Crítica social ressignificada na montagem teatral. foto: divulgação |
É excitante como espectador quando se assiste a um trabalho
que, baseado numa obra literária, consegue transpor ideias fundamentais
contidas nesta, seja mantendo-se fiel ao escrito ou, mais que isso,
transformando conceitos suscitados no texto original de forma a
ressignificá-los. E se já é assim para quem assiste, imagina-se para o próprio
autor. Pois essas duas percepções, de espectador e de autor, estiveram
presentes na apresentação da peça "Leite Derramado", no teatro do Sesc Ginástico, no
Centro do Rio de Janeiro. Nós, Leocádia, Carolina, Iara, eu e mais centenas de espectadores
(entre os quais Denis Carvalho, Cissa Guimarães e outros conhecidos),
maravilhados com a competente e rica montagem da companhia paulista Club Noir.
E o próprio autor, o gênio Chico Buarque, que
estava presente na última apresentação da peça na temporada carioca – como o
mesmo fizera na estreia, ocorrida em São Paulo.
Impressionante jogo de luzes e cenário. foto:divulgação |
O encanto com a montagem, não à toa, é obtido, entretanto,
com empenho. Afinal, a peça, bastante fiel ao material escrito, não é
necessariamente fácil e nem palatável em vários momentos. A complexidade da
literatura de Chico neste que é provavelmente seu melhor romance é um desafio a
ser enfrentado ao leitor, o que se intensifica ainda mais numa transposição
para o palco. A história de Eulálio Montenegro D´Assumpção, um centenário
senhor carioca de família aristocrática decadente, ganha cores irônicas e, tragicamente,
bastante pertinentes com a realidade política brasileira atual. Em seu leito de
morte no hospital, o personagem relembra fatos de sua vida que são narrados
como um caleidoscópio descontrolado pela memória já envelhecida, memória esta
que serve como um registro da própria história do Rio de Janeiro, da política do
Brasil e da constituição da identidade do povo brasileiro.
Não é preciso uma
visão muito aguçada para perceber que, quando se fala em das famílias
oligárquicas ou das diferenças sociais, está se tocando em veias ainda abertas
da sociedade brasileira.
O desafio da transposição, contudo, é superado pelo diretor
Roberto Alvim, que soube aproveitar o barroquismo do texto é aproveitado de
todas as formas, sinalizando diferentes pontuações nos vários personagens.
Porém, o principal é Juliana Galdino, atriz que encarna incrivelmente o protagonista,
o desvairado Eulálio. A forte e impressionante atuação é o fio condutor de toda
a encenação. Juliana, com hábeis modulações de entonação de voz e expressão
corporal, dá vida ao personagem em suas diferentes fases da vida, das
lembranças da adolescência e vida adulta à presente velhice senil.
A impactante atuação de Juliana
no papel masculino do protagonista.
foto: divulgação
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Igualmente, a companhia consegue êxito ao manter a
construção narrativa da obra, toda cheia de idas e vindas no tempo, seja este
histórico ou emocional do protagonista. Os jogos de luzes, som e cenários,
muito criativos e da mais alta qualidade técnica, dão conta disso, inclusive na
expressão dos devaneios febris de Eulálio. Um dos pontos mais interessantes da
obra escrita, as quase repetições que se dão ao longo da narrativa, que exigem
reflexão do leitor quanto à veracidade das “versões”, é mantido. Também, o tom
irônico e crítico ganha relevos, como no preâmbulo, em que moscas encenam uma
performance funesta ao som de “Aquarela do Brasil” na versão de Francisco Alves
e arranjos de Radamés Gnatalli; ou no final, quando após as últimas palavras de
Eulálio, o encerramento se dá ao som de “Deus lhe Pague”, clássica música do
período de repressão militar do álbum "Construção" – e ainda tão atual.
Mais do que tudo, a montagem é feliz ao criar uma nova obra,
jogando luzes sobre o texto machadiano de Chico tanto para quem já conhecia como
para os que não. Além da peça, ainda tivemos a oportunidade de ver o próprio
Chico Buarque. Vi quando, minutos depois da sessão ter começado, ele entrou
pela porta traseira do teatro. No final, o autor, simpático e sem receio,
apareceu no hall – não sem ganhar dois beijos de Leocádia, que o abordou
espontaneamente para agradecer-lhe por ser quem ele é. Havia informações de
que, agradado com a montagem, iria. E foi. Se nós gostamos, imagina ele.
por Daniel Rodrigues
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