Tem autores da música brasileira cuja obra é tão essencialmente universal que serve, num mesmo tempo, a adultos e crianças. Até quando não produzem especificamente para o público infantil, suas músicas via de regra se adequam aos ouvidos dos pequenos, casos de Carlinhos Brown, Adoniran Barbosa e João Donato. Destes, no entanto, talvez nenhum se compare neste aspecto a Tom Zé. A musicalidade do baiano de Irará, de uma forma intrínseca, é bastante afeita ao lúdico em seus meandros sonoros e linguísticos, haja vista temas como “Fliperama”, “Identificação” ou “Jimmy, Renda-se”. Embrenhando-se na sua obra, impossível não enxergar esse caráter infantil em músicas “adultas” a se ver por “Escolinha de Robô”, “A Briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel” ou “A Boca da Cabeça”. Por isso, dá para afirmar que um projeto voltado a crianças estava bastante maduro quando Tom Zé recebeu o convite do designer, ilustrador e amigo Elifas Andreato para criarem juntos “Sem Você não A – Uma Fábula Alfabética de Tom Zé e Elifas Andreato”, de 2017. Baseado numa historieta escrita pelo paranaense Elifas, que a contava a seus filhos Laura e Bento para dormirem, o disco não poderia ter recebido melhor tratamento musical que não pelas mãos de Tom Zé.
A proximidade entre os dois, aliás, vem de muitos anos antes. O repertório deste disco, por exemplo, data do final dos anos 70, quando os filhos de Elifas eram pequenos. Em 1984, o artista visual também criara a capa do disco do colega músico “Nave Maria”. A parceria musical, no entanto, surgiu depois. Em 2014, no disco de Tom Zé “Vira Lata na Via Láctea”, experimentaram uma dobradinha com “Salve Humanidade”. Porém, já em “The Hips of Tradition”, noutro álbum do baiano, de 1992, eles haviam se encontrado para comporem “Sem a Letra A”. Ambas as músicas, por sinal, são o embrião deste antigo projeto, visto que já brincavam com a ideia de um abecedário linguístico-musical com boas doses de peraltice. Ambas dão argumento para a inventiva história de Elifas: no Abecedário, terra onde moram os habitantes do alfabeto, todos vivem harmonicamente e ajudando-se mutuamente. Além das letras, vivem nessa terra a Curiosidade, responsável por reger o alfabeto, e o ressentido Silêncio, que sequestra a primeira para, assim, calar as letras e reinar sozinho, como fazia antes de haver qualquer som. Como condição para libertar a Curiosidade, o Silêncio exige das letras a resposta de um enigma: “Qual é a maior palavra do mundo?” Sem a resposta, a Curiosidade ficaria presa para sempre. Para piorar as coisas, o A (a primeira e mais antiga integrante da turma) resolve se sacrificar, fugindo sem que ninguém percebesse para tentar resolver sozinho a charada, deixando as palavras em apuros – ortográficos, inclusive.
Tom Zé desdobra essa estorieta com a sagacidade e sensibilidade que lhe são características. Elifas, por sua vez, expande sua musicalidade já tão presente não somente em outras parcerias, como com Toquinho e Jessé, mas, principalmente, nas centenas de artes de discos da MPB as quais criou em mais de 50 anos de carreira. “Palavras do Ar”, faixa inicial, é um animado e dissonante eletro-batuque, que faz uma ode à música e a beleza dos sons vocálicos da língua portuguesa: “As palavras do ar/ Vão pular no céu/ De um balão/ As palavras do mar/ Navegar ao léu/ Numa embarcação/ As palavras do chão/ Vão rodar pião/ Na palma da minha mão/ As outras irão pendurar a, a/ No ar, no céu e o luar a, a/ Pular fogueira e soltar rojão/ Pra comemorar/ A descoberta das palavras/ Do futuro”. A brincadeira se transforma em um verdadeiro “Forrobodó do Abecê”, um baião que convida as letras para um "bate-coxo" arretado.
Hora, então, de apresentar não somente as letras, mas a “maestrina do Abecedário”: a “Curiosidade”. Conforme Elifas, “é ela quem conduz as letras em seu papel de guardiãs do passado, intérpretes do presente e construtoras do futuro”. Recuperando a letra e a melodia de “Salve Humanidade”, de três anos antes, Tom Zé dá ao número um arranjo todo especial, transformando-a num xote repleto de sonoridades lúdicas. A peculiar divisão silábica das frases vocais, herança da vanguarda a qual Tom Zé sempre esteve ligado, aparece no canto, cuja letra cantada, por sua vez, é ao mesmo tempo engraçada e poética: “A curi, a curi, a curiosidade/ Inventou, inventou/ A humanidade/ E o burá, burá, buraco da fechadura/ É o burá, burá, buraco da curió-sidadde”.
“Como É o Nome Dela?” traz a veia sertaneja de Tom Zé para contextualizar a desorientação que todos ficaram sem a Curiosidade, já capturada pelo Silêncio. Mais do que isso, dialogando com as crianças, ele e Elifas lançam uma questão que, quiçá, estes se depararão quando adultos: “Eu li que ela berra verdades, é caprichosa majestade/ Mas que quando a gente cresce, ela desaparece/ Parece...”. Como “desgr_c_ pouc_ é bob_agem”, ainda acontece o sumiço da vogal mais conhecida. Retrazendo a bela canção dos anos 90, a faixa que dá título ao disco carrega em seus versos uma filosófica questão: como viver, como ser, sem a letra A? “Sem você não A/ Sem você não haverá canção/ Sem você não há mais esperança pra criança/ Ai ai, hum hum/ Sem você não há”.
Baião pé-de-serra, “A Mágica do G” conta a parte da história em que esta letra surge com sua mágica e faz descer do céu estrelinha para pô-las no lugar onde havia A, tal qual a ideia plástico-sonora de Caetano Veloso quando musicou o poema “Pulsar”, de Augusto de Campos, em 1981. Já “A Praga do Silêncio” é o contra-ataque, pois este, inconformado com a criativa solidariedade das letras e de suas amigas luminosas, que descobriram o cativeiro da Criatividade e da letra A, roga que as estrelas tiradas do céu apaguem. O resultado: “as palavras vão ficando esbur_c_d_s”.
Sem eximir as crianças de suas construções harmônicas complexas, “Estrelas Sabem Voar“ conjuga os modos compositivos atonais da música de Tom Zé com o texto lírico e pedagógico: “Olha lá que as estrelas sabem voar (...)/ E com elas vamos ao céu procurar nosso amigo/ No desabrigo/ O R viaja no rabo da estrela/ Mas o B sobe no umbigo/ E agarrado no pé vai o É, É, É/ Fazendo chulé”. São as letrinhas que, aliadas às estrelas trazidas pelo G, sobem ao céu para recuperarem a Criatividade e o A.
Capa do livro “A Maior Palavra do Mundo”, de Elifas, com ilustrações de Fê |
Talvez nem Tom Zé e nem Elifas Andreato tenham percebido, mas sua obra conjunta carrega outro elemento igualmente fundamental para a existência tanto da Criatividade, do Silêncio e das ferramentas linguísticas: o Tempo. Com letra maiúscula. Engavetado durante anos, “Sem Você não A” só veio ao mundo depois de tanto um artista quanto o outro burilarem bem a ideia com paciência e sabedoria. Elifas diz que foi ele, o Tempo, que escolheu a ocasião de recontar esta história, desta vez, para a geração dos filhos de seus filhos. Tempo este que, em sua proeza quase brincante, torna inexoravelmente crianças em adultos. Moral da história: sem ele, o T do tempo, nem a letra A há.
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