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terça-feira, 9 de agosto de 2016

Exposição “Diálogos no Tempo”, de Iberê Camargo - Fundação Iberê Camargo – Porto Alegre/RS









Autorretrato dos anos 40
em ponta-seca
Mais de uma vez estive na Fundação Iberê Camargo e nunca escrevi de fato sobre o artista que lhe dá nome. Isso se torna mais alarmante considerando que, mesmo com exposições visitantes, as quais geralmente me moveram a ir a este centro cultural, há sempre uma de Iberê. Variável, mas sempre uma dele. E não apenas lá: antes do belo prédio da Fundação ser erguido, em 2008, naquele artístico desenho do arquiteto português Álvaro Siza, vi uma ótima exposição individual de Iberê Camargo no Museu de Artes do Rio Grande do Sul (Margs), nos idos de 1999, bem como presenciei obras dele em outras coletivas em Porto Alegre e no Rio de Janeiro. Referência da arte moderna no Brasil no século XX, talvez justamente pela complexidade de sua extensa obra – a qual percorre 50 anos de produção ininterrupta, seja pela via do figurativo ou abstratismo, pela forma definida ou o mais truculento borrão – tenha inconscientemente relutado até então de fazê-lo.

Pois, depois de tanta postergação, nada mais apropriado agora, eu, que admiro Iberê Camargo em todas as suas fases, falar justo de uma exposição que percorre vários dos momentos da trajetória do artista. “Diálogos no Tempo”, com curadoria de Angélica de Moraes, é uma investigação sobre o DNA do trabalho deste gaúcho de Restinga Seca. Foram colocados lado a lado trabalhos que estabelecem segmentos de variados períodos de sua produção, que se desdobraram em infinitas combinações de modo a evidenciarem as características da contribuição estética deste autor. São vistos, desde os óleos naturalistas dos anos 40, que muito lembram Van Gogh na coloração vibrante e na pincelada espaçada, até o fantasmagórico lamaçal de tintas do figurativismo dos anos 80, época de ápice criativo mas também de rendição ao negror psicológico e espiritual após a vivência de uma tragédia na vida pessoal.

Não à toa, de fato, os anos 80 são o vértice da seleção curatorial, uma vez que trazem, entre as 116 obras expostas – que assombrosamente passam pelas mais diferentes técnicas, da pintura a gravura em metal, da serigrafia à litografia, do desenho a charges e estudos –, uma visão bastante próxima do que realmente Iberê era (ou se tornou). O retorno à figura humana dessa época, após anos de não-figurativismo iniciados nos anos 50 com os marcantes e simbólicos carretéis, resumem o aspecto fundamental de toda sua obra: a concisão do traço. Seja na opulenta textura das camadas de tinta, na obsessiva busca pela reminiscência da cor sobre o fundo escuro ou na disformia arranjada em meio ao material pastoso, está lá o traço, o desenho como base.

Isso está presente desde a entrada da mostra nos autorretratos de períodos e técnicas diferentes: da ponta-seca ou nanquim (ambas de 1943), passando pelo óleo sobre tela (1942 e 1987) ou pastel oleoso sobre lixa (1985), há o cuidado com a representação da expressão através da ideia que se forma. Cada quadro transmite cargas de emoção. Os diversos estudos a grafite, seja treinando a elaboração das formas de manequins, objetos ou paisagens, ganham uma dimensão especial nesta mostra uma vez que suas existências enquanto processo são inseridas dentro de um contexto de “work in progress”, equiparando-os às telas “finalizadas” em que, invariavelmente, viriam a ajudar a formar.

A importância dada ao estudo é ainda mais sentida nos que levam à formação de séries como a “Desastre”, também dos anos 80, em que o artista gaúcho primeiro experimenta, seja a grafite, lápis ou mesmo esferográfica, para, aí sim, compor a pastel. Até mesmo na excelente série de serigrafias, onde se desfaz da densidade da camada de tinta, a prevalência do traço está ali.

A inquietude permanente de Iberê o estimulava a, como todo artista de verdade, caminhar na direção da superação de si mesmo. Aquilo que biograficamente se observa a título de avanço técnico, em grandes artistas como ele passa a representar, muitas vezes, a própria subversão de linguagem. O respeito ao traço, assim, por ora vai sendo desafiado por Iberê, numa maneira também de descolar-se de seu próprio tempo. Presente, mas cada vez mais metafórico e pessoal. As telas “Composição” (1980 e 1983), bem como os sem título feitos a giz de cera (1980 e 1982), trazem os mesmos carretéis perscrutados por cerca de 30 anos quase ausentes em formato, já absorvidos pelo filtro do artista maduro. Por vezes, lembram um corpo humano; noutros, o cálice bento católico ou o pecaminoso da luxúria. “Carretéis com figura” (1984) sintetiza essa ideia de profusão entre imaginário e concretude, entre o anacrônico e a memória.

Tempo e forma de fato confundem-se em Iberê, inclusive nas alusões. Guignard, com quem estudou nos anos 40, Picasso, pelo amplo paradigma oferecido que vai do cubismo à abstração, e Bacon, a quem a comparação é inevitável, são três referências de épocas distintas que passam por seu aprendizado. O pintor inglês, por exemplo, faz-se conceitualmente presente no ótimo duo “Manequim” (óleo sobre madeira, 1983), haja vista a semelhança da deformação humana como embaraço, como crítica da existência. Guignard, no apreço pelo detalhismo das primeiras paisagens, como o do belo óleo de 1944.

É possível sentir em telas como “Diálogo”, “Fantasmagoria” e “Ciclistas”, três de suas obras-primas (todas de 1987), o ordenando do caos pictórico forjado e perscrutado pelo artista, que cria e resolve e volta a desmanchar e criar novamente. Incessantemente, como que querendo desfazer o tempo para, em seguida, vencido, construí-lo novamente. A sensação que fica é a de que, mesmo “concluída”, nenhuma tela é, de fato, redentora, cabível, suficiente. E que jamais, dada a lúcida compulsão que o levava a tentar capturar o tempo de maneira tão pungente, uma obra restaria acabada. Assim, a ligação entre uma obra e outra é intrínseca, como se mais do que continuações de um mesmo trabalho (o que o é até em termos biográficos) representam pedaços do artista despejados como um lodo emocional que se desgruda do corpo para se transformar em arte.

Pelo pouco que aqui comento, é possível captar o porquê de minha inconsciente resistência em falar em Iberê Camargo e sua obra, ora tão lírica, ora tão perturbadora. Percorrer qualquer galeria com suas telas e desenhos é dar um passo para dentro de um mundo vívido, mas obscuro e pessimista por vezes, onde não raro os fantasmas de artista e de quem observa se conversam. Pois, de minha parte, admiração não falta a ele, que é certamente um dos maiores nomes das artes plásticas brasileiras, por mais desafiador e autorreconhecível que isso represente.

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exposição Diálogos no Tempo”de Iberê Camargo
local: Fundação Iberê Camargo (Av. Padre Cacique, 2000 - Cristal - Porto Alegre)
período: até 26 de março de 2017
de terça a domingo (inclusive feriados), das 12h às 19h

entrada gratuita


Autorretrato dos anos 80,
apuro na própria estética

Bela paisagem com influência de Guignard

Uma das paisagens a óleo dos anos 40.
Vê-se o traço espaçado de Van Gogh

Um dos estudos de movimento do corpo
Outro estudo, este de vexados manequins

Serigrafia interessantíssima de Iberê

Carretéis feitos em giz de cera

Carretéis com figura,
uma síntese de períodos do artista

O duo "Manequins".
Ares de Bacon

"Desastre" o acidente de carro vai do estudo
para a tela final


"Fantasmagoria", uma das obras-primas

Os obsessivos carretéis tomando formas além do objeto





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