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Vídeo de Alfredo Jaar, no CCCEEE visto da calçada. |
O “pedacinho” do Memorial que faltava, o qual havia comentado na
postagem anterior sobre a
Bienal do Mercosul, era, na verdade, um andar
inteiro. Numa abordagem mais tecnológica mas sem desalinhar-se do recorte “Biografias
da Vida Urbana”, traz mais vídeos e fotografias, mas também quadros e
instalações aludindo a temas já vistos como arquitetura, urbanidade, cidadania,
mobilidade, segregação, entre outros vários que se podem derivar. Embora com um
pouco menos de coisas interessantes, o nicho superior traz algumas boas
surpresas.
Uma das salas de projeção mostra um filme de Miguel Rio Branco
exaltando a estética erótico-kitsch-brega do universo de prostitutas da zona,
com música ao fundo, ruídos, sussurros, tudo aglutinado. Misto de Boca do Lixo
e Derek Jarman. Também em vídeo, mas não separado de outras obras, um bastante
interessante do festejado chileno Alfredo Jaar. Chamado “Times Square, April
1987: A Logo for America”, é um documentário em vídeo digital que mostra uma
animação criada pelo artista à época e que, projetada em plena Times Square,
questionava, no coração da Big Apple, a prevalência dos Estados Unidos como
nação dominante e a identidade continental do ser americano. Isso, antes do
Muro de Berlim cair... A mim, que não abro mão de me referir aos nascidos
naquele país valendo-me do essencial prefixo “norte”, pois me considero tão
americano quanto eles, a percepção de Jaar é pertinente e necessária. Ainda, o
vídeo dialoga com a única obra exposta no Centro Cultural CEEE Erico Verissimo,
em que, numa grande tela que dá para a rua, mostra as mesmas animações e ditos
como “This is not America’s flag” ou,
simplesmente, “America?”.
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Obra de Britto Velho,
sociedade do espetáculo x realidade
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Em pintura, as duas contundentes telas “Pichação”, do gaúcho Frantz, de
1981, merecem destaque. Feitas à época de repressão Militar no Brasil, os
fragmentos/suposições de palavras de ordem, como um manifesto dito pela metade
por conta da censura, dão à obra um caráter documental e sociológico. De
pintura tradicional ainda, outras duas do pernambucano Montez Magno, da série
“Fachadas do Nordeste” (acrílica sobre cartão), desafiam-se a compor, através
de formas geométricas, uma poética do objeto urbano. Outro gaúcho, Britto
Velho, tem a sua condizente “Reflexões e Variações sobre América Latina”
(acrílica sobre aglomerado), de 1977, espelhando as duas faces dicotômicas da
sociedade: o que a mídia evidencia destacadamente e, bem próximo, logo abaixo, aquilo
que se é de fato sob a “luz” da verdade.
Avançando um pouco na exploração das técnicas, o mexicano Felipe
Ehrenberg, conecta-se com o fenômeno das “tribos culturais” da cidade e, por
meio de estampa eletroestática a partir de uma colagem como matriz (1973 a
2001), compõe um tríptico que lembra por demais a estética dos fanzines punks. Sem
sair da reflexão sobre a urbe, uma das boas surpresas foi encontrar, em forma
plástico-visual, o poema-música do multiartista
Augusto de Campos “Cidade City
Cité”, parceria dele com o espanhol Julio Paza (1963-2015), que,
paulistanamente concretista, preenche, dentro da extensão que compreende a
grafia do “menor maior poema do mundo” –
como classifica o próprio Augusto – uma sugestão de metrópole, moderna
mas superficial e acelerada, tomada de luzes indistinguíveis na noite da “unívora
cidade”.
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Qualquer semelhança com um fanzine
não é mera coincidência.
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Mas minha maior admiração ficou por conta da gigantesca tela do
pernambucano Cícero Dias “Eu vi o mundo... ele começava no Recife”, umas das
obras-primas da pintura de todos os tempos. Elaborada entre 1926 e 29, com suas
assombrosas dimensões de 1 metro e meio de altura por 12 metros e meio, é um
dos mais importantes registros pós-modernismo e, para além dos escândalos da
época por mostrar um nu (acreditem: a sociedade considerava depravada aquela
bucólica imagem da uma mulher sobre o burro), um ícone da arte brasileira. Por
meio de um traço estilizado, a exemplo de
Di Cavalcanti, porém consideravelmente mais regionalista – os personagens de feições e vestes
típicas, a predominância do ocre da luz da capital pernambucana na paleta –
Dias segue impressionando com esse exuberante óleo sobre papel, técnica que o
torna ainda mais louvável. Não só eu: à época de sua primeira exposição, em
1931, em São Paulo, Mário de Andrade, eterno coração juvenil, escreveu à amiga
Tarsila do Amaral, em que sobram empolgação e exagero:
“Aqui, grande bulha por causa do Salão em que o Lúcio Costa permitiu a
entrada de todos os modernos, e o Cícero Dias apresenta um painel de quarenta e
quatro metros de comprimento com uma porção de imoralidades dentro. Os MESTRES
estão furibundos, o escândalo vai grosso, ouvi contar que o edifício da Escola
de Belas Artes rachou...” Memorial do Rio Grande do Sul não rachou, não
pelo que outrora fora escândalo. Mas que a bulha ainda é possível de se ouvir,
ah! Isso é.
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Vídeo de Jaar que dialoga com a instalação no CCCEEE |
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"Pichação", de Frantz, entre a arte e o protesto |
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Fachadas do Nordeste, poesia geométrica |
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Poema de Augusto de Campos em versão plástica |
C |
Partes do painel de Cícero Dias
"Eu vi o mundo... ele começava no Recife" |