Como dizia o grupo Língua de Trapo, “Foi no dia de São João Batista que conheci Deusdéti; naquele tempo eu já era Marxista e ela ainda ia em discoteque”. Posso dizer que conheci o The Who numa ilha, aos vinte e poucos anos, tendo já vivido várias utopias, algumas teorias e já abandonado algumas delas. Caiu-me nas mãos o DVD do Festival da Ilha de Wigth de 1970 através de um amigo.
Como diz o título, o que relato nestas linhas é minha louca perspectiva ao vivenciar, infelizmente não possuo uma máquina do tempo, o que até hoje minha razão insiste em negar.
Primeiro ato: luzes apagadas, um vulto de branco corta rapidamente o palco; expectativa do público e minha. Eis que explode um som que invade meu cérebro como uma marreta, sendo a dor surpreendentemente agradável.
Me deparo com um guitarrista vestindo um macacão alguns números menores, creio que propositalmente, ou não... coisas de gênios. Em outra cena, desce um esqueleto marionete (em minha mente, juro que vi), Ás do baixo, coadjuvante digno de um Tony Awards.
Segundo ato: prefaciado por "I Cant’ Explain" e diante de uma platéia atônita, surge um deus de longos cabelos encaracolados, franjas balouçando aos seus movimentos, dorso quase nu; sem esforço algum, sem nada pedir, na fração de segundos em que minha retina capta sua visão, se torna meu sex symbol, pondo Robert Plant “no chinelo”, utilizando uma expressão popular. A voz incomparável ressoava pelo teatro/ilha ou vice versa.
Extasiada, sentidos aguçados, perscruto o tablado e emerge o ator principal; pensaram que o Tony estava garantido, ante minha eloquência ao falar de Roger Daltrey? Ledo engano... olhos insanos, baquetas incontroladas, porém dominadas a seu bel-prazer, trejeitos peculiares e autênticos, inteiramente entregue... talvez no decorrer desta existência fugaz, eu consiga definir o que senti e ficou incrustrado em meu ser, tamanha foi a intensidade de sua presença naquele show e os estilhaços de loucura que Keith Moon desferiu em minha alma; (uma pitada de poesia é necessária).
Terceiro ato: harmônica nos lábios do Roger e mais curtição por parte do Keith... Blues na medida para quem é exímia apreciadora desse gênero, dentre outros, como a música clássica. The Who soava como uma afinadíssima orquestra e certamente seriam ovacionados por Beethoven e sua trupe, destacando-se a saudação de Chopin, o mestre maior (preferência minha, ok?).
Quarto ato: não poderia faltar humor, o que ficou por conta do “gênio e o insano”, culminando com uma bofetada indolor. Após a delícia que foi presenciar tal cena, irrompem os vocais agudos de Apolo, na inesquecível "Water". Nesse instante, arrebatada por algo surreal, no despertar da Kundalini, senti-me transcender.
Os acordes de Jonh Entwistle transformaram o antes marionete, no próprio titereiro, tamanho controle exercido pelo seu dedilhar.
Como se não bastasse, me servem um aperitivo de Beatles e após um Southern Confort à la Janis; confesso que saboreei cada gole, enquanto Roger adicionava ao whisky seu gelo vocálico. Ah, desejava embriagar-me e queria mais. Atendida generosamente pelo Olimpo, solos de guitarra jorraram sem cessar, aliados às performances de seu criador Peter Thownshend.
Enquanto afinam seus instrumentos, permitam que lhes conte que nesse ano Gilberto Gil e Caetano Veloso, exilados, se apresentaram no Festival, representando a Tropicália. Não é à toa que são dois dos melhores artistas do Brasil e quiçá do mundo.
Último ato: Tommy não poderia deixar de comparecer, afinal, “ninguém” é tão especial quanto “ele”, ou marcou tanto, rendendo artigos à parte. Foi o ápice do Maior Espetáculo da Terra (recomendo o filme com esse mesmo nome).
As cortinas se fecham, gritos de “Bravo!!!” presos na garganta, aplausos contidos, não ouso levantar-me... Quedo-me, sorvendo o último gole.
John Entwistle, e sua indumentária cadavérica, com o alucinado Keith Moon, destruindo tudo, lá atrás, na bateria. |
Assista:
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Elenice Michelon tem 49 anos, mora em São Marcos/RS e tem duas filhas, Morgana e Heloiza.
É formada em Administração de Empresas, e por amor às palavras, atualmente cursa a faculdade de Letras Português/Inglês.
É apaixonada por poesia, principalmente Fernando Pessoa, Manoel de Barros, Florbela Spanca, Pablo Neruda e Carlos Drummond de Andrade, curte rock, blues, música clássica, MPB e ópera, e aprecia as artes em geral, sem preconceitos de qualquer natureza.
Seus hobbies são artesanato (tricô, crochê), violão, ler e o contato com a Natureza.
Eterna aprendiz, busca conhecer um pouco de cada cultura, extrair e absorver o máximo do que lê, assiste e vivencia.
Futilidades não lhe interessam, pois aprecia conversas inteligentes que a façam pensar e que possam enriquecê-la, bem como a simplicidade das coisas, que, segundo ela "é onde reside o mágico, o belo e o segredo do universo...o Surreal".
"Sou mais a palavra ao ponto de entulho.
Amo arrastar algumas no caco de vidro,
envergá-las pro chão, corrompê-las, -
até que padeçam de mim e me sujem de branco."
- Manoel de Barros