambucano Francisco Brennand. Parte de sua vastíssima obra está em exposição até setembro no Santander Cultural na mostra "Senhor da várzea, da argila e do fogo", com curadoria de Emanoel Araujo.
Num universo atemporal que mistura misticismo, personagens históricos, divindades, natureza e sexo, a obra de Brennand, atualmente com 89 anos, é resultado de mais de 40 anos de trabalho incessante na Oficina Cerâmica e o Parque das Esculturas Francisco Brennand, em Pernambuco, localizados na antiga olaria de sua família, que o artista adaptou e reconstruiu como ateliê e espaço expositivo. Esse mundo à parte é mínima mas competentemente reproduzido no hall do Santander, principalmente pelos grandes painéis com fotos da oficina, que ambientam a região de várzea das redondezas de Recife. Mas o que coloca o visitante mesmo em contato com objeto de Brennand são, obviamente, as obras.
De uma robustez espantosa, o que se vê de início são esculturas, todas dos anos 70, de animais típicos da campina (lagarto, jacaré, molusco). Blocados. Tesos. A técnica de cerâmica vitrificada, de grande dificuldade de execução, impressiona ainda mais na ainda mais impressionante “Serpente” (2014/15), composta de três grandes partes (cauda, cabeça e corpo), que, viva, parece submergir por debaixo da terra para hastear a cabeça para fora em posição de ataque. Surpreende, igualmente, a organicidade de “Árvore da Vida” (1977), com suas formas arredondadas e volumes sobrepostos – que, não à toa, remetem às formas erotizadas do corpo humano (sim, aquele do barro e do fogo pecador de Prometeu). Pois aí está uma das mais marcantes características propostas de Brennand: formas que, diretamente humanas ou não, trazem, por mais de um viés, a questão da essência através da lascívia, da gênese, da criação.
A visualização de vulvas, pênis, testículos, seios, glúteos e afins é determinante para a percepção de obras como “La tour de Babel” (1978), “Ídolo” (1878), “Molusco” (1977), “Origem do Mundo” (1984) ou a série “Fruto”, nas quais o fálico se integra e interfere decisivamente. Quando não necessariamente, o conceito se denota em caráter mais uterina, a exemplo das formas ovulares da série “Ovo” e “Ovo da Serpente” ou da instalação “250 Ovos Brancos”.
Por mitológico se entende tudo que ganha formato na argila de Brennand, desde o essencialmente olímpico (as sofridas “Ofélia”, 1978; “Diana Caçadora”, 1980; “Antígona”, 1978), os mitos cristãos (os embaraçados “Adão” e “Eva”, 2015), os mitos da história (um sangrento “Calígula”, 1981; uma altiva “Joana D’Arc Guerreira”, 1978) e até da própria existência mundana com suas mitologias estéreis. Uma abordagem perpassada pela crítica, haja vista a disformia alienígena de “Guilherme Tell” (1977) ou a de “O Sobrevivente” (1995), quando não pontuada por certo desprezo pela espécie humana, como no animalesco “Primeira refeição” (1995). De fato, o hibridismo homem/bicho – bem como as implicações disso – é uma leitura presente no imaginário de Brennand, haja vista seu “Pã” (1978), misto de  verme e falo ereto. 
Ainda das esculturas, outra arrebatadora é “Leda e o Cisne” (1980), de suas mais conhecidas obras em que expressa, num tempo, a sensualidade das formas da mulher e o desejo carnal, a leveza da feminilidade e o equilíbrio da escultura clássica. Como no duo “Frade” (cerâmica vitrificada queimada em baixa temperatura, que lhes dá a colocação esbranquiçada), em que estes ostentam pontiagudas tetas por debaixo dos hábitos, as formas de Leda não pronunciam apenas seu gênero, uma vez que sua perna esticada remete claramente a um pênis também. Sem o apelo sexual tão direto, os bustos, todos elevados em altivos pedestais detalhadamente ornamentados um a um, são de comparáveis belezas. Em “Palas Atenea” (1987), incrível, de tão expressivo, tem-se a impressão de estar sendo vigiado por aquele guerreiro medievo. Destaque ainda para a triste “Ofélia”, uma inexpressiva “Maria Antonieta” (1993) e “Lara” (1978), outra cuja face exprime um sofrimento sensível. Todas mortas, parecem a quem vê cadáveres.
Muito bonitas também suas telas a óleo, demonstrando a perícia do desenho. De pincelada impositiva, compõe aquilo que deseja, sem espaço para aleatoriedades. E as cores não fogem quase nunca dos tons terrosos da argila, quando muito do verde da mata. Ideias visíveis nos quadros “O Olho de Deus” (s/d), “O Rio” (1966) e “Árvore da Vida” (1980).
Desprovida da religiosidade clássica, a pagã obra de Brennand parece fugir também dos estereótipos tanto em conceito quanto em estética para forjar uma mitologia dos mortais. Suas cerâmicas e óleos são tão inclassificáveis quanto os estilos de Van Gogh na pintura ou de Augusto dos Anjos na poesia. Impossível alocá-lo dentro de uma linha ou escola. Por manipular a matéria que compõe os seres da terra, sua obra é marcada pelos elementos de vida e morte, os quais lhe fazem parte de um mesmo material. O que leva a entender que, num ato não de provocação como o de Prometeu, mas de coragem, Brennand tenha se embrenhado no desafio de cumprir aquilo que aquele não completou. Incompletude esta que, talvez, seja minimamente recuperada a cada vez que se admira alguma reconciliadora obra deste elevado espírito vindo, quem sabe, não das várzeas do nordeste brasileiro, mas da Tessália grega.
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Exposição “Senhor da Várzea, da Argila e do Fogo”,
de Francisco Brennand
local: Santander Cultural (Sete de Setembro, 1.028, Praça da Alfândega – Centro - Porto Alegre)
período: até 4 de setembro
de terça a sábado, das 10h às 19h, e domingo, das 13h às 19h. (fechado nos feriados)



A cabeça da enorme cobra de argila

O minucioso e blocado Jacaré

A placa cerâmica Peixe


Volumes que se assemelham às formas humanas

O fálico La Tour de Babel

O ídolo larva


Entre os frutos


Interagindo com os ovos

Ovo da Serpente

Diana Caçadora

O Tímidos Adão e Eva

Calígula coberto de sangue

Pã, misto de verme e pênis

O frade com seus seios pontiagudos

O grito da Leucósia

O expressivo rosto cadavérico de Lara

O Olho de Deus

Os tons de terra também nos óleos das tintas

Leocádia anda ao lado da obra-prima
Leda e o Cisne

Este blogueiro e Brennand
olhando para a foto