Seja norte-americana, brasileira ou de qualquer lugar que o
valha, “Não Olhe...” é um retrato tristemente muito bem traçado dos tempos de
pós-verdade no qual vivemos. O longa conta a história de dois cientistas (os
astrônomos Randall Mindy, vivido por Leonardo DiCaprio, e Kate Dibiasky, Jennifer
Lawrence) que descobrem um corpo espacial sólido gigante que está vindo em
direção à Terra e tentam alertar autoridades e imprensa para que providências
sejam tomadas antes que as consequências sejam fatais. Porém, são envolvidos em
um jogo político de interesses em que a ciência não é lavada a sério (alguma
semelhança com políticos e pessoas que negam a vacina ou à própria existência do
Coronavírus?). Pior: suas figuras e discurso são distorcidos e transformadas em
produto ao bel prazer da mídia. A dupla de pesquisadores tenta encampar uma
peregrinação na imprensa e acaba na Casa Branca, mas nada parece ser suficiente
para que as pessoas “olhem para cima” de forma racional e despida de interesses
próprios.
Afora a edição ágil de Hank Corwin e a direção bem conduzida
por McKay, que faz o longo filme não ter “barriga”, tamanho é o proveito do
roteiro, as atuações são um destaque à parte. Maryl, deusa, está tragicamente
magnífica no papel da patética presidente; DiCaprio, o maior de sua geração, mais
uma vez dando o tamanho certo para o personagem; Jennifer, igualmente bem; e
especialmente Mark Rylance, que vive o egoico magnata Peter Isherwell, cuja figura
amorfa e andrógena denotam o quão perigosos são estes novos donos do mundo como
Musk e Bezos.
No entanto, o que se destaca antes de tudo em “Não Olhe...” é seu roteiro, digno de Oscar. Escrito pelo próprio McKay (que levou a estatueta de Roteiro Adaptado em 2016 por "A Grande Aposta"), traz um retrato sem perdão da sociedade contemporânea em seus tempos líquidos de conexões digitais e desconexões humanas. A história é um compêndio de percepções muito acertadas de um mundo de radicalismos político, ideológico e, num entendimento mais profundo, religioso. É o império do absurdo, que só pode nos levar a um desastre irreparável. O longa guarda também uma metáfora de alerta para a questão climática no planeta: nesse ritmo de descontrole do ecossistema, o resultado será a destruição da vida como a conhecemos.
Atuações de gala abrilhantam o perspicaz "Não Olhe..." |
Neste turbilhão de opiniões que o filme suscita, é interessante, contudo, perceber o mesmo comportamento autodestrutivo que este critica em relação à sociedade atual. Ou seja, a mentalidade está tão incrustrada que aqueles que deveriam ter mais condições de avaliar a obra como uma oportunidade de reflexão (independentemente se a consideram boa ou não, isso é irrelevante), são, justamente, os que tentam “lacrar”, mostrando-se os verdadeiros cegos. Uma crítica especializada, por exemplo, apontou que “Não Olhe...” é fadado a ser esquecido pela história por ser “um filme confuso, sem foco, pouco engraçado e, pior de tudo, que já nasce velho”. Ora, primeiramente, que não é incomum nos depararmos com filmes que, mesmo discutíveis em qualidade, marcam, sim, uma época, haja vista “A Primeira Noite de um Homem”, não necessariamente brilhante mas marcante para a geração baby boomer, ou o celebrado “Forrest Gump”, que justifica a barbárie social norte-americana de uma forma um tanto leviana. Entretanto, a questão vai além disso, pois não cabe a um ou outro dizer se a obra vai ou não perdurar: é um conjunto de fatores históricos, sociais e culturais que determinam, independente dos gostos pessoais. Avaliações como estas só reforçam, mascarada ou ignorantemente, o monstrengo autoritário e superpoderoso da sociedade digital-capitalista.
Dada a pertinência de “Não Olhe...” na leitura de nossos
tempos – importante lembrar os detratores, aliás, que o filme foi escrito antes da
pandemia, aumentando seu mérito – é muito difícil imaginar que seja esquecido
no futuro. O que me deixa, inclusive, minimamente reconfortado considerando que a história não se baseia no exemplo brasileiro. Ou seja: esta onda de ultradireita e neofascismo não pertence somente a nós, brasileiros, o que significa que mais nações podem estar passando por isso e percebendo seus malefícios. Mas espero, sim, que o filme seja lembrado daqui a algum tempo como a antítese de um mundo para o
qual caminhávamos em épocas passadas, mas que, a certa altura, percebendo o
erro que cometíamos, tenhamos conseguido retomar a rota do bom senso e do
humanismo. Quem sabe, assim, findar essa era atual para iniciar uma outra.
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trailer de "Não Olhe para Cima"
Daniel Rodrigues