Dia desses, conversando com minha mãe, discutíamos sobre como, ao longo da história do Brasil, o negro, mesmo depois de todo o impio jugo ao qual foi submetido, continuou ainda sendo sufocado, amordaçado, reprimido, amassado, de modo a, mesmo liberto, não fazer parte de uma existência social efetiva. O negro estava livre, vá lá, ok... Mas que ficasse lá no seu canto. Cantar suas músicas de negro? Nem pensar. Adorar aqueles "demônios" esquisitos deles? Isso não é cristão. Suas danças extravagantes? Imagina! E no entanto, embora ainda muito oprimido, amordaçado, debaixo de muita resistência, o negro venceu. "Venceu? Mas como venceu?" Perguntar-me-ão os irmãos de cor. "Somos discriminados, ridicularizados, renegados, prejudicados, preteridos, assassinados e tudo mais de possível que as gentes preconceituosas consigam fazer, e tu vens me dizer que vencemos?". Tá bom..., têm razão: vencer pode ser um tanto exagerado, muito otimista, mas convenhamos que, mesmo goela abaixo, tiveram que nos engolir. As qualidades, as virtudes do negro sempre se sobressaíram, se impuseram, e foi impossível não nos aceitar.
O samba foi marginalizado, era tido como música vulgar, e, no entanto, tornou-se, nada menos que a maior expressão musical tipicamente brasileira e, praticamente, formadora de todas as demais; “eles” criaram o clubinho de elite deles para praticar o esporte inglês que chegava ao Brasil, mas quando perceberam que o criolinho jogava mais que eles, tiveram que deixar o neguinho participar de brincadeira e o convidado indesejado, não só tomou conta, como sedimentou a identidade do esporte e foi grande responsável por sua popularização; o Brasil foi colonizado por portugueses, espanhóis, holandeses, italianos, alemães e, mesmo com as mais vastas possibilidades culinárias, o prato mais popular do país é uma invenção dos negros, feitas praticamente com os restos que lhes davam nas senzalas; a capoeira era proibida, seus praticantes eram hostilizados, presos, mortos e hoje ela é patrimônio cultural nacional. Não teve jeito. Não tinha como conter o negro.
É bem verdade, que a sociedade racista, uma vez vendo-se impotente no que não consegue contestar, mesmo resistente em reconhecer os méritos, concede-nos sua “permissão” apenas parcial para integrar seu clube privado. “Tá bom, a música de vocês é boa, mesmo. Mas então fiquem aí. Vocês podem cantar, tocar e eu até posso gostar das músicas de vocês”; “Vocês correm mais, pulam mais alto, são mais fortes, então podem usar as cores do nosso país. Mas nos tragam medalhas, hein!”; “Vocês jogam muita bola, mesmo, hein! Mas então, tá, a gente deixa vocês jogarem, vocês nos entretêm e, enquanto nos forem úteis (se não falharem), a gente pode até idolatrar alguns de vocês”. Uma espécie de “passe” implícito, de passaporte para o “mundo deles” que só é concedido em determinados campos para aqueles, segundo eles, “diferenciados”, bem colocados ou, como dizem muitos, “negros com alma de branco”.
Mas é insuficiente!
Têm razão, amigos, isso não é vitória.
Embora tratando-se de segmentos de extrema importância dentro da formação da identidade nacional, é insuficiente e limitado dar-se por satisfeito em sermos respeitados basicamente no futebol e na música. Temos o desejo, a vontade e o potencial para nos inserirmos e brilharmos em quaisquer outros segmentos da sociedade mas, durante muito tempo, foi praticamente decretado que o negro só era bom nessas atividades físicas ou em coisas de “vagabundo” porque não teria capacidade para outras atividades.
Nunca deixaram!
O negro saiu da senzala com uma mão na frente e outra atrás sem uma retratação, sem uma compensação e sem qualquer plano de inserção social. Pelo contrário: foi jogado para a margem das cidades e ganhou apenas um belo “dá teu jeito”. Como fazer médicos, advogados, engenheiros, jornalistas assim? Um que outro afortunado teve a oportunidade porque ficou na fazenda do Sinhô, porque era mais clarinho e não sofria tanto preconceito, porque o negócio que abriu deu certo e deu pra juntar um dinheirinho, e assim foi. Mas, de um modo geral, ficamos praticamente um século sem conseguirmos entrar mesmo no clubinho.
Pois mesmo nos empurrando pra baixo, tentando nos manter como mera mão-de-obra, filhos dos filhos dos filhos daqueles escravos conseguiram empregos dignos, conseguiram entrar numa faculdade, conseguiram seus diplomas e hoje, tardiamente vemos mestres, pesquisadores respeitados, juristas, protagonistas de novelas, comentaristas esportivos, políticos, aparecendo cada vez mais e sem dever nada para ninguém. Eles berram quando a negra ancora o telejornal, quando a família negra aparece no comercial, quando o super-herói é negro, mas não tem mimimi. O choro é livre. Nós estamos em todo lugar!
Eles tentam nos atrasar dificultando nosso acesso à educação, fazendo o neguinho trabalhar desde pequeno para não poder ir à escola; contestando e negando, sempre que possível, as cotas, reparação mínima diante de todo atraso que nos causaram; entram nas favelas atirando para acabar com o máximo de indesejáveis que puderem mas não adianta: é irreversível. Nós estamos aí.
Vencer? Ainda não vencemos e tem muita luta pela frente. Mas apesar de todos os golpes, estamos em pé, inteiros, cada vez mais fortes, enquanto o adversário está atordoado, enfraquecido e, claramente, usando métodos sujos para tentar nos derrubar.
Como um Mohamed Ali, levantamos, gigante e impavidamente no nosso córner prontos para mais um round. Que soe o gongo. Estamos prontos.
Cly Reis
Texto publicado originalmente
no site Coletiva.net
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