A deriva de uma viagem talvez seja a melhor parte dela. Essa coisa de andar pelas ruas com os olhos atentos. Quando encarada com ânimo e receptividade, a deriva é capaz de trazer gratas surpresas. Foi assim quando, numa viagem a Curitiba, em 2014, durante um passeio de ônibus pela manhã, nos deparamos Leocádia e eu com o anúncio de um ótimo show na noite daquele mesmo dia. Em pleno Teatro Guairinha, assistirmos a uma homenagem a“O Grande Circo Místico”, a inesquecível obra de Edu Lobo e Chico Buarque. Foi quase sem querer que soubemos da programação. Só que não.
Desta feita, a quase coincidência foi em Pelotas, que por si
só já traz sentimentos bons a nós dois visto a ligação que temos com a cidade. Numa
despretensiosa visita ao Mercado Público, observamos colado em uma pilastra o
cartaz de um show. Olhando com atenção, vimos que se tratava de um show de Ian
Ramil, músico consagrado e que carrega nas veias o sangue de um dos clãs mais
talentosos da música do Rio Grande do Sul. Seria a apresentação de lançamento
de seu novo álbum, “Tetein”, e ainda por cima contaria com a participação de
seu pai, o célebre Vitor Ramil. E vendo com ainda mais atenção: o show era na
noite daquele mesmo dia – igual aconteceu conosco em Curitiba anos atrás.
Providenciamos os ingressos no Sesc de Pelotas, promotor do
show, ali mesmo no Centro, e fomos. Além de conhecer o belo e moderno Teatro
Sicredi, novo na cidade, o que mais nos interessava era, de fato, a música. Há
aí um porém: mesmo com todas as coincidências boas da fluidez das coisas, não
era necessariamente uma certeza para nós que fôssemos gostar. Explico, mas para
isso preciso voltar a 2018, quando, em Porto Alegre, assistimos a uma breve – e
desastrosa – apresentação do mesmo Ian. Fosse por inexperiência, má fase ou vaidade, o
fato é que aquilo que vimos foi um artista desleixado, tocando mal e sem sintonia
nenhuma com o público. Parecia que, pressionado com o peso do sobrenome, ele se
revoltava com a condição e jogava esse desconforto de volta na plateia. Saímos
com a pior das impressões.
Mas ainda bem que, como disse Claudinho para Buchecha, “todo
mundo merece uma segunda chance, ‘fassa’”. Haviam se passado 6 anos, Ian vencera
um Grammy Latino de melhor álbum de rock em português em 2016, esteve diretamente envolvido no projeto do supergrupo Casa Ramil e, no mais, a
tendência era que aquele jovem de mal com a vida pudesse ter amadurecido. E
valeu a pena reconsiderarmos, pois presenciamos um belo show. Com a sala praticamente
lotada de conterrâneos, familiares e amigos, estávamos lá, Leocádia e eu,
tornando-se mais pelotenses do que nunca. Às minhas costas, na fileira de trás,
por exemplo, o padrinho de Ian, a quem Vitor, na sessão de autógrafos do seu “A
Primavera da Pontuação”, na Feira do Livro de 2014, me disse ao me observar com
aquele seu olhar penetrante: “Tu te parece com o meu compadre, padrinho do meu
filho Ian”. Vejam só a especialidade e a simbologia desta ocasião.
Ian: revertendo qualquer impressão negativa |
Dono de uma musicalidade muito requintada, Ian e sua pequena
banda (Bruno Vargas, no baixo, e Lauro Maia, programação e teclados) trouxeram
ainda as excelentes “Lego Efeito Manada”, um chamamé moderno (e com lances de
canto gregoriano), que faz remeter à música de Milton Nascimento, Tiganá Santana e, claro, Vitor Ramil. O timbre de voz, aliás, não deixa mentir que se
trata de um Ramil, visto que, em vários lances, é possível ouvir a voz de seu
pai e seus tios, Kleiton e Kledir. O artista trouxe ainda coisas mais antigas
de sua carreira, como músicas do primeiro disco, de 2014, “Nescafé” e “Seis
Patinhos” (visivelmente as mais fracas do set-list), e a potente “Artigo 5º”,
um dos hinos da era “Fora Temer”, do seu premiado e combativo disco "Derivacivilização",
a qual convidou seu pai para dividir os microfones num dos momentos altos do
show.
Mas não cessou por aí. Ian realmente amadureceu como
artista, como performer e, a que se vê, como pessoa, visto que se mostrou
genuinamente simpático e acolhedor. Ainda tiveram a magnífica “O Mundo é Meu
País”, a questionadora “Quiproquó” e, principalmente, “Mil Pares”, um manifesto
distópico-utópico em que Ian imagina um cenário apocalíptico para o fim do
capitalismo. Nesta, além de sopros e percussões adicionadas, ainda houve a repentina
aparição de Davi Batuka com um atabaque africano, que fez o público vir abaixo. Na Pelotas das
charqueadas, que tanto sangue negro viu escorrer pelas águas do Rio Pelotas há
séculos, nada mais apropriado que, na mistura consciente e resistente de Ian, invocar
essa ancestralidade para o palco.
Mais do que admirar o espetáculo, o mesmo nos serviu para revermos e revertermos a imagem de um artista que provou valer a pena ser escutado. Mas ainda mais significativo foi ver Ian e Vitor cantando a
clássica “Joquin”, a versão de 1987 de Vitor para a música de Bob Dylan (“Joey”,
de 1976), em que transpõe para a nem tão fictícia Satolep a história do genial,
incompreendido e perseguido gênio inventor. Dadas as devidas proporções, a música de Vitor se tornou maior que a original, visto que, em terras gaúchas e brasileiras é um clássico e, no vasto e importante cancioneiro dylanesco, não passa de uma canção menor. Fato é que os versos iniciais do tema:“Satolep, noite”, ainda sem o acompanhamento dos instrumentos e ditos na voz de Vitor, traduziram a beleza
daquele acontecimento. Estávamos ali, em nossa Satolep, dita assim mesmo, ao contrário, provocando essa inversão de percepções que Pelotas nos proporciona e numa noite muito especial. Tudo soube fazer sentido. Um acontecimento tão inesperado para nós, mas ao mesmo tempo tão
significativo, que parecia estar previsto, como um presente da própria Pelotas para
quando aqueles dois filhos desagarrados voltassem à deriva por suas ruas de pedras antigas.
Ian ao centro em trio com Bruno Vargas e Lauro Maia |
Novamente com a excelente e versátil banda |
"Ares de Milonga": canto e musicalidade de Ian típica dos Ramil |