Logo que lhe ficou clara a necessidade de isolamento social,
e que não poderia (deveria) sair de casa com o mesmo direito de “ir e vir”
comum em tempos normais, Samantha deu um jeito de adotar um bichinho. Uma gata.
Exótica a chamou em homenagem à personagem de Cats, que Samantha assistira anos
atrás em Nova York quando gozava ainda do tal direito de “ir e vir”. Pelagem
escura, amendoado dos olhos e olhar penetrante como os da personagem tinha a
gata para merecer-lhe ainda mais o nome. Samantha adotou-a ainda filhote, recém
desmamada. Assim, estabeleceram desde o primeiro dia uma relação muito próxima,
quase simbiótica. Dividiam a mesma cama, acomodavam-se com deleite sobre o mesmo
travesseiro (quando não o disputavam), comiam ambas nos mesmos horários e
acompanhavam o movimento da rua pela janela em longos banhos de sol. Nem TV mais Samantha assistia, para a qual, mesmo ligada, como um aquário mudo, dava as costas com desinteresse igual Exótica. Os hábitos
notívagos também eram iguais: dormiam boa parte da tarde e, de madrugada,
caminhavam pela casa silenciosamente. Tudo faziam juntas. A ponto de, como
acontece seguidamente com donos e seus pets, passarem a ficar cada vez mais
parecidas: na expressão penetrante, nos fios escuros, na cor de olhos
esverdeados, até no jeito cauteloso de andar, como que pisando em pantufas.
Banheiro, aliás, que perdera sua utilidade corriqueira.
Lamber uma à outra era o banho que lhes bastava. Não dependiam de fúteis
vaidades para viverem em paz. Gostavam, inclusive, do cheiro que emanavam, um
odor ancestral, fêmeo, felino. Além da inutilidade do chuveiro, o vaso
sanitário também perdera serventia, visto que era bem mais fácil agachar-se
sobre a caixa de areia, sempre destampada e disponível, para aliviarem-se.
O maior problema era a comida. Primeiro, esvaziarem os
pacotes de ração. Depois, consumiram o que havia mais à vista empoleirando-se
sobre a mesa e as prateleiras. O instinto perscrutador felino fez com que
descobrissem a dispensa e, após muita insistência, outra qualidade dos gatos,
acessassem o refrigerador. Tudo, menos ter que sair pela porta da rua! Tinham
trauma do que havia lá fora, do estresse que lhes causava. Só ouvir os vizinhos
ao longe já lhes era suficiente para ficarem apavoradas. Punham-se de ouvidos e
olhos atentos a cada movimento externo. Ali dentro, pois, era sua ilha. Se a comida
havia se acabado, não era nada tão preocupante para quem sabia amigavelmente
dividir a caça aos invasores que entravam voando pelas janelas. Além disso, os
restos de comida e fezes fazia com que se atraíssem bichos de toda ordem, como
baratas, moscas, larvas e até suculentas ratazanas. A providência se
encarregava de lhes garantir sustento.
Viveram, assim, nesta harmonia e descomplicada consciência entre cios e afagos, entre lanhadas e sonos profundos, entre lambidas e aconchegos. De inesperado, apenas encrespavam-se a cada vez que passavam pela frente do espelho, como que esquecidas de todas as outras vezes anteriores em que estranhavam a si próprias, como que fosse impossível reconhecer aquele ser refletido. Mas assim como mobilizavam-se, também se distraíam com outra coisa no segundo seguinte, fosse com uma nova caça, com a borda do sofá rasgado para afiarem as unhas ou com qualquer bobagem que a outra estivesse dando atenção. Palavras nunca mais precisaram ser ditas.
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