“Este trabalho reúne sambas meus e de outros
com um significado todo especial para mim [...]
Foram momentos que
ficaram
em minha memória de forma viva,
acontecimentos que têm grande importância
naquilo que hoje faço.”
Paulinho da Viola
Paulinho da Viola não é dono
de uma obra extensa. Principalmente se comparado a contemporâneos seus da
música brasileira, como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa e Milton Nascimento, sua discografia é consideravelmente menor e na qual se nota um
espaçamento maior entre um trabalho e outro, chegando a somar 20 anos sem
nenhum projeto de canções inéditas como atualmente. Entretanto, e talvez por
isso, a noção de tempo dele, esse misto elegante de malandro de morro com
sambista clássico, chorista e bossa-novista, seja, de fato, diferente da noção
da maioria. Sua apreensão dessa percepção temporal é fundamentalmente interna,
subjetiva. E um dos mais fiéis recursos para a materialização desse tempo,
constantemente presente e vivido, seja-lhe a memória. É no registro afetivo do
passado que Paulinho da Viola cria, recria e reinventa (a si e ao que já foi).
Não é difícil deduzir porque o duo “Memórias
Chorando” e “Memórias Cantando”,
ambos de 1976 (ou seja, completando 40 anos) sejam talvez os grandes discos dele,
um dos maiores artistas da música brasileira. Forjados para serem lançados num
álbum duplo, por questões comerciais foram parar nas prateleiras das lojas
separadamente. Mas lhes é visível a coesão, a começar pela arte magistral de
Elifas Andreado tanto da capa, com a imagem dos “erês” brincando em um fundo
branco, quanto nos encartes, quando seu desenho entrelaça vários momentos
cronológicos e afetivos dele e de Paulinho. Porém, fundamentalmente, os dois
discos são, parafraseando Jorge Luís Borges quando se referia aos livros, “uma extensão da memória e da imaginação”.
Profundos, ambos trabalhos vão buscar, de formas diferentes, sentimentos que
traduzem a personalidade de seu autor.
O volume 1, “Cantando”, é
certamente um dos felizes trabalhos do samba em todos os tempos, desde sua
caprichada produção, a cargo de Mariozinho Rocha e Milton Miranda, até o repertório,
pinçado a dedo por Paulinho e que casa temas antigos com novas criações à época.
A força das lembranças emocionais abre o disco no elegante samba-canção “Nova
Ilusão”, do repertório da velha guarda da Portela em que o cavaquinho de
Paulinho desenha o rico “riff”
inventado por “mano” Caetano e Claudionor. Na letra, os temas que formaram a
poesia de Paulinho desde sempre: as referências à passagem do tempo, os
símbolos da natureza, a inter-relação do emocional com o real, a amalgamação do
subjetivo com o concreto. “És um poema na
terra/ Uma estrela no céu/ Um tesouro no mar/ És tanta felicidade/ Que nem a
metade consigo exaltar”.
Na sequência, a faixa-título, das escritas especialmente para o disco.
Relembrando uma época de inocência, Paulinho percebe o transcorrer da história
pessoal do homem e coloca os sentimentos bonitos e sinceros em confronto com os
amargos da vida adulta. “Lembra daquele
tempo/ Quando não existia maldade entre nós/ Risos, assuntos de vento/ Pequenos
poemas que foram perdidos momentos depois/ Hoje sabemos do sofrimento/ Tendo no
rosto, no peito e nas mãos umas dor conhecida/ Vivemos, estamos vivendo/
Lutando pra justificar nossas vidas”. Mas, valendo-se do canto, da sua
música, ele desfecha otimista e humanisticamente: ”Cantando/ Um novo sentido, uma nova alegria/ Se foi desespero hoje é
sabedoria/ Se foi fingimento hoje é sinceridade/ Lutando/ Que não há sentido de
outra maneira/ Uma vida não é brincadeira/ E só desse jeito é a felicidade”.
“Abre os teus olhos”, ao estilo dos sambas da Portela, narra um amor se
desfazendo, ou seja, o passado que já não se faz mais presente (“Felicidade já conheceu seu momento/ Abre os
teus olhos e veja o que aconteceu/ Esqueça tudo/ Porque nosso amor já morreu”).
Esta antecede uma das mais belas do disco e de todo o repertório do músico: "Dívidas". Samba cadenciado e melancólico, é uma espécie de “crônica de memória”,
na qual Paulinho conta um episódio cotidiano que presenciou quando criança e
que lhe marcou: um vizinho seu, homem da comunidade, apertado de grana no final
do mês como tantos ali, incomodou-se ele e sua esposa, a Inocência, com outro
vizinho, Oliveira, que havia lhe emprestado dinheiro mas não tinha sido pago
ainda. A menção aos nomes desses personagens anônimos, o relato cronológico da
pequena história, dando detalhes e pontuando aspectos simbólicos importantes, como
a situação econômica e a estratificação social, dão a esta canção um aspecto literário.
Isso ainda ajudado pela métrica não-linear da melodia – ao estilo de outro
mestre portelense, Candeia – ,que acompanha o desenrolar ondulante que da
narrativa – bem diferente de outras do disco, que chegam à perfeição simétrica
como “Nova...” e “Mente ao meu coração”.
Esta última, por sinal, um samba-canção de Francisco Malfitano gravado
originalmente em 1938 por Silvio Caldas, é mais uma das regravações cuja
melodia Paulinho puxa do fundo do seu baú de emoções. E que bela poesia: “Mente ao meu coração/ Que cansado de
sofrer/ Só deseja adormecer/ Na palma da tua mão...”. Das regravações há
também uma do clássico de Noel Rosa e Vadico “Pra que mentir”, em que Paulinho
interpreta (não sem a influência do canto de João Gilberto) apenas sobre o
classudo violão de César Farias neste samba triste e de avançada estrutura, o
qual lembra, com quase duas décadas de antecedência, as harmonias dissonantes da
Bossa Nova.
Mas não apenas de tristeza, desentendimento e sofrimento se compõe a
memória de Paulinho da Viola. “Perdoa”, um brilhante partido-alto no qual
divide o microfone com Elton, levanta o clima. Além do tom alto, que lhe
empresta vivacidade, é típico da estrutura deste tipo de samba o refrão
permanente (aqui: “Meu bem, perdoa/
Perdoa meu coração pecador /Você sabe que jamais eu viverei/ Sem o seu amor”),
o qual, como num repente nordestino, serve de marcação de tempo para que, nas
rodas de pagode, os versos das estrofes possam ser inventados na hora pelos
partideiros. Outra animada, esta em clima de crônica chistosa, “O velório do
Heitor“ relembra um episódio em que o “catimbeiro” Heitor era enterrado com
tristeza pela família, principalmente da esposa, Nair. Acontece que a “outra”
do finado aparece também para dar seu adeus, e aí teve de se chamar até a
polícia, pois, como dizem os versos: ”simplesmente
o velório/ Virou a maior confusão”.
Os personagens, como bem se nota, são fundamentais para a formação
desse mundo afetivo de Paulinho. É o que traz também “Vela no breu”, que
descreve um velho mendigo de quem se tem muito mais a aprender do que lastimar:
“Joga capoeira/ Nunca brigou com ninguém/
Xepa lá na feira/ Divide com quem não tem/ Faz tudo o que sente/ Nada do que
tem é seu/ Vive do presente/ Acende a vela no breu”.
Em clima de choro sincopado, “Meu novo sapato” desfecha o disco, já anunciando
o segundo bolachão, “Chorando”. Entretanto, “Cantando” tem ainda antes a talvez
mais bela e intensa composição de Paulinho: “Coisas do mundo, minha nêga”. Nela,
a questão do tempo é mirada em seu mais irremediável e infalível instante: a
morte. Paulinho conta de forma poética a missão de um santo-sambista,
imperfeito como um homem e poderoso como um deus, que, com seu violão debaixo
do braço, sai pelos morros salvando almas com versos e melodias, sem, contudo,
deixar de sofrer com isso e de precisar do amor redentor de sua amada. Difícil
não se comover em passagens como esta: “Depois
encontrei Seu Bento, nêga/ Que bebeu a noite inteira/ Estirou-se na calçada/ Sem
ter vontade qualquer/ Esqueceu do compromisso/ Que assumiu com a mulher/ Não
chegar de madrugada/ E não beber mais cachaça/ Ela fez até promessa/ Pagou e se
arrependeu/ Cantei um samba pra ele/ Que sorriu e adormeceu”. “Coisas...” é
tão importante para o repertório, que, não inédita, foi resgatada do álbum de
1968, o primeiro solo do artista, para esta versão definitiva da música
preferida do seu próprio autor.
Interessante notar que, embora seja a mais anedótica entre todos os
temas, “Coisas...” é a que tem o ar mais autobiográfico, como se somente fosse
possível alcançar o misterioso interior de Paulinho da Viola através da
fantasia. O próprio diz no texto que integra o encarte: “Amo o oceano que retém no fundo os mistérios de sua natureza”. Não
à toa símbolos como o mar, os ventos, as flores, enfim, o tempo, estão
constantemente presente nas suas letras e universo. A sentença “Meu mundo é
hoje” (título de um clássico de Wilson Batista gravada por Paulinho na mesma
década de 70), exprime o artista que é Paulinho da Viola e resume os versos que
encerram “Memórias Cantando”: “É um
verdadeiro artista/ Não tem orgulho/ Nem tão pouco amargura/ Está voltado/ Para
o futuro.”
FAIXAS:
1. Nova ilusão (Claudionor Cruz, Pedro Caetano) - 2:57
2. Cantando - 3:30
3. Abre os teus olhos - 2:47
4. Dívidas (Élton Medeiros, Paulinho da Viola) - 3:32
5. Perdoa - 4:05
6. Mente ao meu coração (Francisco Malfitano) - 3:12
7. Pra que mentir (Vadico, Noel Rosa) - 3:33
8. O velório do Heitor - 3:25
9. O carnaval acabou - 2:25
10. Coisas do mundo, minha nêga - 3:12
11. Vela no breu (Sergio Natureza, Paulinho da Viola) - 3:17
12. Meu novo sapato - 2:45
todas composições de Paulinho da
Viola, exceto indicadas.
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por Daniel Rodrigues
A resenha é ótima e a obra do Paulinho,idem.
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