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quarta-feira, 8 de fevereiro de 2017

cotidianas #495 - Pílulas Surrealistas #12




O trânsito não fluía, e enquanto isso ela ia remoendo suas angústias com certo prazer, pois tinha desta vez tempo suficiente para isso diferentemente da maior parte das horas da vida. O carro, anônimo em meio ao engarrafamento, representava o único momento de solidão do dia - isso, até a hora que pegasse o filho na creche e adeus privacidade novamente. Havia sempre alguém com ela, rondando, sugando, competindo, pareando. Não conseguia ficar consigo, pensar sem que lhe atrapalhassem ou fizessem por ela. A vontade, contida, velada, como devia ser, era mesmo de acelerar e jogar aquela camionete contra um muro. "Por que você não faz, então?", perguntou-lhe o coelho no banco do carona cuja cabeça decepada segurava com uma das patas. "E a coragem? E os meus filhos? E as compras que programei pra amanhã?", retorquiu. "Não vai me dizer que você prefere ficar aqui nesse vai-não-vai a fazer alguma coisa?", questionou o bicho. "É tudo tão confuso, tão sem sentido...", queixou-se ela, e antes que as reticências tomassem conta, retomou. "Mas eu pensei que eu estivesse sozinha no carro? Eu comi você ontem no jantar do clube...", disse, percebendo agora que também carregava a própria cabeça numa das mãos. "Não sei onde você está com a cabeça pra me perguntar uma coisa dessas. Aliás, eu sei: debaixo do braço! Rsrsrs desculpe, rsrsrs, essa eu não podia deixar de dizer! Rsrsrs Então", retomando-se o coelho após o acesso de gargalhada: "isso tudo é um ‘sim’?" De repente, num raio de 20 metros não se viu mais carro nenhum, e um muro magicamente concreto surgiu-lhe à frente desimpedido, longe o suficiente para acelerar em sua direção e estuporar-lhe o carro.


Daniel Rodrigues

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