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quinta-feira, 3 de março de 2022

cotidianas #745 - Pílula Surrealista #47

 

Ele era um gênio da publicidade, mas intratável. Um bicho, na melhor acepção, arredio, bravo, colérico, selvagem. O caixa da agência, no entanto, dependia praticamente dele. Não fosse sua produção, sempre encantadora e jamais contrariada pelo cliente – algo inédito desde que o negócio começou –, a empresa não se sustentaria.

Os colegas mais novos estranhavam assim que começavam na agência. Afinal, era mesmo assustador e incomum aquele modus operandi com ares de tortura e trabalho escravo. Mas à medida que o tempo passava, entre peças e campanhas, cafezinhos e conversas nos corredores, iam acostumando-se com aquela porta de aço maciço permanentemente fechada na parte externa do prédio, ao fundo da garagem, onde normalmente residiria um zelador ou caseiro. Ali era reservado para mantê-lo trancafiado, em segurança, tanto para ele quanto, principalmente, para a sociedade, consumidora muitas vezes, ironicamente, de produtos que ele próprio as convencera de comprar com suas criações admiráveis. Por debaixo da porta, cadeada com ferrolhos de reforço, uma fresta de altura suficiente para deslizar-se um prato, servido invariavelmente com restos de carne e osso crus e em quantidade generosa. 

Pela mesma abertura em que lhe passavam a comida, os colegas o alimentavam com as demandas de trabalho da agência. Juntavam tudo que era necessário para a elaboração das peças, depositavam sobre o chão, empurravam para dentro da jaula e saíam de perto. Não demorava muito para que começassem a se ouvir incompreensíveis grunhidos e urros ferozes, bestiais, que se espalhavam por todo o prédio. Era o momento de deglutição das informações, já sabiam, por isso não mais se espantavam. Ao contrário, era prenúncio de que dali a uma meia-hora, mais ou menos, poderiam contar com aquilo que ninguém mais tinha capacidade de realizar com tamanha perfeição. E assim ocorria: alguém ficava já à espera em frente à porta aguardando que o trabalho finalizado voltasse pelo mesmo lugar em que foi largado. Estava pronta mais uma obra-prima da sociedade de consumo.

Daniel Rodrigues

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