De repente o cara está, ali, assistindo a um filme, numa boa, e percebe que uma cena não foi interrompida desde que começou. E ela vai, muda direção, volta no mesmo ponto, entram outros personagens, e se alonga e se alonga e o cara que está ali vendo aquilo vai ficando cada vez mais sem fôlego com aquilo que vê. Assim são os planos-sequência, cenas mágicas, um balé cimatográfico minuciosamente coreografado em que diretores usam de todo seu recurso técnico para imitar a realidade de uma maneira ainda mais fiel do que o fazem usualmente, praticamente nos levando para dentro do filme.
Selecionamos aqui, sem ordem de preferência, alguns planos-sequência que, seja por sua técnica, duração, dinâmica, significado, são marcantes e tem lugar de destaque na história da sétima arte:
1. "O Jogador", de Robert Altman (1991) - Este é um dos planos-sequência de que mais gosto. A entrada e o passeio pelo pátio dos estúdios de uma produtora de cinema, passando por diversas situações curtas envolvendo atores, produtores, entregadores, roteiristas, culminando na chegada à sala onde o produtor, Tim Robbins, que, na trama principal, virá a ser ameaçado por um roteirista rejeitado, conversa com Brian de Palma (interpretando ele mesmo) sobre mais um roteiro esdrúxulo de Hollywood. Cena absolutamente fantástica que deixa o espectador nada menos que fascinado. A mim, pelo menos, sempre deixa.
Plano sequencia - O Jogador from Fabio L on Vimeo.
2. "O Segredo de Seus Olhos", de Juan José Campanella (2009) - Este é um caso interessante pois fui assistir ao filme por causa do plano-sequência. É verdade que ele já vinha sendo bastante elogiado, era cogitado para disputar o Oscar de melhor filme estrangeiro (o que não só acabou se confirmando, como venceu o prêmio) mas a informação de que o filme tinha uma cena sem cortes de mais de sete minutos num estádio de futebol foi decisiva para que eu fosse ao cinema. O plano, que tem alguma trucagem, é verdade, começa no alto, no céu, descendo direto para dentro do campo no estádio do Huracán, deslocando-se para as arquibancadas e à descoberta, em meio à multidão de torcedores, do homem procurado pelo protagonista, Benjamin Espósito (Ricardo Darín), passa a uma frenética perseguição com direito a gol, correria pelos corredores do estádio, pulo de um muro alto e até invasão de campo . Ótimo filme que mistura policial, romance e drama histórico da ditadura argentina.
3. "Nostalgia", de Andrei Tarkovski (1984) - Eis aqui um plano-sequência bem pouco convencional, sem maiores complexidades, aparentemente muito simples mas que é muito bem executado emocionalmente, como aliás é característico de Andrei Tarkovski. O poeta exilado Andrei Gorchakov, sabendo da morte, do autoflagelo em Roma do "louco" Domenico, a quem conhecera na pequena cidadezinha de Bagno Vignoni, antes de deixar o lugarejo, finalmente tendo entendido as atitudes daquele homem mal compreendido por todos e o que queria lhe dizer em suas complexas conversas, resolve cumprir uma tarefa que Domenico deixara inacabada e que percebia agora ser de extrema importância simbólica para não só para o amigo com para ele mesmo também: atravessar terma natural da cidade de um lado a outro com uma vela acesa. A fonte termal está temporariamente vazia, é verdade, o vento apaga a vela, ele volta acende de novo, cobre com a outra mão, cobre com o casaco mas não abandona o intento num ato de fé, respeito, humildade e generosidade. Nove minutos de silêncio com a câmera apenas acompanhando lentamente o protagonista de um lado a outro do tanque com algum mínimo movimento ao fundo dos moradores do lugar alvoroçados por verem o forasteiro repetindo o gesto do maluco da cidade. Poucos diretores fariam de uma cena tão simples algo tão emocionante.
4. "Filhos da Esperança", de Alfonso Cuarón (2006) - Que cena, senhoras e senhores! Praticamente filmada toda dentro de um carro, alternando ora entre o ângulo de visão do assento do carona, ora a dos passageiros do banco traseiro, e entre a visão do motorista, a cena, depois de um pequeno momento inicial de descontração, mantém a tensão o tempo inteiro. É carro incendiado bloqueando a estrada, é coquetel-molotov, é perseguição com o carro andando de ré, é tiro, é batida policial, tudo na maior perfeição técnica numa cena incrível de alto grau de dificuldade para ser realizada, dirigida por Alfonso Cuarón, que é bem chegado num plano-sequência, mas com grandes méritos para Emmanuel Lubezki, o premiadíssimo diretor de fotografia, que sempre propicia essa dinâmica aos diretores com quem trabalha.
* Como não encontramos a cena toda, do início ao fim, vai ela aqui em dois segmentos, sendo o segundo, mais especificamente, o do momento da colisão.
"Gravidade" - 1
"Gravidade" - 2
6. "Os Bons Companheiros", de Martin Scorsese (1990) - Cena emblemática do grande filme de Martin Scorsese. A sequência, apresentada como tal, sem interrupção, serve para nos introduzir ao universo dos mafiosos que protagonizam a ação. Ao partir do exterior de uma casa de espetáculos, circular entre os clientes que esperam na fila para entrar no lugar, adentrar clandestinamente pela cozinha, expôr toda a intimidade venal do protagonista, Ray Liotta, com manobristas, porteiros, seguranças, cozinheiros, garçons, até vê-lo conseguir um lugar com visão privilegiada de frente para o palco, o diretor nos oferece uma certa cumplicidade deixando nos "participar" daquele ambiente contaminado por trocas, favores, dinheiro e interesses.
8. "Oldboy", de Park Chan-wook (2003) - Este drama policial de vingança coreano inspirado em um mangá japonês tem um das cenas de luta mais incríveis de todos os tempos no cinema e o que é mais legal é que ela é feita de uma tacada só. Quando o protagonista Dae-su descobre onde fora aprisionado por quinze anos, volta ao lugar para obter pistas de quem fizera aquilo com ele. Embora consiga informações com uma certa "facilidade" (a custo de uma certa persuasão violenta), é lógico que o pessoalzinho de lá não ia facilitar em nada a saída do nosso herói daquele prédio. Aí é que a coisa fica feia! Uma porrada de capangas do dono do lugar armados de tacos de beisebol, paus e barras de ferro se amontoam à frente de Dae-su num estreito corredor para impedir sua passagem. Impedir a não ser que... A não ser que Dae-su enfrente aquele monte de gente. E é o que ele faz. Armado inicialmente apenas com um martelo, nosso herói parte pra porrada e, apesar de solitário com a vantagem dos anos ociosos que teve no cativeiro quando, sem nada melhor para fazer e já planejando uma vingança, tratou de treinar e aprender lutas na TV. Como se fosse num desenho animado, a câmera se coloca paralelamente à luta como se estivesse dentro da parede, acompanhando o ir e vir da horda que ataca covarde e atabalhoadamente aquele único homem. É pancadaria pura!!! Além do fato de não ter interrupções, a cena ganha em realismo pela intensidade, pelo desgaste físico dos lutadores que cansam, descansam, caem, levantam, se ferem, mancam, numa espécie de espontaneidade ensaiada que apesar do exagero, quase convence e arrebata em cheio quem assiste à cena.
Um dos melhores filmes de ação dos últimos tempos, admirado por Quentin Tarantino e, não por acaso, vencedor do prêmio do júri em Cannes em 2004 no ano em que este presidiu a mesa do festival.
10. "A Marca da Maldade", de Orson Welles (1958) - Uma das cenas desta técnica mais famosas e emblemáticas do cinema. Cena que é uma verdadeira bomba-relógio. A ação começa com uma bomba sendo acionada e colocada debaixo de um carro que parte e ao qual passamos a acompanhar enquanto ao seu redor desenrolam-se situações corriqueiras como a de um casal conversando, que no caso é o do detetive Vargas (Charlton Heston) e sua esposa (Janeth Leigh), prestes a cruzarem a fronteira do México para os Estados Unidos. Numa coreografia mágica de elementos em cena e um magistral jogo de luz e sombras, embalados pela precisa trilha sonora de Henry Mancini, depois de estabelecida a tensão pela existência de uma bomba e a expectativa pelo momento de sua explosão pelo entra e sai do carro no enquadramento, a cena só é interrompida pela explosão que desencadeia então toda a ação do filme. Obra prima do genial Orson Welles. considerado por muitos um os melhores filmes de todos os tempos e seu plano-sequência, como não poderia deixar de ser, um dos mais lembrados e cultuados entre os cinéfilos.
O baú, com o cadáver, que serve ao mesmo tempo de mesa para a pequena festa e de caixão. Ao fundo, no cenário mutável da janela, a tarde vai caindo. |
"Festim Diabólico" - filme completo
Poderia citar aqui mais um monte de planos-sequência incríveis, cada um admirável por suas próprias razões, seja pela complexidade, pela emotividade, pela duração, pela técnica, pelo ritmo, pela estética, ou qualquer outro motivo, mas acredito que os 11 citados acima além de comporem uma boa síntese do uso desta técnica, contém elementos que, particularmente, me fizeram um apreciador deste recurso no filmes. Em todo caso, aí vão mais alguns que poderiam estar na lista e que merecem menção: a cena que o policial, Sam Rockwell, ganhador do Oscar pelo papel, invade a agência de publicidade no recente "Três anúncios para um crime", de Martin McDonagh; a abertura do fraco "A Fogueira das Vaidades", de Brian de Palma; a sequência "mágica" da morte do personagem de Jack Nicholson na cama do hotel em "O Passageiro - Profissão: Repórter" de Michelangelo Antonioni; a surpreendentemente boa cena de fuga e luta com zumbis no fraco mas eletrizante "Dead Rising: Watchtower", de Zach Lipovski, baseado no game de mesmo nome; a curta mas não menos linda e bem executada cena do incêndio de "O Espelho", de Andrei Tarkovski; a abertura e os créditos do premiado filme brasileiro "Durval Discos", de Ana Muylaert; a cena do carro rodeando Norma Bengel na praia, no clássico nacional "Os Cafajestes", de Ruy Guerra; e a cultuada cena do filme tailandês 'O Protetor", de Prachya Pinkaew, que demorou quatro dias para ser filmada.
Tem muito mais, é claro. Se o seu preferido não estiver aqui ou sentir falta de algum outro que mereça ser mencionado, não fique constrangido e indique nos comentários.
por Cly Reis
Meu pitaco: o PS do final de Abutres, do argentino Trapero, aliás, um cara que quase sempre finaliza seus filmes com PS.
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