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segunda-feira, 11 de julho de 2022

“Medida Provisória”, de Lázaro Ramos (2022)

 

Filmes de estreia dirigidos por atores, ainda mais quando já consagrados, embora comuns, são sempre uma faca de dois gumes. Se por um lado o prestígio e a experiência conquistados no palco e nos sets favorecem a direção de atores, elemento essencial a qualquer obra de ficção audiovisual, por outro a inexperiência daquela função e a falta de conhecimento do que se passa do outro lado da câmera podem prejudicar o resultado final. Pode-se dizer, no entanto, que Lázaro Ramos passou no teste. Em “Medida Provisória”, assim como seu conterrâneo e colega Wagner Moura, que debutou como cineasta com o excelente "Marighella" (2019), o celebrado artista baiano entrega um filme ousado para os padrões do cinema nacional e, ao mesmo tempo, acerta no nível do discurso – claro, muito ajudado pelo desempenho de suas atuações.

A trama se passa num Brasil do futuro em que uma inciativa de reparação pelo passado escravocrata provoca uma reação no Congresso Nacional, que aprova uma medida provisória, que afeta diretamente os cidadãos negros. A vida de um casal, formado pela médica Capitú (Taís Araújo) e pelo advogado Antonio (Alfred Enoch, conhecido pela participação na franquia Harry Potter no papel do bruxo Dino Thomas), bem como a de seu primo, o jornalista André (Seu Jorge), vira de ponta-cabeça assim que a medida passa a vigorar e os negros, por meio da coação e da violência, começam a ser perseguidos para serem mandados de volta para a África. Por força das circunstâncias, os protagonistas são obrigados a se separarem e não sabem se conseguirão se reencontrar.

O longa é uma adaptação da bem-sucedida peça “Namíbia, Não!”, de Aldri Anunciação, cuja história fantástica e distópica pode funcionar muito bem escrita, mas não necessariamente quando transposta para audiovisual. “Medida...”, mesmo que com resultado distinto do filme de Moura, uma dramatização biográfica, acerta na difícil equação entre fábula e crítica social sem pender para o artificial, a superficialidade ou, noutro extremo, o adensamento desnecessário. Lázaro consegue, pelo contrário, dar toques de drama, aventura, ficção, suspense, comédia e romance sem perder a mão.

Taís e Alfred vivem o casal protagonista

Chamam atenção, por exemplo, as cenas de violência. Em nenhum momento há explicitação, com sangue, traumas ou coisa que o valha. Porém, é tudo muito crível, como nos lances em que a polícia (assustadora, mascarada e sem expressão) ataca as pessoas negras na rua. Nem carnificina, visto que a situação já é suficientemente terrível, nem a má encenação que por muito tempo foi típica de cinemas do “terceiro mundo” como o do Brasil, pobre tecnicamente até o início deste novo século. Mérito total da direção.

Uma única exceção: a querida e, literalmente, divina Dona Diva Guimarães, que quase compromete quando é exigida em atuação. Senhora das classes estudantis da vida, ela, que tanto embasbacou a Flip de 2017 com sua lucidez de mulher preta e emocionou o próprio Lázaro quando entrevistada no Espelho, do Canal Brasil, justificadamente não tem traquejo para isso. Sua representação já é muito bem aproveitada numa das cenas iniciais do longa, quando ela aparece como Dona Elenita, a primeira negra a receber a indenização pela dívida do estado pela escravidão, sem grandes exigências com atriz. Porém, Lázaro força um pouco a barra ao colocá-la, momentos depois, na sequência dos afrobunkers, a contracenar com Taís. Aí, ficou bem desigual. No entanto, mesmo com a importância simbólica dada a seu papel, o “amadorismo” não é suficiente para desequilibrar o filme. Afinal, quanta produção de Hollywood altamente qualificada tecnicamente que tem também atuações fracas?

Seu Jorge: ator coringa do cinema nacional
Afora este breve deslize, no que se refere às atuações Lázaro comanda seus colegas com muita destreza. Assim como Moura em “Marighella”, cujo grande trunfo está na entrega dos atores - entre os quais o próprio Seu Jorge, fundamental aos dois filmes -, Lázaro faz funcionar a função psicológica que cada papel desempenha: Adriana Esteves (como Isabel), peça da engrenagem fascista da máquina pública; Renata Sorrah (Dona Izildinha), mulher racista da fatia branca privilegiada da sociedade; Seu Jorge, emoção e instinto do povo negro; Taís, negra em redescoberta de sua ancestralidade; Alfred; transformação da racionalidade ao estado de autorreconhecimento e resistência.

Também por este aspecto, aliás, os filmes de Lázaro e Moura dialogam. De ângulos diferentes, porém complementares, ambos - juntamente com outro bom filme desta safra recente, "Doutor Gama", de Jeferson De - tratam da questão do negro e da necessidade de se olhar para o direto à cidadania como reparação histórica. A reflexão a este exercício, no entanto, faz-se de uma forma ou de outra: seja pela valorização de nossos heróis nacionais de verdade ou fazendo-nos refletir sobre uma história inventada como uma metáfora da nossa realidade como nação.

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trailer de "Medida Provisória"de Lázaro Ramos


Daniel Rodrigues

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