por Roberto Sulzbach Cortes
Proveniente de uma família evangélica, Tillman cresceu em um ambiente culturalmente opressivo, onde não pôde escutar música "secular" até sair de casa. A única exceção que conseguiu abrir foi quando já era adolescente e convenceu seus pais que Bob Dylan era um artista cristão, por conta do álbum "Slow Train Coming".
Antes do sucesso, o artista lançou diversos discos sob o nome J. Tillman, que tiveram uma recepção modesta na cena indie-folk americana. Em 2008 se tornou baterista da banda Fleet Foxes e após quatro anos com o grupo, Josh deixou o grupo e se mudou para Los Angeles numa espécie de última tentativa (ou desespero). Lá, durante uma bad trip de LSD, passou dias sob efeito da droga e, ao retornar à plena consciência, surgiu com inúmeras inspirações musicais — além de um novo alter ego: sábio, irônico e quase messiânico: o Father John Misty.
Em 2012, lançou seu primeiro disco sob o seu pseudônimo: Fear Fun, pelo selo Sub Pop (com o qual segue até hoje). O álbum recebeu avaliações positivas e trouxe a Tillman mais visibilidade do que seus 10 anos anteriores de carreira. Canções como "Nancy From Now On" e "I'm Writing a Novel" revelam seu estilo: recheadas de sarcasmo e auto-descobrimento, com letras inspiradas por experiências pessoais e viagens psicodélicas.
Já no segundo disco, é notável uma evolução. Um passo além em relação ao trabalho anterior, "I Love You, Honeybear" foi presença frequente nas listas de "melhores do ano" de 2015. Tillman estava claramente imerso na realidade de seu recém-celebrado casamento com a fotógrafa Emma Elizabeth Garr. Mas o álbum vai além da paixão intensa daquele momento: ele também reflete sobre a sociedade americana, o “American Way of Life” do momento e a consolidação da cultura hipster — que ele mesmo ironicamente personifica. Tudo isso engarrafado com doses de humor sem soar forçado.
Musicalmente, a obra transita entre soul, rock, folk e baladas no estilo crooner. Em vinil, "ILYHB" foi lançado como disco duplo em 45 RPM, acompanhado de um encarte riquíssimo, cheio de fotos das cartas que trocou com sua esposa, fotos da lua de mel e mais algumas imagens. Aliás, Tillman faz questão que todos os seus álbuns estejam disponíveis em vinil e até fita K7.
Destaco aqui a faixa-título, que abre o disco com uma intensidade tão grande que já nos coloca dentro do universo que o autor vivia naquele momento. A letra fala de um amor visceral: “nus, ficamos chapados no colchão, enquanto o mercado financeiro global colapsava”, e, ironicamente, chama sua parceira de “ursinho de pelúcia”. "Chateau Lobby #4 (in C for Two Virgins)" faz referência ao icônico Chateau Marmont, em Los Angeles, onde ele e Emma passaram a lua de mel. Contudo, a canção mescla realidade e ficção, abordando a perda da virgindade de maneira quase lúdica e finalizada com um belíssimo solo de trompetes.
"The Night Josh Tillman Came To Our Apt". nos traz sua melhor mimica de Velvet Underground, em que Misty conta, com enormes doses de sarcasmo a história de uma menina pretensiosa que o foi visitar, a qual ele detesta por achar que sabe de tudo, além de “ter ideias modernas e cantar igual a Sarah Vaughan”, a qual nosso locutor retruca com "Eu odeio essa levitação sentimental que garotas brancas fazem”. "The Ideal Husband" nos traz um relato de tudo que um marido ideal não deve fazer, desde mentir, sexo desprotegido e dizer coisas horríveis às pessoas que ama.
"Bored In The USA" é uma sátira amarga ao contexto do americano médio no capitalismo tardio. Diferente do Boss, Tillman inicia com um piano lastimoso, abordando sobre a amargura de um americano médio, que vive para trabalhar e pagar seu empréstimo sub-prime (típico dos EUA para compra de casas), além de citar o apego do povo estadunidense com seus símbolos, enquanto afunda em remédios para conseguir lidar com sua realidade e suas dívidas. Ao fundo, é possível escutar risos, como se ridicularizasse as situações de vida do nosso narrador.
Em "Holy Shit", nosso “pastor” segue o embalo crítica social e traz um tópico matriz da sua existência, aliado com o tópico matriz do disco: a religião e o amor. Na canção, ele cita e ilustra diversos conceitos da sociedade ocidental, os colocando em perspectiva quando comparado com o que realmente deveria significar ser humano, ou viver em uma sociedade, como no verso “talvez o amor seja uma instituição baseada na escassez de recursos; mas eu falho em entender o que isso tem a ver com você e eu".
Apesar de pessoal, a obra é extremamente universal, e é justamente o contexto de Josh Tillman que faz com que o Father John Misty traga uma nova perspectiva ao assunto. É sincera, sexy, e apaixonada, como o amor deve ser. O último verso do álbum é, supostamente, composto das primeiras palavras que disse a sua esposa: “te vejo por aí! Qual seu nome?”.
"I Love You, Honeybear" é, acima de tudo, um retrato honesto da contradição de existir: amar profundamente em um mundo cada vez mais cínico. Tillman transforma suas neuroses, senso de humor e ironia em algo que soa universal, mesmo que parta de um lugar profundamente íntimo. É um disco sobre amar e abraçar vulnerabilidades, e sobre tentar manter a sanidade quando tudo em volta parece implodir.


Excelente texto. Profundo e encantador.
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