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segunda-feira, 13 de março de 2017

ARQUIVO DE VIAGEM – Caminho Niemeyer - Niterói/RJ – 04/01/2017




“Não foi difícil projetar para Niterói, porque esta é uma cidade de orla tão bela que possibilita a criação a céu aberto, como um itinerário cultural e religioso.” 
Oscar Niemeyer

Já havia ido duas vezes a Niterói por conta, obviamente, do Museu de Arte Contemporânea, o MAC, aquele monumento que a cidade carioca abriga. Entretanto, sempre tivemos curiosidade de conhecer também o Caminho Niemeyer, altamente recomendado por concentrar o segundo maior conjunto arquitetônico assinado por esse genial brasileiro depois de Brasília, e também por estes serem alguns de seus últimos projetos construídos. Aliás, Oscar Niemeyer nos é um dos fatores turísticos mais instigantes sempre que viajamos, e isso em várias partes do mundo. Embora conheçamos pessoalmente apenas algumas delas e apenas brasileiras, todo local que conte com construções suas, seja São Paulo, Belo Horizonte, Tel Aviv, Paris, Milão ou Nova York, são, se não pelo óbvio, destinos turísticos interessantes também por conterem obras do arquiteto em suas paisagens.

Pois é a paisagem litorânea de Niterói, beirada à Baía de Guanabara e a qual se contempla a cidade do Rio de Janeiro ao fundo, que faz cenário para o Caminho Niemeyer, que finalmente visitamos Leocádia, Carolina e Iara em nossa estada no Rio em dezembro. Ao todo, ali na Praça Popular de Niterói, são 3 prédios – sem contar com o administrativo, simples mas bonito: a Fundação Oscar Niemeyer, o Memorial Roberto Silveira e o Teatro Popular de Niterói. Mas ao longo da orla da cidade há também outros edifícios espalhados: o Terminal de Barcas de Charitas, o Centro Petrobras de Cinema e a Praça JK. Da catedral da cidade, que deve ser erguida, vimos o lindo projeto: um alto prédio que remete a um galero religioso.

O exuberante teatro com formar que
lembram o corpo feminino
Embora não tenhamos conseguido entrar em nenhum deles, visto que fomos num horário da manhã que não havia nenhum funcionamento, admirar os prédios e integrar-se com eles já vale a visita à Praça. O Teatro Popular é um desbunde. Com traços artísticos que lembram o curvilíneo corpo feminino, dialoga com outras de suas últimas obras, como o Museu Oscar Niemeyer (MON), de Curitiba. É o prédio que mais interage com a natureza da Baía entre todos dali, até pela proximidade com o mar. Isso se percebe tanto no foyer inferior, com pilotis espaçados que lhe conferem profundidade e amplitude, quanto no andar de cima, entre o mural com a marcha do MST e a entrada para o teatro. O desenho da bailarina, o mesmo do MON, está lá em impressão feita sobre os ladrilhos. Por falar no traço de Niemeyer, o espetacular mural, propositadamente incompleto, traz a ideia das transformações sociais ainda em curso em que o povo virá a protagonizar na ideia sonhadora do comunista Niemeyer. O Teatro traz ainda os vidros escuros que abrem “olhos” na arquitetura, mesmo material usado nos outros prédios, dando unidade ao complexo.

O Memorial Roberto Silveira lembra bastante a Oca do Ibirapuera, em São Paulo, e o Museu Nacional da República Honestino Guimarães, de Brasília, mas num formato menor, como uma pequena nave espacial branca ali assentada. Já o da Fundação Oscar Niemeyer – cujo conteúdo original fora transferido para a sede da mesma em Brasília, estando atualmente funcionando uma sessão administrativa da prefeitura de Niterói – foi possível subir a rampa curva e admirar o olho d'água logo abaixo, que dialoga com a Baía de Guanabara  (assim como, mais adiante mas dentro do mesmo complexo de obras, o MAC o faz novamente, porém espelhando do alto do morro a água do mar).

Não deu pra tirar mais fotos, que o sol começou a ficar castigante a certa altura, mas esses registros aqui dão noção do quão deslumbrante é.

Espaço amplo do foyer com vista para a cidade do Rio

Leocádia integrando-se à arquitetura do Teatro do Povo

Eu em frente ao belíssimo painel desenhado por Niemeyer em homenagem à luta no campo

Caminhando em direção à Oca

Na entrada do Memorial Roberto Silveira 

Mais um detalhe do fabuloso Teatro, as bailarinas, as mesmas vistas no MON, em Curitiba

Na rampa de acesso ao prédio da Fundação Niemeyer


texto: Daniel Rodrigues
fotos: Leocádia Costa, Carolina Costa e Daniel Rodrigues

quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

peça "Leite Derramado", de Chico Buarque – Cia. Club Noir - Sesc Ginástico – Rio de Janeiro/RJ



Crítica social ressignificada na montagem teatral.
foto: divulgação
É excitante como espectador quando se assiste a um trabalho que, baseado numa obra literária, consegue transpor ideias fundamentais contidas nesta, seja mantendo-se fiel ao escrito ou, mais que isso, transformando conceitos suscitados no texto original de forma a ressignificá-los. E se já é assim para quem assiste, imagina-se para o próprio autor. Pois essas duas percepções, de espectador e de autor, estiveram presentes na apresentação da peça "Leite Derramado", no teatro do Sesc Ginástico, no Centro do Rio de Janeiro. Nós, Leocádia, Carolina, Iara, eu e mais centenas de espectadores (entre os quais Denis Carvalho, Cissa Guimarães e outros conhecidos), maravilhados com a competente e rica montagem da companhia paulista Club Noir. E o próprio autor, o gênio Chico Buarque, que estava presente na última apresentação da peça na temporada carioca – como o mesmo fizera na estreia, ocorrida em São Paulo.
Impressionante jogo de luzes e cenário.
foto:divulgação
O encanto com a montagem, não à toa, é obtido, entretanto, com empenho. Afinal, a peça, bastante fiel ao material escrito, não é necessariamente fácil e nem palatável em vários momentos. A complexidade da literatura de Chico neste que é provavelmente seu melhor romance é um desafio a ser enfrentado ao leitor, o que se intensifica ainda mais numa transposição para o palco. A história de Eulálio Montenegro D´Assumpção, um centenário senhor carioca de família aristocrática decadente, ganha cores irônicas e, tragicamente, bastante pertinentes com a realidade política brasileira atual. Em seu leito de morte no hospital, o personagem relembra fatos de sua vida que são narrados como um caleidoscópio descontrolado pela memória já envelhecida, memória esta que serve como um registro da própria história do Rio de Janeiro, da política do Brasil e da constituição da identidade do povo brasileiro.
Não é preciso uma visão muito aguçada para perceber que, quando se fala em das famílias oligárquicas ou das diferenças sociais, está se tocando em veias ainda abertas da sociedade brasileira.
O desafio da transposição, contudo, é superado pelo diretor Roberto Alvim, que soube aproveitar o barroquismo do texto é aproveitado de todas as formas, sinalizando diferentes pontuações nos vários personagens. Porém, o principal é Juliana Galdino, atriz que encarna incrivelmente o protagonista, o desvairado Eulálio. A forte e impressionante atuação é o fio condutor de toda a encenação. Juliana, com hábeis modulações de entonação de voz e expressão corporal, dá vida ao personagem em suas diferentes fases da vida, das lembranças da adolescência e vida adulta à presente velhice senil.
A impactante atuação de Juliana
no papel masculino do protagonista.
foto: divulgação
Igualmente, a companhia consegue êxito ao manter a construção narrativa da obra, toda cheia de idas e vindas no tempo, seja este histórico ou emocional do protagonista. Os jogos de luzes, som e cenários, muito criativos e da mais alta qualidade técnica, dão conta disso, inclusive na expressão dos devaneios febris de Eulálio. Um dos pontos mais interessantes da obra escrita, as quase repetições que se dão ao longo da narrativa, que exigem reflexão do leitor quanto à veracidade das “versões”, é mantido. Também, o tom irônico e crítico ganha relevos, como no preâmbulo, em que moscas encenam uma performance funesta ao som de “Aquarela do Brasil” na versão de Francisco Alves e arranjos de Radamés Gnatalli; ou no final, quando após as últimas palavras de Eulálio, o encerramento se dá ao som de “Deus lhe Pague”, clássica música do período de repressão militar do álbum "Construção" – e ainda tão atual.
Mais do que tudo, a montagem é feliz ao criar uma nova obra, jogando luzes sobre o texto machadiano de Chico tanto para quem já conhecia como para os que não. Além da peça, ainda tivemos a oportunidade de ver o próprio Chico Buarque. Vi quando, minutos depois da sessão ter começado, ele entrou pela porta traseira do teatro. No final, o autor, simpático e sem receio, apareceu no hall – não sem ganhar dois beijos de Leocádia, que o abordou espontaneamente para agradecer-lhe por ser quem ele é. Havia informações de que, agradado com a montagem, iria. E foi. Se nós gostamos, imagina ele.




por Daniel Rodrigues