Curta no Facebook

segunda-feira, 15 de abril de 2024

Ian Ramil - Show "Tetein" - Teatro Sicredi - Pelotas/RS (15/03/24)

 

A deriva de uma viagem talvez seja a melhor parte dela. Essa coisa de andar pelas ruas com os olhos atentos. Quando encarada com ânimo e receptividade, a deriva é capaz de trazer gratas surpresas. Foi assim quando, numa viagem a Curitiba, em 2014, durante um passeio de ônibus pela manhã, nos deparamos Leocádia e eu com o anúncio de um ótimo show na noite daquele mesmo dia. Em pleno Teatro Guairinha, assistirmos a uma homenagem a“O Grande Circo Místico”, a inesquecível obra de Edu Lobo e Chico Buarque. Foi quase sem querer que soubemos da programação. Só que não.

Desta feita, a quase coincidência foi em Pelotas, que por si só já traz sentimentos bons a nós dois visto a ligação que temos com a cidade. Numa despretensiosa visita ao Mercado Público, observamos colado em uma pilastra o cartaz de um show. Olhando com atenção, vimos que se tratava de um show de Ian Ramil, músico consagrado e que carrega nas veias o sangue de um dos clãs mais talentosos da música do Rio Grande do Sul. Seria a apresentação de lançamento de seu novo álbum, “Tetein”, e ainda por cima contaria com a participação de seu pai, o célebre Vitor Ramil. E vendo com ainda mais atenção: o show era na noite daquele mesmo dia – igual aconteceu conosco em Curitiba anos atrás.

Providenciamos os ingressos no Sesc de Pelotas, promotor do show, ali mesmo no Centro, e fomos. Além de conhecer o belo e moderno Teatro Sicredi, novo na cidade, o que mais nos interessava era, de fato, a música. Há aí um porém: mesmo com todas as coincidências boas da fluidez das coisas, não era necessariamente uma certeza para nós que fôssemos gostar. Explico, mas para isso preciso voltar a 2018, quando, em Porto Alegre, assistimos a uma breve – e desastrosa – apresentação do mesmo Ian. Fosse por inexperiência, má fase ou vaidade, o fato é que aquilo que vimos foi um artista desleixado, tocando mal e sem sintonia nenhuma com o público. Parecia que, pressionado com o peso do sobrenome, ele se revoltava com a condição e jogava esse desconforto de volta na plateia. Saímos com a pior das impressões.

Mas ainda bem que, como disse Claudinho para Buchecha, “todo mundo merece uma segunda chance, ‘fassa’”. Haviam se passado 6 anos, Ian vencera um Grammy Latino de melhor álbum de rock em português em 2016, esteve diretamente envolvido no projeto do supergrupo Casa Ramil e, no mais, a tendência era que aquele jovem de mal com a vida pudesse ter amadurecido. E valeu a pena reconsiderarmos, pois presenciamos um belo show. Com a sala praticamente lotada de conterrâneos, familiares e amigos, estávamos lá, Leocádia e eu, tornando-se mais pelotenses do que nunca. Às minhas costas, na fileira de trás, por exemplo, o padrinho de Ian, a quem Vitor, na sessão de autógrafos do seu “A Primavera da Pontuação”, na Feira do Livro de 2014, me disse ao me observar com aquele seu olhar penetrante: “Tu te parece com o meu compadre, padrinho do meu filho Ian”. Vejam só a especialidade e a simbologia desta ocasião.

Ian: revertendo qualquer
impressão negativa
A música de Ian tornou-se uma certeza para nós desde o primeiro número, com a linda faixa-título da turnê. A sonoridade de Ian, bastante influenciada pelo cancioneiro infantil desta feita – visto que sua pequena filha, Nina, foi a inspiração para o trabalho –, carrega elementos do rock, do jazz, do gauchesco, do pop, da música eletrônica e, claro, da Estética do Frio, cunhada pela genialidade de seu pai. Exemplo ele tem em casa, e soube aproveitar. Igualmente destaques a intensa “Macho-Rey”, a jazzística “Palavras-Vão”, a versão de “Pra Viajar no Cosmos não Precisa Gasolina”, de Nei Lisboa, e “Cantiga de Nina”, o samba-canção-de-nina(r) feito, óbvia e especialmente, para a filha.

Dono de uma musicalidade muito requintada, Ian e sua pequena banda (Bruno Vargas, no baixo, e Lauro Maia, programação e teclados) trouxeram ainda as excelentes “Lego Efeito Manada”, um chamamé moderno (e com lances de canto gregoriano), que faz remeter à música de Milton Nascimento, Tiganá Santana e, claro, Vitor Ramil. O timbre de voz, aliás, não deixa mentir que se trata de um Ramil, visto que, em vários lances, é possível ouvir a voz de seu pai e seus tios, Kleiton e Kledir. O artista trouxe ainda coisas mais antigas de sua carreira, como músicas do primeiro disco, de 2014, “Nescafé” e “Seis Patinhos” (visivelmente as mais fracas do set-list), e a potente “Artigo 5º”, um dos hinos da era “Fora Temer”, do seu premiado e combativo disco "Derivacivilização", a qual convidou seu pai para dividir os microfones num dos momentos altos do show.

Mas não cessou por aí. Ian realmente amadureceu como artista, como performer e, a que se vê, como pessoa, visto que se mostrou genuinamente simpático e acolhedor. Ainda tiveram a magnífica “O Mundo é Meu País”, a questionadora “Quiproquó” e, principalmente, “Mil Pares”, um manifesto distópico-utópico em que Ian imagina um cenário apocalíptico para o fim do capitalismo. Nesta, além de sopros e percussões adicionadas, ainda houve a repentina aparição de Davi Batuka com um atabaque africano, que fez o público vir abaixo. Na Pelotas das charqueadas, que tanto sangue negro viu escorrer pelas águas do Rio Pelotas há séculos, nada mais apropriado que, na mistura consciente e resistente de Ian, invocar essa ancestralidade para o palco.

Mais do que admirar o espetáculo, o mesmo nos serviu para revermos e revertermos a imagem de um artista que provou valer a pena ser escutado. Mas ainda mais significativo foi ver Ian e Vitor cantando a clássica “Joquin”, a versão de 1987 de Vitor para a música de Bob Dylan (“Joey”, de 1976), em que transpõe para a nem tão fictícia Satolep a história do genial, incompreendido e perseguido gênio inventor. Dadas as devidas proporções, a música de Vitor se tornou maior que a original, visto que, em terras gaúchas e brasileiras é um clássico e, no vasto e importante cancioneiro dylanesco, não passa de uma canção menor. Fato é que os versos iniciais do tema:“Satolep, noite”, ainda sem o acompanhamento dos instrumentos e ditos na voz de Vitor, traduziram a beleza daquele acontecimento. Estávamos ali, em nossa Satolep, dita assim mesmo, ao contrário, provocando essa inversão de percepções que Pelotas nos proporciona e numa noite muito especial. Tudo soube fazer sentido. Um acontecimento tão inesperado para nós, mas ao mesmo tempo tão significativo, que parecia estar previsto, como um presente da própria Pelotas para quando aqueles dois filhos desagarrados voltassem à deriva por suas ruas de pedras antigas.

*******

o clássico de Vitor Ramil "Joquin" cantado por ele 
e o filho-anfitrião Ian

Ian ao centro em trio com Bruno Vargas e Lauro Maia

Novamente com a excelente e versátil banda

"Ares de Milonga": canto e musicalidade de Ian típica dos Ramil

Número final, no bis, com a banda e convidados, entre eles o pai Vitor


fotos e vídeos: Leocádia Costa e Daniel Rodrigues
texto: Daniel Rodrigues

Nenhum comentário:

Postar um comentário